"O mandato de prisão europeu dá força de lei ao que
há de pior na Europa"
entrevista de Jean-Claude Paye
[*]
Se há mais resistência social, haverá mais luta. E mais
repressão? Mantem-se a impressão de que a União Europeia
seria muito mais democrática do que os EUA também no plano das
regras internas.
Que ela não adopta leis tão graves como Bush com o seu
"Patriot Act".
Mas, na verdade, se se estiver bem informado, verifica-se que a União
Europeia está em vias, às escondidas, de fazer passar uma
série de leis antidemocráticas extremamente perigosas. Portanto,
vale a pena ouvir Jean-Claude Paye, um dos melhores especialistas sobre os
nossos direitos democráticos. Para sabermos o que é que
está a ser
preparado concretamente no plano da repressão.
Jean-Claude Paye. Se se quiser saber o que é a União Europeia,
há muito mais do que a Constituição, é preciso
observar o lado da cooperação policial e judiciária e
sobretudo como essa cooperação está inscrita no direito
penal e no procedimento penal. E como se organiza essa cooperação
europeia com os estados exteriores, principalmente os Estados Unidos. E
aí apercebemo-nos de duas coisas:
A União Europeia não é um Estado supranacional em vias
de construção mas antes uma coligação de Estados
nacionais cujos diferentes poderes se reforçam através da
construção europeia.
Em segundo lugar, a União Europeia não é uma alternativa
ao poder dos Estados Unidos. Antes pelo contrário, apercebemo-nos de que
ela é uma pequena substrutura inscrita num conjunto maior que é
dominado pelo poder executivo americano.
Vou dar alguns exemplos...
Uma semana depois dos atentados do 11 de Setembro, dois projectos de
decisões-quadro foram entregues subitamente pela Comissão ao
Conselho. Há o projecto relativo ao terrorismo e o projecto relativo ao
mandato de prisão europeu.
Estes dois projectos são apresentados como resultantes dos atentados do
11 de Setembro. Mas pode-se perguntar, se se tiver um pouco de bom senso, como
se podem estabelecer dois projectos de lei num espaço de uma semana.
Estima-se que é preciso seis meses a um ano para redigir a lei e mais
ainda para concebê-la. Portanto, pode-se dizer sem erro que, tanto do
lado europeu como do lado americano, havia projectos de lei nas gavetas e que
esperavam uma boa altura para serem aprovados.
Se se olhar do lado europeu, vê-se "decisão-quadro relativa
ao terrorismo". Se existiam apenas seis países a
França, Alemanha, Inglaterra, Itália, Espanha e Portugal
que beneficiavam já de uma lei anti-terrorista. Países como a
Bélgica tinham a possibilidade de perseguir os actos terroristas com
outras legislações. Por exemplo, os delitos clássicos tais
como a morte, o desvio de um avião ou colocar uma bomba, foi sempre
punido em qualquer direito penal, não é preciso uma
legislação especial para isso. Mais, na Bélgica,
não havia ideias como as de associação de malfeitores ou
de redes criminosas, que permitiam já investigar e perseguir as
próprias organizações e criar um delito de pertença.
Portanto, era possível ser perseguido pelo simples facto de pertencer a
uma organização sem ter cometido um determinado delito. Há
no código penal dos países que não tinham
legislação anti-terrorista tudo o que é preciso e mais
ainda para perseguir delitos terroristas. Portanto, se se impõe aos nove
países que não têm uma lei anti-terrorista integrar uma tal
legislação nos seus códigos penais, isto é devido a
um conjunto de razões que não são confessadas.
Então, estas razões podem ser vistas nos países que
já tinham uma tal legislação. Percebe-se que em
países como a Alemanha, Espanha, Itália as leis anti-terroristas
permitem uma generalização dos procedimentos de
excepção a todos os estádios do procedimento penal: desde
a investigação policial até à prisão das
pessoas.
Por exemplo, em Espanha, se se é suspeito de terrorismo, não se
tem a escolha do advogado, tem-se um advogado que é designado pelas
pessoas que o prendem. De seguida há uma espera de 72 horas durante a
qual o acusado não pode ver ninguém, nem fazer um telefonema para
a família, nem mesmo telefonar a um advogado senão para aquele
lhe é designado. Pode falar com esse advogado no fim dessas 72 horas a
partir do momento em que assine a sua declaração
normalmente de confissões depois de ter sido submetido ao que se
chama de "pressões físicas moderadas" no léxico
americano, o mesmo é dizer que a tortura é sistemática em
Espanha.
