por William Bowles
Para entender o que está a acontecer na Grã-Bretanha de hoje
temos de remontar ao século XIX e à ascensão do
capitalismo industrial/mercantil, pois foi durante aquele período que os
vitorianos entraram plenamente na fabricação de mitos,
reescrevendo quase completamente a nossa história. Na
verdade, foi um triunfo da engenharia vitoriana.
O vasto movimento de êxodo não só das zonas rurais para as
cidades como do trabalho artesanal para o trabalho assalariado fracturou a
nossa memória colectiva tão completamente que inventar uma nova
versão da "nossa" história, uma versão mais
capitalista, foi fácil. Acrescente-se a isto o facto de que mesmo as
massas trabalhadoras oprimidas ainda beneficiavam da riqueza do Império
escravocrata/colonial da Inglaterra, persuadindo o povo de que o
"Domínio britânico dos mares" não era uma tarefa
tão difícil de cumprir. E apenas precisamos olhar para os EUA
para ver um exemplo actual de como o Império corrompe totalmente.
Mas no fim do século XIX o poder em ascensão do trabalho
organizado (branco, masculino) acabou por encontrar a sua expressão
política no Partido Trabalhista com a (relutante) aceitação
pela classe dominante de que a classe trabalhadora queria protagonismo, ou
mesmo todo o bolo! Algum coisa tinha de ser feita para impedir um
possível desastre: a Revolução.
Aqui entra a "democracia" parlamentar e a rota escolhida pelo
trabalho organizado como a verdadeira estrada para o socialismo. E é
aqui que o papel do mito fabricado foi e continua a ser crucial para o
exercício da "democracia", um ritual executado a cada cinco
anos quando a elite política trata de ganhar os nossos votos.
Contudo, uma vez que o Partido Trabalhista em 1997 abandonou qualquer
pretensão de ser o partido do trabalho, o truque cruel ensaiado sobre
nós durante a última centena de anos agora torna-se claro para
todos
verem. E no momento certo, a "crise de legitimidade" desce sobre a
elite dominante.
Os políticos convencionais e seus cúmplices nos media querem
fazer acreditar que a próxima eleição de 6 de Maio
é a mais importante desde, suponho, as de 1945. O problema é que
eles estão certos, mas pelas razões erradas.
A primeira é óbvia: a elite política está
desesperada para restaurar alguma espécie de legitimidade, e além
disso a crença no "sistema", o que equivale a dizer, preservar
o
seu próprio poder, seriamente desafiado a seguir a uma série de
escândalos (em andamento) e exemplos colossais de total
incompetência. Exemplos: a tentativa desastrosa de digitalizar o
Serviço Nacional de Saúde, um escândalo de 12 mil
milhões que todos nós pagamos e que não funciona e/ou
ninguém ousará utilizá-lo. Não é exagero
afirmar que virtualmente tudo em que o governo trabalhista se intrometeu foi um
desastre total. Os únicos que se beneficiam são os
cúmplices de negócios do Partido Trabalhista com as suas
"parcerias público-privadas" e outras os quais ficaram com
milhares de milhões do dinheiro público, o nosso dinheiro!
Portanto um alto comparecimento, posso acrescentar que conduzido por um
violento ataque sem precedentes dos media liderado pela velha e boa BBC,
reflectiria uma espécie de "confiança" restaurada no
sistema, bem exemplificada pela ascensão de Nick Clegg dos Liberais
Democratas, cujo único motivo de fama é não ser Cameron ou
Brown.
O grau em que o estado está suspenso por um fio neste processo das
Cuecas do Imperador é evidente na ascensão dos Liberais
Democratas, vazios como são, quase a assemelharem-se ao
"velho" Partido Trabalhista mas sem os bonés respectivos. Mas
duvido seriamente que a propaganda furiosa venha a ter o efeito desejado,
apesar de Nick Clegg.
É de facto um sinal de que o eleitorado se agarra a palhas, a qualquer
coisa para livrar-se de uma classe política obviamente corrupta e
esclerótica. O problema é que os Lib-Dems são simplesmente
tão parte do "clube" como o resto deles. Tornar-se um deputado
é como aderir aos maçons, sem o aperto de mão
secreto.
Em qualquer caso, o sistema eleitoral é tão falsificado que mesmo
se os Lib-Dems ganhassem a percentagem mais alta dos votos depositados,
acabará por ser uma vitória Trabalhista ou Conservadora devido ao
sistema
first past the post
que repousa no facto de ser baseado sobre densidades populacionais e não
no total dos votos efectuados.
O resultado é que não importa quem "vença",
portanto todo o ar quente acerca dos perigos de um "Parlamento em
suspenso", um parlamento sem maioria clara, é mais uma tentativa de
intimidar o eleitorado a votar (o comparecimento esteve nos 30 por cento nas
eleições recentes, ou como disse Gordon Brown em 2000 "um
baixo comparecimento é um sinal de um eleitorado satisfeito").
O sistema parlamentar, astuciosamente construído por aqueles tortuosos
imperialistas vitorianos, construído sobre os mitos então
recém construídos acerca da história da Inglaterra,
já não é, como eles dizem, adequado à sua
finalidade. Assim, sem nenhuma diferença apreciável entre os
três partidos políticos que o controlam, os quais
construíram entre si um partido único de facto, um estado de
segurança "democrático", o eleitorado é deixado
a balouçar ao vento.
Entra em cena o British National Party (BNP), um mal disfarçado partido
neo-nazi que em outras circunstâncias sequer seria mencionado nos
media de referência que foi legitimado de um modo indirecto e
apresentado à "Inglaterra média" como a alternativa
a menos que sigamos a linha, que retornemos ao aprisco e restauremos o
status quo. As "opções" são a direita ou a
extrema direita.
