O BCE, a QE e a fuga à estagnação
O anúncio de Mário Draghi na reunião do conselho de
administração de 22/Janeiro do Banco Central Europeu (BCE) de que
este e os bancos centrais nacionais da zona Euro injectariam 1,1
milhão de milhões de crédito novo ao longo dos
próximos 18 meses nos bancos da área certamente teve um resultado
rápido. O Euro caiu numa queda de onze anos contra o US dólar.
O BCE finalmente aderiu ao Federal Reserve, ao Banco da Inglaterra e ao Banco
do Japão naquilo que é chamado sem rodeios como facilidade
quantitativa
(quantitative easing, QE).
Isto é, a compra directa pelos bancos centrais de títulos de
governos, corporações e imobiliários pagos por meio de
"impressão de dinheiro", ou mais precisamente criando
electronicamente reservas de dinheiro em bancos.
Até agora, o BCE evitara fazer esta QE e, ao invés, meramente
emprestava dinheiro ou crédito aos bancos por períodos de tempo
cada vez maiores (agora de até três anos) a taxas de juro
virtualmente de zero. O governo alemão e os da Europa do Norte
opunham-se à compra de títulos da Irlanda, Espanha, Portugal,
Itália e Grécia, os governos perdulários. Eles temiam que
tais compras permitissem a estes governos gastarem como quisessem e colocarem
em risco o contribuinte alemão em decorrência de quaisquer
incumprimentos sobre esta dívida.
Mas tamanha tem sido a estagnação da maior parte das economias da
zona Euro e a perspectiva crescente de deflação absoluta que os
alemães, holandeses e finlandeses foram persuadidos, a patear e a
gritar, a que o BCE deve arriscar e comprar títulos italianos e
espanhóis detidos por bancos, companhias de seguros, fundos de
pensões e hedge funds e esperam que isto ajude a por em movimento a
economia da zona Euro e evitar a deflação.
Como expliquei na minha mensagem anterior
(
https://thenextrecession.wordpress.com/2015/01/11/the-spectre-of-deflation/
)
e também agora num artigo para o
Weekly Worker
desta semana
(
weeklyworker.co.uk/worker/1042/the-spectre-of-deflation/
),
há o espectro da deflação a pairar sobre a Europa, o qual
poderia arrastar toda a região a uma depressão profunda e a uma
euro crise renovada. Assim, esta acção era necessária.
O pacote de Draghi é muito maior do que o esperado, injectando a cada
mês fundos equivalentes a 0,6% do PIB da zona Euro. Isto é muito
mais, em termos relativos, do que qualquer outro programa QE do Fed, do BdI ou
do BdJ.
Para os dubitativos São Tomés alemães houve uma folha de
parreira: que 80% do suposto risco das novas compras de dívidas
governamentais seria remetida a bancos centrais nacionais e não
partilhada pelo Eurosistema. Mas isso é uma ilusão: se qualquer
banco central nacional entrar em perturbação devido a perdas com
a compra dos títulos do seu próprio governo, o BCE teria de
salvá-los de qualquer forma.
Assim, a pergunta real é: será que esta enorme QE
levantará a economia da zona Euro da sua depressão quase
deflacionária? Bem, ela certamente está a conduzir Euro para
baixo. Isso ajudará exportadores da zona Euro a competirem nos mercados
mundiais contra os da Suíça, EUA e alguns produtores
asiáticos. Mas como a maior parte das exportações de cada
estado membro da União Monetária Europeia (UME) são
diferentes uns dos outros, um euro mais fraco não será suficiente
para fazer com que as coisas andem.
A menos que os salários reais (os quais têm estado a cair na maior
parte das economias da zona Euro) e o investimento em negócios (os quais
permanecem estagnados na maior parte das economia da zona Euro) comecem a
subir, não haverá escapatória à
estagnação e à depressão.
E a QE não fará isso, como expliquei com mais pormenor numa
mensagem anterior
(
thenextrecession.wordpress.com/2014/11/02/the-story-of-qe-and-the-recovery/
). Desde a utilização do QE a partir de 2010 por vários
bancos centrais, o crescimento global tem permanecido fraco e com
tendência baixa e a recuperação no emprego e no
investimento tem sido fraca apesar de uma enorme impressora electrónica
de dinheiro. O crescimento económico real não tem correspondido.
É a procura por crédito ou dinheiro que conduz a oferta
monetária, não a oferta a criar a procura. E a procura por moeda
tem sido fraca porque a actividade económica é fraca. Para
utilizar outro cliché: você pode levar um cavalo à
água, mas não pode fazê-lo beber. O "multiplicador da
moeda", o rácio do montante de moeda impresso pelo Fed em
relação ao montante de moeda a circular na economia caiu como uma
pedra.
A QE não funcionou para elevar as taxas de crescimento económico
de volta aos níveis anteriores à crise. Assim, para onde tem ido
todo o dinheiro? Ele tem ido para dentro do sistema bancário para
escorar seus balanços e restaurar seus lucros. E isto engendrou uma
bolha maciça em activos financeiros; e os preços de
títulos do governo e corporativos e, acima de tudo, de
acções, tem-se elevado a alturas recorde.
Os únicos beneficiários têm sido os 1% de topo dos
detentores de riqueza que por toda a parte possuem o grosso dos activos
financeiros.
Quando a QE principiou, em 2010, economistas convencionais
(mainstream),
tanto monetaristas como o antigo presidente do Fed, Ben Bernanke, como os
keynesianos, como Paul Krugman, consideraram a QE como a principal arma
económica para por economias em movimento. Krugman argumentou mesmo que
o programa QE do Banco do Japão retiraria o Japão da sua
estagnação.