Em Itália, há a possibilidade de estar preso até dez anos
e oito meses. Na Alemanha, pode-se ler o correio entre o advogado e a pessoa
que está detida. Pode-se fazer dessa forma o percurso por todas as
legislações anti-terroristas a nível nacional. Cada uma
delas permite desenvolver procedimentos de excepção.
Portanto, pode dizer-se que se se quer impor um tal tipo de
legislação a nível europeu não é para lutar
contra o terrorismo, porque há já tudo o que é preciso,
é simplesmente para poder generalizar os procedimentos de
excepção em todos os países que terão este tipo de
legislação.
Aí, intervém a segunda
"proposição-quadro" apresentada após os
atentados do 11 de Setembro: "o mandato de prisão europeu"
que a Bélgica integrou no seu código penal tal como o conjunto
dos outros países europeus.
O mandato de prisão europeu é um procedimento que substitui os
acordos de extradição. Porque os acordos aborrecem muito a
justiça e a polícia, é moroso e há muitos controlos
que se têm de efectuar tais como o pedido de legalidade: será que
o pedido é legal? Será que há um delito inscrito na
legislação do país que recebe o pedido?
Isso não é de somenos importância. Porque, num país
como a Itália, há sempre incriminações que
saíram do código fascista. Há, por exemplo, a
noção de organização subversiva, uma
organização subversiva é uma organização que
por exemplo defende a luta de classes, que preconiza o derrubamento pela
violência de uma classe por uma outra. E geralmente, desde o fim dos anos
70, todas as pessoas dos movimentos sociais são perseguidas com base
nesta incriminação. Não só é uma
incriminação que data de 1923, que foi redigida pelo ministro da
Justiça de Mussolini, e que não foi suprimida antes foi
reforçada. Em 1979, a lei Cossiga confirma a noção de
incriminação subversiva e aumenta as penas em caso de terrorismo.
O exemplo italiano é muito interessante porque, do ponto de vista do
direito, fez-se inteiramente a junção entre o direito fascista e
o direito da modernidade onde as excepções são baseadas na
noção de organização terrorista.
Assim, todos os pedidos de extradição que ocorriam nesta base de
incriminação, por exemplo para pessoas refugiadas na
Bélgica ou na França, eram recusadas pelo poder político
porque isso não era uma incriminação reconhecida em
França ou na Bélgica. Com o mandato de prisão europeu,
isso já não tem importância, não é preciso
que seja um delito no país que receba o pedido, é suficiente que
um país reclame a pessoa e a pessoa é quase automaticamente
enviada. As únicas coisas, nas quais se pode intervir, são as
questões de procedimento, se os carimbos bem colocados, em ordem e se
por exemplo não há prescrição.
Você recorda-se de que há dois bascos na Bélgica para quem
a Espanha pede a extradição no quadro do mandato de
prisão. Eles estavam na Bélgica há mais de dez anos e a
Espanha já tinha pedido duas vezes a sua extradição com
base em antigos procedimentos. Isso foi sempre recusado com base na
ilegalidade: essas pessoas eram acusadas de ter albergado personalidades da ETA
que meses depois de estarem com eles cometeram um atentado. O problema para o
poder é que eles tinham sido denunciados por uma pessoa que tinha sido
torturada e um julgamento em Espanha reconheceria que, devido à tortura,
estes testemunhos eram nulos.
É uma situação de "força julgada", em que
há um acto judicial que diz que o pedido é ilegal mesmo do lado
espanhol. Mas neste quadro do mandato de prisão, não é
relevante, o pedido é satisfeito. Portanto, estes dois bascos
permaneceram na Bélgica porque houve prescrição. Mas se
eles estivessem na Bélgica há quatro ou cinco anos, essas pessoas
teriam sido entregues automaticamente.
Com este novo procedimento do mandato de prisão europeu, não
há
mais decisão a tomar por um poder político que pode eventualmente
ser submetido a pressões ou a uma mobilização como nesse
caso ou aquele de um refugiado turco, há alguns anos. Isso quer dizer
que a polícia e a justiça poderão automatizar as
extradições?
É exactamente isso. É um procedimento automático baseado
num princípio que se chama reconhecimento mútuo. Quer dizer que
toda decisão de uma autoridade judicial de um país europeu
é reconhecida automaticamente como democrática pelos outros.
Isso quer dizer que a incriminação fascista italiana se torna
automaticamente democrática. Quer dizer que a Espanha que pede pessoas
para as torturar, impedindo-as de ter um advogado, é tudo um
procedimento democrático. Portanto, vê-se que, no quadro do
"mandato de prisão" através de uma
legislação anti-terrorista, cada país desenvolve
procedimentos de excepção diferentes que têm cabimento
não só no país onde as leis são votadas mas
também no resto da Europa.
