Síria: Carta de um antigo embaixador francês a François
Hollande
México, 2 de Setembro de 2013
Senhor Presidente da República
Na provação que padece actualmente a humanidade devido à
presença de armas químicas na Síria, haveis tomado a
dianteira de um grande movimento mundial em nome da
"obrigação de proteger" as populações
civis ameaçadas. Haveis muito bem explicado no vosso discurso de 27 de
Agosto diante dos vossos Embaixadores que esta era a vocação da
França, tal como a exerceu na Líbia recentemente, e que ela não
falharia no seu dever. Vossa determinação exemplar deveria
rapidamente convencer vossos parceiros europeus hesitantes e as opiniões
públicas relutantes, em França, na Grã-Bretanha, nos
Estados Unidos e por toda a parte do mundo, da boa fundamentação
de uma intervenção militar cirúrgica na Síria.
Naturalmente, como haveis recordado em 27 de Agosto, "a
obrigação de proteger" inscreve-se num procedimento muito
regulamentado pelas Nações Unidas e cabe em primeiro lugar aos
Estados afectados proteger a sua própria população. Em
caso de fracasso da sua parte, é ao Conselho de Segurança que
cabe decidir modalidades de execução deste princípio. Sob
a vossa condução, a França será honrada se fizer
respeitar à letra este avanço importante do direito
internacional. Estou certo de que o Presidente Putine será
sensível aos vossos argumentos assim como o Presidente Xi Jiping e que
não constituirão obstáculo ao vosso projecto opondo-lhe
um veto no Conselho de Segurança. Pouco importa que o objectivo final
ainda seja um pouco impreciso, o que conta é a defesa enérgica de
princípios claros.
Do mesmo modo, estou certo que outros países seguirão a
França na sua intenção de entregar armas aos rebeldes
sírios, apesar dos riscos que isso implica. O sr. Laurent Fabius,
ministro dos Negócios Estrangeiros, anunciou que exigiria dos
destinatários das armas francesas que assinassem um "certificado de
utilizador final". Com uma tal firmeza teremos a garantia de que nossas
armas não cairão nas mãos dos combatentes jihadistas da
Frente Al Nusra-Al Qaeda, que fazem parte da Coligação rebelde
(ainda muito heteróclita mas que tem o mérito de querer
unificar-se, boa sorte!) e não se voltarão contra os
países ocidentais que os têm ajudado ou seus rivais no seio da
Coligação, ou até mesmo das populações civis.
Eis-nos reconfortados. A Al Qaeda deveria compreender a mensagem forte que
vós lhe enviais. É importante explicar bem que nosso inimigo
continua a ser o Terrorismo Internacional, mesmo que de tempos em tempos seja
preciso mostrar-se pragmático, como dizem nossos amigos
anglo-saxões, e estender a mão àqueles que querem a nossa
perda. Estes não deveriam ser insensíveis a nossos gestos
amistosos. Vossos serviços deveriam poder sem dificuldade desmentir a
informação difundida pela agência Associated Press segundo
a qual armas químicas entregues pela nossa aliada Arábia Saudita
(o Príncipe Bandar Bin Sultan, chefe dos serviços sauditas de
informação) à Frente Al Nusra-Al Qaeda teriam sido
manipuladas desajeitadamente por estes aprendizes de feiticeiro.
Uma vez esclarecido este ponto tereis as mãos livres para agir na base
das informações fornecidas pelos Estados Unidos e Israel que
merecem toda a vossa confiança. Entretanto, não seria
inútil evitar que se reproduzisse o cenário de 2003 nas
Nações Unidas quando Colin Powell exibiu fotos manipuladas e um
frasco de pó de pirilimpimpim como provas irrefutáveis da
presença de armas de destruição maciça no Iraque!
Princípio de precaução elementar. Confia-se em vós,
é a credibilidade da França que está em jogo.