Então onde está a esquerda?
O estado está confrontado com uma crise dupla, económica e
política, um terreno certamente fértil para a esquerda fazer uma
reaparição? Mas isto não está a acontecer. Por que?
O problema em parte é que a ideia de socialismo foi desacreditada tanto
nos factos como na ficção. Assim, como colocar o socialismo outra
vez na agenda? Será possivelmente a única oportunidade que temos
de nos salvarmos.
Não é que, enterrado sob o peso embrutecedor da
"cultura" corporativa, o desejo da mudança radical já
não exista (referi-me a isso alhures). Mas como com tudo o mais o nosso
desejo de mudança é sequestrado e corporatizado pela cultura
dominante, canalizado para objectivos inofensivos ou ainda mais consumo,
"Verde" ou outro qualquer.
O que estou quase a propor está sem dúvida à beira da
heresia para a esquerda tradicional mas é razoavelmente óbvio que
a "nova" classe trabalhadora é o que costumávamos
chamar a classe média (com elementos chave da classe trabalhadora
tradicional incluídos, especialmente os sectores do serviço
publico e dos transportes. O estado é afinal de contas o maior
empregador único e os sindicatos do serviço público
também são os maiores sindicatos e estão todos juntos no
apoio ao Partido Trabalhista.
Actualmente o descontentamento da "classe média" está a
ser canalizado ou para expressões corporativas ou é fragmentado
em preocupações orientadas para "uma única
questão". O que mais se aproximou de uma expressão
política foi o Partido Verde, mas ele não tem uma alternativa
real a oferecer, apenas paliativos à ordem actual, nenhum dos quais a
elite dirigente em qualquer caso toleraria se por algum milagre ganhassem
um mínimo de representação, o que de todas as formas
é impossível sob o actual sistema eleitoral.
A esquerda tradicional nada quer fazer com esta nova classe trabalhadora,
encarando-a não como aliada e sim como inimiga. Mas é esta
"classe média" que possui as chaves do castelo, sem ela o
capitalismo simplesmente não pode funcionar. Eles agora ocupam uma
posição comparável na ordem económica àquela
que os trabalhadores fabris ocuparam outrora.
A falácia nesta altura deveria transparecer. A "reforma" do
capitalismo simplesmente não está em marcha. Ao invés,
realmente andamos para trás em termos de envolvimento político e
de capacidade para mudar o sistema. Temos agora uma classe de políticos
profissionais distinta, inteiramente divorciada da sociedade civil que
representa abertamente os interesses do grande capital, pouco importando o
partido político, além de preservar o seu próprio
privilégio.
E não é apenas a corrupção endémica que
revela o verdadeiro estado de coisas, afinal de contas ela é o produto
final de um sistema concebido e construído pela classe política
que o utiliza, de modo que sem serem responsabilizados estes palhaços
são capazes de fazer tudo o que lhes agrade quer sejam da alegada
esquerda ou da direita.
Vamos enfrentar isto, a mudança não vai vir através do
sistema parlamentar existente, ele é um motor deteriorado,
construído para uma outra era e, como a eleição se
aproxima, vemos o Partido Trabalhista e o Liberal-Democrata a conversarem
acerca de "mudança do sistema eleitoral", desesperados para
chegar a um eleitorado que os desertou e fez isto exactamente por cima da
barreira política entre os partidos.
Suspender ou não suspender?
Iniciei este ensaio asseverando que sim, que é a mais importante
eleição em 65 anos mas não porque importe qual do
partido "vença" e sim porque o resultado determinará se
a "democracia" parlamentar pode sobreviver ou não.
O que os sabichões chamam um "Parlamento suspenso" na
realidade revela o relacionamento real entre os partidos políticos
exposto à visão de todos, um relacionamento que sem dúvida
terminará em alguma espécie de coligação e, a julgar
pelas informações mais recentes, uma coligação
Liberal-Democrata/Trabalhista. Seja qual for o resultado teremos um eleitorado
alienado dos três principais partidos e não importa o governo que
venha a emergir desta farsa.
"Alan Johnson, o secretário do Interior, revelou ontem fracturas na
Unidade Trabalhista ao apelar por uma vasta reforma eleitoral e disse aos
colegas para não ficarem "assustados" por partilhar poder com
os Liberal Democratas.
(...)
"Os seus comentários foram encarados na noite passada como um sinal
de que ministros começam a contemplar a tentativa de formar uma
coligação governamental, um movimento que provavelmente exigiria
o afastamento de Gordon Brown"
The Independent,
26/Abril/ 2010.
Assim, haverá quaisquer alternativas? Como destaquei alhures, existe o
desejo por uma sociedade mais modesta e, acima de tudo, inclusiva, mesmo se
actualmente pequeno (mas crescente) e em grande medida confinado à
secção da classe trabalhadora (média) e quase ignorado
pela esquerda tradicional, a qual ainda põe suas esperanças sobre
uma
classe trabalhadora que efectivamente já não existe.
Com excepção dos muito mal chamados Liberal-Democratas, esta
secção chave da classe trabalhadora tem apenas o Partido Verde
para articular suas exigências, um partido destituído de uma
alternativa coerente para o capitalismo consumidor.
Portanto, seria mais exacto dizer que não é a
eleição em si que é importante mas o que acontecer
após a eleição. Inevitavelmente, seja quem for que
vença recorrerá aos métodos tradicionais, ou seja, fazer o
povo trabalhador pagar o preço da crise do capital. Como responderemos
na esquerda é o desafio real.
O original encontra-se em
http://en.fondsk.ru/article.php?id=2982
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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