O euro e as mentiras
por Jacques Sapir
Este texto é retirado do livro,
L'Euro contre la France, l'Euro contre l'Europe,
que será publicado em meados de setembro nas edições CERF.
É preciso voltar às origens do
Euro. O Euro foi apresentado como uma grande promessa que se transformou numa
grande mentira. O discurso a favor do Euro fundamentava-se alegadamente em
bases científicas. Vamos então verificar o que na realidade ele
é.
Os falsos profetas
Tal como os reis magos dos Evangelhos, as três principais
contribuições, as de Robert Mundell, R. McKinnon e Peter Kennen,
vieram trazer a 'boa nova da União Monetária. Os seus
trabalhos tiveram uma influência considerável sobre outros
economistas convencendo-os que a flexibilidade da taxa de câmbio passava
a ser supérflua. Os estudos recentes mostram claramente o oposto.
A teoria das zonas monetárias ótimas foi enunciada pelo
economista Robert Mundell em 1961
[1]
. Ele pretendia estabelecer razões teóricas para a
existência de áreas onde seria vantajoso ter uma moeda
única. Allan Robert McKinnon trouxe os fundamentos a este
edifício
[2]
, explicando que quanto mais importante for a abertura de uma economia ao
exterior, mais se reduz a importância da taxa de câmbio. Peter
Kennen
[3]
, mostrava que, se a economia de um país era diversificada, essa
diversificação reduzia amplitude do que os economistas chamam
"choques exógenos" permitindo que esse país estivesse
ligado a outros por uma taxa de câmbio fixa. Destes trabalhos, poderia
então deduzir-se que um país tem interesse ligar-se a outros
através de uma moeda única desde que capital e trabalho fossem
perfeitamente flexíveis (o que mostrava Mundell), que o país
estivesse bastante aberto ao comércio internacional (McKinnon) e que a
sua economia fosse amplamente diversificaram (Kennen).
Outros economistas pretenderam demonstrar que os países tirariam
vantagens económicas significativas de uma moeda única, que
supostamente faria crescer a produção, como pretendia demonstrar
Andrew K. Rose
[4]
Os seus trabalhos deram origem a uma literatura extremamente favorável
a uniões monetárias, descrevendo as moedas nacionais como
"barreiras" para o comércio
[5]
A integração monetária conduziria a um aumento acentuado
da produção e do potencial de trocas comerciais internacionais
[6]
. Assim a União Monetária Europeia iria criar
condições para o sucesso de uma "zona monetária
ótima
[7]
num movimento que parecia dever ser endógeno
[8]
. Donde as famosas e imprudentes declarações de diversos
políticos, alegando que o Euro iria conduzir, pela sua própria
existência, a um forte crescimento. Assim, Jacques Delors e Romano Prodi,
disseram que o Euro faria aumentar o crescimento europeu em mais 1% a 1,5% ao
ano durante vários anos
[9]
. Foram muito maus profetas.
As armas da crítica
Outras pesquisas, baseadas em dados mais completos e mais rigorosos, reduziram
drasticamente os efeitos positivos da união monetária
[10]
. Os trabalhos de Rose e parceiros foram fortemente criticados devido ao
método econométrico utilizado
[11]
. Uma crítica fundamental era que estes modelos não levavam em
conta a resiliência do comércio internacional
[12]
. Harry Kelejian retomou as estimativas dos efeitos da união
monetária sobre o comércio dos Estados-membros
[13]
. Os resultados são devastadores. O impacto econômico da
união económica e monetária no crescimento de
comércio é estimado entre 4,7% e 6,3%, ou seja muito longe das
estimativas mais pessimistas de trabalhos anteriores que colocavam estes
efeitos em 20%, e isto sem mesmo mencionar as primeiras análises de Rose
que os situavam entre 200% e 300%. Em dez anos, o efeito foi reduzido de 10
para 1 (de 200% para 20%)
[14]
e, em seguida, uma nova redução trouxe esses efeitos para uma
média de 5% (um fator de 4 para 1)
[15]
.
Os efeitos positivos de uma união monetária foram, portanto,
amplamente exagerados, obviamente por razões políticas. Os mais
extravagantes anúncios sobre os efeitos positivos da união
económica e monetária foram feitos precisamente no momento da
introdução do Euro. A mentira era efetivamente enorme.
A importância da taxa de câmbio
No entanto, os mesmos argumentos são agora usados para difundir a ideia
de que uma dissolução do Euro seria uma catástrofe, porque
utilizam para fins de propaganda, os mesmos números, mas desta vez de
forma inversa para "prever" um colapso do comércio
internacional dos países em causa e, portanto, uma queda do PIB no caso
de uma saída do Euro. Ora, se o efeito sobre o comércio
internacional, produzido por uma zona monetária é baixo, é
necessário deduzir-se que inversamente o efeito dos preços (o
chamado "custo competitividade") é muito mais importante do
que diz o discurso dominante
[16]
. O que volta a dar toda a importância às
desvalorizações para restabelecer a competitividade de certos
países.
