O presidente dos ricos
por Bernard Gensane
Há trinta ou quarenta anos publicava-se um livro por semana como este do
casal Pinçon-Charlot. Em França, na Grã-Bretanha, na
Alemanha, na Itália, etc. Ou seja, uma obra rigorosa, uma análise
radical, numa perspectiva materialista, dos mecanismos políticos e
sociais da sociedade capitalista. A raridade de um trabalho como este
testemunha o recuo muito alarmante de uma reflexão realmente de esquerda
no mundo de hoje, dominado e esmagado pela oligarquia financeira.
Para os autores, a noção de classes desapareceu da linguagem
politicamente correcta. Os movimentos sociais são denunciados como
arcaicos. Os direitos "arrancados com muita luta pelos trabalhadores
tornam-se privilégios inadmissíveis" para os financeiros e
seus intermediários políticos. A supremacia da alta
finança, bem acima da economia real, da produção, impede
de identificar o adversário de classe, "poderoso mas evasivo".
Onde está o campo de batalha, perguntam os Pinçon-Charlot?
Aquando da noite louca do Fouquet's
[1]
, correu champanhe em honra do reforço do limite máximo fiscal
(bouclier fiscal).
Se não houve senão 2722 famílias reembolsadas pelo fisco
em 2007 (19 mil em 2010), é que numerosos ricos, sendo defraudadores
grosseiros, temiam ver-se detectados pelos malditos agentes do fisco. Mas a
contribuição importante dos Pinçon-Charlot é
explique nos pormenores em que este limite máximo injusto se duplica
numa vigarice: "ele tem como efeito isentar os mais ricos de toda nova
forma de tributação: estando já acima do plafond, os novos
impostos não farão senão aumentar a ultrapassagem do
patamar e o seu montante será restituído. Durante este tempo, as
indemnizações entregues às vítimas de um acidente
do trabalho são doravante consideradas como um rendimento e são
portanto tributáveis". Por outras palavras, não à
insegurança fiscal, sim à insegurança para os
trabalhadores! O limite máximo fiscal não seria uma grande coisa
sem a aceitação dos paraísos fiscais. Ao contrário
do que pôde pretender Sarkozy, a França tolera e acolhe tais
doçuras no solo metropolitano. Assim, o estado de Delaware (EUA) possui,
no XVIº distrito de Paris, uma representação francesa,
France Offshore, aconselhamento em deslocalização offshore
nacional, que garante "0% de impostos, nenhuma contabilidade
obrigatória" e o anonimato. Considera-se que os activos franceses
geridos por bancos franceses nos paraísos fiscais atingiam perto de 500
mil milhões de euros em 2008. O que implica que o Estado deixou de
ganhar 20 mil milhões de euros (e entretanto, alguns perguntam-se como
pagar as pensões de reforma). O LVMH
[2]
tem 140 filiais nos paraísos fiscais (a administradora Bernadette
Chodron de Courcel e seu marido Jacques Chirac estarão ao par?).
Não há protecção dos ricos se não houver
nichos fiscais
[3]
. Não há nicho sem um cão que morde. Em 2003, o
número dos nichos era estimado em 418. Em 2008 eram 486. O seu custo
passou de 50 para 74 mil milhões de euros. Em 2008 representavam 27% das
receitas líquidas do Estado.
Face à consanguinidade dos administradores do CAC 40
[4]
, Marx ficaria muito satisfeito: 98 administradores em 445, ou seja, 22%,
detêm 43% dos direitos de voto. Pode-se ir de todas as sociedades a todas
as outras, explicam os autores, "como se não houvesse senão
um fio único a ligá-los, como se não existissem
senão uma única entidade". Entre os administradores,
não faltam os homens de "esquerda", como Huber Védrine
(antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de François
Mitterrand) na LVMH. Por vezes, estamos em plena confusão
ideológica. Próximo do PS, Matthieu Pigasse, é um
banqueiro de investimento à frente de Lazard France et Europe. Trabalhou
no gabinete de Dominique Strauss-Khn em Bercy, depois junto a Laurent Fabius
onde contribuiu para algumas novas privatizações. Ele deve a sua
entrada no Lazard a Alain Minc. Foi por gosto pessoal que em 2009 comprou os
Inrockuptibles
[5]
. O seu forte pendor pela cultura não poderia ser posto em causa:
Bertrand Delanoë nomeou-o administrador do teatro do Châtelet.
Pigasse é igualmente próximo do multi-miliardário de
extrema direita Rupert Murdoch, mas apoia
Rue 89
.
Para coroar tudo, é membro da Fundação Jean Jaurès,
que deve muito a Pierre Mauroy.