Quanto aos objectivos militares desta operação, parece evidente
que devem ser prioritariamente destruir por meios aéreos os
depósitos de armas químicas sem os fazer explodir no nariz da
população civil, o que seria um verdadeiro desastre, e
neutralizar todos os engenhos que permitem a sua utilização
(mísseis, carros, lança-foguetes, etc), sem por em perigo a vida
de nossos soldados sobre um terreno incerto. Se os americanos têm
dificuldade em identificar os alvos, os serviços franceses de
informação terão prazer em lhes fornecer todas as
informações de que dispõem, de tal modo que a
operação seja curta e incisiva e que graças a vós
as armas químicas sejam definitivamente erradicadas do planeta.
As populações que vamos proteger terão um preço a
pagar pelo serviço prestado e devem aceitar antecipadamente algumas
centenas ou milhares de mortos que os efeitos colaterais desta
operação podem provocar, bem como suas consequências em
cascata. Mas é para o seu bem. Se vós tomais a dianteira da
manobra em lugar de vossos colegas Obama e Cameron, que parecem andar para
trás antes mesmo de o pontapé de saída ter sido dado,
Bashar Al Assad compreenderá muito rapidamente com quem tem de tratar. O
Ocidente não deve amolecer, isto seria um mau sinal para o resto do
mundo, conta-se convosco para controlar o leme com firmeza.
Quando esta missão humanitária estiver terminada e Bashar Al
Assad tiver pedido perdão e prometido emendar-se após a surra que
se lhe vai infligir, deixando-o sempre no poder, vós tereis a
satisfação de ter contribuído para aplicar na Síria
a teoria do "caos construtivo" elaborada por
think tanks
americanos na época de George Bush, esperando que as grandes empresas
americanas, principais beneficiárias do caos, terão a bondade de
deixar às empresas francesas a possibilidade de tirar algumas vantagens
da desordem institucionalizada que doravante tem a vocação de se
substituir a Estados forte como é o caso no Iraque ou na Líbia.
Alguns contratos petrolíferos fariam bem para nossos grandes grupos.
Após esta vitória, praticamente garantida por
antecipação, caberá a vós levar alhures a mensagem
humanitária universal da França. As crises são numerosas
no mundo, a lista dos ditadores sanguinários é longa e
milhões de homens, mulheres e criança esperam com alegria que a
França possa protegê-los, conforme a missão que ela se
atribuiu. Pensa-se sempre na África, que está na primeira linha
das nossas preocupações. Mas há fogo em numerosas
regiões do mundo. Uma intervenção militar na Palestina
seria bem vinda, vós sonhais com isso certamente.
No México, estima-se em 70 mil as mortes provocadas pela violência
dos grupos criminosos e das forças de segurança e em 26 mil os
desaparecidos durante o sexénio do Presidente Calderón
(2006-2012). Depois do primeiro ano do mandato do Presidente Peña Nieto,
contam-se já 13 mil mortes. Com toda lógica, com tais
números, a população civil mexicana deveria ser
elegível para os benefícios do programa
"operação de proteger" concebido pela "comunidade
internacional", mesmo se esta hoje está reduzida apenas à
França. No ponto em que estamos, é preciso certamente que um
país se devote a ser a vanguarda que age de uma comunidade internacional
amorfa e irresponsável, "conjunto gasoso e incerto" como disse
Hubert Védrine a propósito da União Europeia. Mais vale
estar só do que mal acompanhado. Tratando-se do México,
poder-se-á tirar as lições da intervenção
militar francesa de 1862 e não repetir o erro que conduziu à
frustração os exércitos de Napoleão III:
desencadear operações militares injustificadas e
longínquas que ultrapassam as nossas forças.
Para isso será preciso, mas vós o haveis previsto evidentemente,
programar mais meios orçamentais, por exemplo para a
construção de novos porta-aviões nucleares, dos
aviões e mísseis que nele vão. O "Charles de
Gaulle" presta brilhantes serviços quando não está
imobilizado nos nossos arsenais para demasiado longos períodos de
revisão, mas ele terá dificuldade em responder só a todos
os pedidos de intervenção sobretudo quando deverá sulcar
mares longínquos, exóticos e perigosos. Estou certo de que
vós sabereis persuadir nossos compatriotas de que nas
circunstâncias actuais o mundo ocidental, para prosseguir sua
missão civilizadora, pilar da globalização, deverá
dotar-se dos meios orçamentais.