O impacto da taxa de câmbio sobre os saldos comerciais era conhecido. A
velocidade da 'recuperação' na Rússia em 1999 e 2000 em
particular, como resultado de uma desvalorização maciça,
foi um dos principais argumentos neste sentido. Os economistas do FMI
realizaram um estudo bastante sistemático em mais de 50 países
[17]
não encontrando nenhum sinal da tão citada famosa
"desconexão" entre os fluxos de comércio internacional
e taxas de câmbio. O estudo mostra que, em média, para uma
depreciação da taxa de câmbio de 10%, podemos obter um
ganho de 1,5% do PIB. A internacionalização das "cadeias de
valor" tem certamente um efeito moderador sobre estes ganhos
[18]
, mas o desenvolvimento destes é progressivo e não pode de
nenhuma maneira contrariar os efeitos positivos de uma forte
depreciação da taxa de câmbio
[19]
, o que é reforçado por um estudo recente do FMI
[20]
.
O Euro foi portanto vendido às populações (e aos
eleitores) com base em repetidas mentiras, mentiras revestidas de um discurso
que se pretendia científico, mas que de forma alguma o era. Os
economistas, que apoiam o Euro raciocinam como se estivessem necessariamente
reunidas as condições para a materialização dos
potenciais benefícios que proclamavam e como se as vantagens potenciais
do Euro devessem sempre superar as desvantagens. É aí que se
situa a sua responsabilidade. Nisso eles foram portadores de uma 'boa nova',
que demonstrou ser, para os povos, um verdadeiro pesadelo.
[1]
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, vol. 51, n°5, 1961, pp. 657-665.
[2]
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The American Economic Review
, Vol. 53, No. 4 (Sep., 1963), pp. 717-725
[3]
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[4]
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large,"
Economic Policy
Vol. 33, 449-461.
[5]
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[6]
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output ",
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, Vol. 108, n°441, pp. 1009-25.
[7]
Consultar sobre este assunto Master 2 , Laurentjoye T., (2013),
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l'épreuve de la crise de la zone euro
, Formation " Économie des Institutions ", EHESS,
Paris, septembre 2013.
[8]
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Economic Journal,
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[9]
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, Le Seuil, Paris.
[10]
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Journal of International money and finance
, Vol. 27 (8): 1244-1260.
[11]
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Economic Policy
, n°33, pp. 435-448 ; Nitsch V. (2002), " Honey I Shrunk
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, Vol. 25, n° 4, pp. 457-474.
[12]
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, 117, pp.134-161.
[13]
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, 136
[14]
Do trabalho incial de A.K. Rose datanto de 2000 mas realizado entre 1997
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",
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30, op.cit., au travail de R. Glick et A.K. Rose, datant de 2002,
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Evidence ", op. cit..
[15]
Bun, M., Klaasen, F. (2007), " The euro effect on trade is not as
large as commonly thought",
Oxford bulletin of economics and statistics
, op.cit., estiment l'effet " positif " de l'UEM à
3%, o que o coloca largamente no interval de erros deste género de
estimativas
[16]
É além disso o sentido de uma nota redigida por P. Artus,
" C'est la compétitivité-coût qui devient la
variable essentielle ",
Flash-Économie
, Natixis, n°596, 30 août 2013.
[17]
Leigh, D, W Lian, M Poplawski-Ribeiro et V Tsyrennikov (2015),
"Exchange rates and trade flows: disconnected?", Chapitre 3 in
World Economic Outlook
, IMF, Octobre 2015.
[18]
Ahmed, S, M Appendino, and M Ruta, "Depreciations without Exports?
Global Value Chains and the Exchange Rate Elasticity of Exports,"
World Bank Policy Research Working Paper
7390, World Bank, Washington DC, 2015.
[19]
Ver Johnson, R C, and G Noguera, "Fragmentation and Trade in Value
Added over Four Decades."
NBER Working Paper
n°18186, Harvard, NBER, 2012 et Duval, R, K Cheng, K. Hwa Oh, R.
Saraf, and D. Seneviratne, "Trade Integration and Business Cycle
Synchronization: A Reappraisal with Focus on Asia,"
IMF Working Paper
n° 14/52, International Monetary Fund, Washington DC, 2014.
[20]
IMF/FMI, 2016 External Sector Report, Wahington D.C., 27 julho de 2016
,
www.imf.org/external/pp/ppindex.aspx
.
O original encontra-se em
russeurope.hypotheses.org/5157
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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