Quando um miliardário encontra outro miliardário, eles contam-se
histórias de miliardários. Razão pela qual a burguesia se
sente autorizada agora que, ainda que haja sempre operários,
há cada vez menos classe operária a afirmar-se mais
cinicamente como classe consciente de si própria, em nome dos seus
interesses, para além das clivagens políticas. As elites
administrativas converteram-se maciçamente ao privado e ajudaram o
enfraquecimento do Estado-nação. Dentre outros próximos de
Sarkozy, é reter os exemplos de François Pérol, que foi
objecto de uma informação judiciária por tomada ilegal de
juros, mas que foi elevado à categoria de cavaleiro da Legião de
Honra, ou ainda de Stéphane Richard, cuja casa soberba faz babar de
admiração nosso homenzinho e que teve de enfrentar uma
rectificação fiscal montando a 660 mil euros. O importante
é que as leis do Mercado desregulamentado penetraram no
coração das empresas do Estado.
Outro amigo reluzente: Tapie. A ideia de curto-circuitar a verdadeira
justiça para reembolsá-lo muito abundantemente datava de antes da
eleição presidencial. Em Fevereiro de 2007, Pascal
Clément, ministro da Justiça de Dominique de Villepin,
próximo de Jean-Marie Messier, casado com uma Choiseul Praslin, faz
votar uma emenda no Senado que autoriza o governo a tomar por decreto medidas
permitindo a pessoas de direito público recorrerem à arbitragem.
A emenda é a seguir contestada pelo Conselho Constitucional, o que
não impede Sarkozy, uma vez eleito, de impor o tribunal arbitral.
Composto por três peritos inclusive Pierre Mazeaud, antigo presidente do
Conselho Constitucional que havia contestado a emenda; Jean-Denis Bredin,
antigo presidente dos Radicais de Esquerda e pai de Frédérique
Bredin, enarca
[6]
, ex-ministro socialista, mas sobretudo dirigente importante do grupo
Lagardère. Além de esmagar os fundamentos da justiça
republicana, Sarkozy fará igualmente despenalizar o direito dos
negócios enquanto os pólos financeiros dos tribunais
desaparecerão pouco a pouco.
O livro contém um longo desenvolvimento sobre a
implantação de Sarkozy no [departamento] de Hauts-de-Seine. Os
autores recordam como este rebento de imigrado deu aos seus filhos os nome Jean
e Pierre, ou seja, os dos apóstolos das duas igrejas de Neuilly. O
domínio do homenzinho sobre estes lugares de negócios, de
riquezas, de pessoas influentes e de tradição oligárquica
é total. Mas como o presidente está sempre em excesso (o que
não lhe faz ganhar um único centímetro), ele sofreu alguns
revezes pois a burguesia mantém as suas distâncias: seu candidato
à municipalidade de Neuilly foi batido por um outro representante das
classes superiores e depois ele teve de re-empacotar as ambições
manifestadas em favor do seu filho, estudante médio do segundo ano, para
o qual havia reservado o EPAD
[7]
, que ele próprio presidira.
Quando Sarkozy mofa da filosofia, isso não é triste. É o
Café du Commerce a mofar da pizzaria. Ouçamo-lo a operar este
reducionismo extraordinário sobre as consequências nefastas do
Maio de 68 sobre a vida do capitalismo de hoje: "Vejam como a
contestação de todas as referências ética contribuiu
para enfraquecer a moral do capitalismo, como preparou o terreno para o
capitalismo sem escrúpulos dos paraquedas de ouro, das
retraites chapeau
[8]
, dos patrões vigaristas". Dizer isto (como um Cohn-Bendit no mesmo
comprimento de onda), mantendo-se sempre como defensor encarniçado dos
muito riscos depois de ter bajulado a França que se levanta cedo, foi um
brilhante exercício de comunicação que enganou muita gente
por algum tempo. Ele abusa igualmente de numerosos cidadãos
graças a um discurso contraditório, utilizando termos e
expressões do estilo "flexisegurança",
"desenvolvimento durável". Lagarde
[9]
até inventou o conceito ridículo de
"rilance"
[10]
, antes de ser repreendida pelo seu mestre. O nome do partido de Sarkozy
é igualmente contraditório: uma União do Movimento Popular
que drena 80% dos recursos para Neuilly (onde as habitações
sociais são atribuídas a médicos, advogados ou peritos em
contabilidade). Um partido em que jovens militantes fazem de garotos de rua
atrás da máscara de "Jovens populares", não se
deve espantar de perder regularmente todas as eleições
importantes (ver Bertrand Méheust, La Politique de l'oxymore. Comment
ceux qui nous gouvernent nous masquent la réalité du monde).