Recordam-se constrangimentos que impediram as forças francesas de
atingir a Líbia ainda mais maciçamente. Seus stocks de
mísseis esgotaram-se rapidamente o orçamento da Defesa não
havia previsto que o abominável Kadafi, contudo amigo íntimo do
vosso antecessor, seria tão pouco sensível a nossos problemas
orçamentais opondo uma resistência tão feroz quanto
inútil. A população, se estiver bem informada, certamente
aceitará de bom grado o aumento dos impostos e os cortes nas despesas
públicas, nomeadamente as sociais, assim como das bolsas escolares para
os franceses do estrangeiro, e ainda a redução dos meios da rede
diplomática, consular, educativa e cultural francesa no mundo se este
for o preço a pagar para que a França mantenha seu estatuto de
grande potência mundial. Tudo é questão de pedagogia.
Senhor Presidente, vós sabeis que nossos amigos e aliados americanos nem
sempre têm uma imagem muito boa no mundo. A França, com os
Presidentes De Gaulle, Mitterrand e Chirac, desfrutou de um grande
prestígio internacional, exactamente porque falava com uma voz diferente
daquela dos seus aliados ocidentais. O Presidente Sarkozy acabou esta
tradição diplomática, pensando que a França tinha
todo interesse, no contexto da mundialização e face à
importância crescente de novos actores, a fundir-se na
"família ocidental" e a reintegrar o aparelho militar da NATO,
ou seja, a colocar suas forças convencionais sob o comando americano.
"O tempora! O mores!"
como disse Cícero no seu tempo. Mas vossos Embaixadores já
tiveram de vos assinalar que doravante em numerosos países a
França é percebida como um relé servil da política
americana. Episódios recentes, como o caso Snowden com a
intercepção do Presidente Evo Morales aquando do seu sobrevoo da
Europa, puderam dar esta impressão lamentável, mas estou
convencido que não tereis nenhuma dificuldade em persuadir vossos
interlocutores do mundo inteiro de que esta percepção é
errónea, pois foi com toda independência que haveis confirmado a
ancoragem da França na sua "família ocidental".
Finalmente, penso que haveis reflectido na melhor maneira de proteger as
populações mundiais das catástrofes humanitárias
provocadas pelo capitalismo mafioso e predador na origem das últimas
crises económicas e financeiras. Está provavelmente nas vossas
intenções propor a vossos colegas do G7 e do G20, que ireis
encontrar na Cimeira de São Petesburgo, mudar de rumo a fim de por um
fim à economia de casino e ao império da finança sem
controle. A opinião pública mundial, os desempregados na
Grécia, em Portugal, na Espanha, em França e alhures,
provavelmente apreciariam ataques cirúrgicos contra o FMI, o Banco
Central Europeu, a City de Londres, alguns paraísos fiscais
"não cooperativos" ou improváveis agências de
notação que fazem dobrar os governos.
Uma tal coerência na aplicação da
"obrigação de proteger" honrará a França
e seu Presidente. E continuando sem descanso nesta via e defendendo como fazeis
o direito internacional e as normas fixadas pelas Nações Unidas,
não há nenhuma dúvida de que antes do fim do vosso mandato
vos juntareis ao vosso colega e amigo Barack Obama no clube muito selecto dos
Prémio Nobel da Paz. Vós o tereis bem merecido.
Queira aceitar, Senhor Presidente, a garantia da minha muito alta e respeitosa
consideração.
Pierre Charasse, Francês do estrangeiro, contribuinte e eleitor.
[*]
Diplomata de carreira de 1972 a 2009. Foi embaixador no Paquistão,
no Uruguai e no Peru. Representou a França em numerosas instâncias
internacionais. Actualmente está reformado e reside no México.
O original encontra-se em
www.legrandsoir.info/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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