Quão errado podia estar? O objectivo do BoJ de uma taxa de
inflação de 2% permanece uma quimera cerca de quatro anos depois,
enquanto a economia real do Japão paira perto da recessão apesar
de um programa QE que representou uma ascensão nos haveres de
títulos do governo equivalente a 50% do PIB e em crescimento.
(
thenextrecession.wordpress.com/2014/10/13/japan-the-failure-of-abenomics/
). Haverá o mesmo resultado para o programa QE do BCE: o Euro pode cair,
como aconteceu com o yen depois de o BoJ iniciar o seu programa. Mas não
haverá recuperação significativa do crescimento
económico.
Os keynesianos continuam a insistir em ainda mais QE. Mas também
procuram mais acção orçamental, nomeadamente incorrendo em
défices orçamentais mais altos de modo a que os governos comecem
a gastar mais em infraestrutura, serviços governamentais e mesmo defesa.
Isto pode proporcionar algum apoio limitado ao crescimento. Mas tomadas de
empréstimos extra por parte do governo são anátema para os
estrategas do capital porque isso acabaria por resultar em taxas de juro mais
altos e possivelmente maior tributação mais adiante, e portanto
menor lucratividade num momento em que a lucratividade na maior parte das
economias ainda está abaixo do nível de antes da Grande
recessão (ver,
thenextrecession.wordpress.com/...
e o estudo conjunto de G. Carchedi e eu sobre a eficácia do gasto
orçamental de tipo keynesiano, The long roots of the present crisis).
Na verdade, longe de procurar um aumento da QE ou da despesa do governo, o Fed
dos EUA prepara-se para aumentar sua "política de taxa" no fim
deste ano. E o risco é de que se o Fed implementar um aumento das taxas
de juro em 2015, então o boom financeiro também entrará em
colapso e os lucros começarão a cair, aumentando o risco de um
novo declínio
(slump)
(ver,
thenextrecession.wordpress.com/2014/08/01/the-risk-of-another-1937/
).
Economistas convencionais começaram a reconhecer que as principais
economias capitalistas não estão a retornar ao normal, mas sim
trancadas em algo a que eles agora chamam "estagnação
secular", o tema principal da recente reunião anual da American
Economics Association. Como pode as economias escapar?
Um novo relatório da OCDE tenta apresentar algumas respostas (
escaping-the-stagnation-trap-policy-options-for-the-euro-area-and-japan-1
). A OCDE é absolutamente clara: "A economia global continua a
actuar a baixa velocidade e muitos países, particularmente na Europa,
parecem incapazes de ultrapassar o legado da crise. Com alto desemprego, alta
desigualdade e baixa confiança ainda a pesarem fortemente, é
imperioso implementar rapidamente reformas que promovam a procura e o emprego e
despertem o potencial de crescimento. O tempo para actuar é agora.
Há um risco crescente de estagnação persistente, em que a
fraca procura e o fraco crescimento do produto potencial reforçam-se
mutuamente num círculo vicioso".
Ainda mais sombriamente, o relatório chega a dizer: "Os motores da
economia mundial continuam a actuar só a meia velocidade. O crescimento
é baixo e desigual e algumas partes do mundo, tais como a área
Euro, estão em risco de cair dentro de uma armadilha de
estagnação persistente, um período extenso de baixa
actividade económica geral e baixo emprego apesar de estímulos
monetários extraordinários. Um círculo vicioso está
a desenvolver-se, com procura fraca a minar o crescimento potencial (ex.
através de uma deterioração do stock de capital,
desemprego estrutural e desigualdade mais alta) e fraco crescimento potencial
mais uma vez reduzindo a procura (ex. ao desencorajar investimento em
capacidade de expansão)".
Realmente nada podia ser pior, excepto um outro declínio global.
Então o que deve ser feito?
A OCDE apoia a política actual da QE e fala de gastos em investimento.
"Com o lançamento das "três setas" do Japão
em 2013, o recente lançamento da UE de um plano de investimento e o
esperado movimento da área Euro em direcção à
facilidade quantitativa, a probabilidade de escapar à armadilha da
estagnação está a aumentar". Mas não
será suficiente: "é necessária nova
acção para sustentar este momento de reforma positiva".
E o que podia ser isto? "Reformas estruturais são urgentemente
necessárias para remover obstáculos regulamentares ao
investimento, reduzir o fardo administrativo para os negócios e
facilitar reestruturações das empresas". Com efeito, a OCDE
quer ainda mais desregulamentação nas práticas de
negócios, completa "flexibilidade" nos mercados de trabalho e
mais livre comércio, particularmente em serviços: "reduzindo
barreiras regulamentares ... Novos desmantelamentos de barreiras de fronteiras
e para além de fronteiras aos movimentos internacionais de bens e
serviços servirão tanto à expansão da procura como
tornarão os mercados mais competitivos e dinâmicos". Por
outras palavras, a OCDE quer mais políticas "neoliberais" para
permitir às "forças de mercado" trabalharem. Com
efeito, ela quer "mercados livres" no trabalho para manter baixos os
custos do trabalho e livre movimento de capital internacionalmente para elevar
a lucratividade. Aparentemente, o problema é que não se
está a permitir o capitalismo de funcionar, não que ele
não funcione.
A QE nos últimos quatro anos não conseguiu que as principais
economias capitalistas avançassem; os gastos orçamentais
deficitários tão pouco funcionaram no Japão;
assim os estrategas do capital olham para a "terceira seta" do
enfraquecimento do trabalho e da extensão do "livre" movimento
do
capital como sendo a resposta. Mas o caminho mais provável de
saída é outro declínio que destrua valores de
capital e eleve a lucratividade média.
[*]
Economista, britânico.
O original encontra-se em
thenextrecession.wordpress.com/2015/01/23/the-ecb-qe-and-escaping-stagnation/
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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