Por ocasião da crise financeira de 2008, não é exagero
dizer que Sarkozy arruinou o país. Seu plano de apoio aos bancos montou
a 120 mil milhões de euros, seis vezes o "buraco" da
Segurança Social. Para emprestar, era preciso tomar emprestado nos
mercados financeiros estas quantias fantásticas, cujos juros anuais
montam a 9,5 mil milhões de euros. Consequência: enquanto em 2001
(sob Jospin), os défices anuais representavam 57% do PIB, respeitando as
normas de Maastricht, fomos aos 64% em 2007 e saltámos para os 84% em
2010. Nossos filhos pagarão. Assim como pagarão a prenda dada a
Daguin (5,5% de IVA na restauração) que agrava o orçamento
da França em 2,35 mil milhões de euros por ano.
O que fazer? Os Pinçon-Charlot contribuem com algumas boas respostas
para esta questão histórica:
"Restituir a inteligibilidade das relações de classe"
recusando a abordagem individual dos problemas colectivos.
Dar outra vez referências à classe operária
"denunciando a mentira segundo a qual existiria um contínuo social
onde bastaria tomar o ascensor para atingir os andares superiores".
Recordar que "os homens nascem e permanecem livres e iguais em
direito" e que, após a Constituição de 1958,
"Para a manutenção da força pública, e para as
despesas de administração, é indispensável uma
contribuição comum: ela deve ser igualmente repartida entre todos
os cidadãos, na razão das suas capacidades".
Abolir a acumulação de mandatos que profissionaliza a vida
política e permite a penetração do campo político
pelo mundo dos negócios e pela ideologia de Mercado.
Escandalizar-se pelo facto de um único deputado francês ser, na
origem, um empregado, e que a Assembleia Nacional não tenha senão
um único operário. Os 80% de abstencionistas de Clichy-sous-Bois
[11]
aquando das eleições regionais de 2010 talvez retomem o caminho
das urnas quando a representação nacional, como se diz
abusivamente, estiver mais em harmonia com o país real.
Respeitar os resultados eleitorais, o que não foi feito nem por Sarkozy
nem pelos socialistas quando apelaram à ratificação do
Tratado de Lisboa.
Nacionalizar os bancos, o que permitirá reconstruir "um sistema de
crédito público dando outra vez a prioridade aos financiamentos
das necessidades da população".
Nacionalizar as agências de classificação e suprimir a
Bolsa, uma vez que já não é a Bolsa que financia as
empresas mas o contrário.
Instaurar um imposto progressivo deduzido na fonte sobre todos os rendimentos,
actividade e capital.
Fazer dos ricos um bom exemplo, de modo que os pobres se inspirem com a sua
solidariedade.
Estas medidas não desembocariam no socialismo; elas contribuiriam para
por um fim à omnipotência da oligarquia que encontrou em Sarkozy,
no momento, o seu melhor servidor.
24/Setembro/2010
NT
[1]
Fouquet's:
Hotel de luxo em Paris onde Sarkozy comemorou a vitória
eleitoral.
[2]
LVMH:
holding francesa de empresas de artigos de luxo.
[3]
Nicho fiscal:
Pode ser ou uma derrogação fiscal que permita
pagar menos impostos em certas condições, ou uma lacuna
legislativa que permita escapar ao imposto sem entrar em
infracção.
[4]
CAC 40:
Cotation assistée en continu, índice da Bolsa de
Paris.
[5]
Inrockuptibles:
semanário sobre música rock.
[6]
énarque:
ex-aluno da Escola Nacional de Administração,
de onde sai a elite dirigente francesa.
[7]
EPAD:
Etablissement Public d'Aménagement et de Développement.
[8]
Retraites chapeau:
Regimes de reformas suplementares a cargo dos
empregadores destinados a dirigentes e quadros superiores das empresas que
consideram os montantes acumulados das reformas de base do regime geral ou do
complementar são insuficientes para o "padrão de vida"
dos futuros reformados.
[9]
Christine Lagarde:
ministra da Economia
[10]
Rilance:
Fusão das palavras
rigueur
(rigor) e
relance
(relançamento)
[11]
Clichy-sous-Bois:
Comuna próxima de Paris onde se verificaram
tumultos em Outubro de 2005.
Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot,
Le président des riches. Enquête sur l'oligarchie dans la France de Nicolas Sarkozy
, Paris, 2010. Ver também:
Outras obras dos mesmos autores
.
O original encontra-se em
www.legrandsoir.info/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|