Portanto, de facto, toma-se o que há de pior na Europa e
dá-se-lhe o direito de ser a lei em toda a Europa...
Muito bem resumido! Portanto, teremos o pior de cada
legislação nacional mas também o pior da
unificação europeia. Há qualquer coisa de interessante na
"decisão-quadro europeia" em relação às
leis já existentes mesmo em relação ao seu modelo
inglês. Porque ainda não lhe tinha dito, mas explicam-nos as leis
anti-terroristas aprovadas depois do 11 de Setembro, com prazos de três
dias, uma semana... Não é crível, mas se se toma a lei
inglesa que serviu de modelo à redacção da
"decisão quadro europeia", ela entrou em vigor em Fevereiro de
2000. Ou seja, sete meses antes dos atentados, houve portanto capacidade
de antecipação dos acontecimentos, pode tirar as
conclusões.
O que é interessante nesta decisão, mesmo de acordo com as leis
mais modernas como a lei inglesa, é que ela introduz este elemento. Em
cada lei anti-terrorista, você tem um elemento objectivo, por exemplo
desviar um avião, um homicídio. E um elemento subjectivo, quando
se comete uma acção com o fim de fazer pressão sobre um
governo ou uma organização internacional. É pois
interessante porque, por exemplo, o fito de todo o movimento social em que
você se manifesta é fazer pressão sobre o governo para que
ele não privatize os serviços públicos. Você faz
pressão sobre o governo, portanto já entra nesse tal quadro.
Além disso, na "decisão quadro europeia" o elemento
objectivo não tem necessariamente de ser um homicídio, pode ser
igualmente a tomada de assalto de um edifício público ou um meio
de transporte público. Portanto a tomada de um meio de transporte
público para evitar a sua captura privada, ou seja a sua
privatização, se você toma de assalto um ramal do metro com
a intenção de fazer pressão contra o governo para que ele
não seja privatizado, a sua acção entra no âmbito da
"decisão-quadro europeia". Portanto, vê-se bem quem
é visado no interior, sobretudo quando se sabe que há a
noção de organização internacional.
Quando se sabe aquilo que vai ser discutido ao nível da
Organização Mundial do Comércio vê-se também
que os altermundialistas anti-OMC são directamente visados por esta
"decisão quadro europeia" que está integrada no nosso
direito penal.
Quero dizer que isso é a parte mais soft (risos), realmente a mais soft.
Porque se se quiser ver para onde se vai tinha que lhe falar da Inglaterra e da
sua já provada grande capacidade de antecipação. Desta
vez, a 11 de Março de 2005, isto é inteiramente novo, a
Inglaterra votou uma nova lei anti-terrorista que corrige a antiga, a qual
como o "Patriot Act" autorizava o encarceramento com
duração indeterminada, sem culpa formada, sem delito algum, de
todas as pessoas estrangeiras suspeitas de terrorismo.
E uma sentença do Supremo Tribunal afirmou, isto no entanto é
injusto, discriminam-se os nacionais em relação aos estrangeiros,
não se pode aceitar esta discriminação! Portanto, os
procedimentos de excepção foram passados dos estrangeiros para o
conjunto da população. Mas não se podia encarcerar,
portanto foram adoptadas medidas mais suaves num primeiro tempo. Ou seja, se
você fosse suspeita de fazer parte ou de estar em contacto com pessoas
que fossem também suspeitas de terrorismo, você era suspeita a
dois tempos, era já uma suspeita ao quadrado.
Mas pode-se tomar em relação a si um conjunto de medidas de
controlo como a pulseira electrónica por exemplo, obrigá-la a
apresentar-se todos os dias no comissariado de polícia, buscas à
noite na vossa ausência, impedi-la de ter um emprego e isso estende-se
até às prisões domiciliárias.
No caso de prisões domiciliárias é preciso
autorização de um tribunal. Pode-se indagar sobre o que a
apreciação poderá ser fundamentada uma vez que não
há julgamento e o facto de decidir vos colocar sob esta medida de
controlo depende de uma avaliação dos serviços secretos,
cujo dossier é secreto. Ou seja, o juiz convoca o tipo das
informações e lhe pergunta:
"Senhor, tem provas?"
"Sim, senhor Juiz"
E então o juiz toma a decisão.
Você vê no que dá, o que se viu em Inglaterra está em
vias de nos ser passado para a Europa. E todos estes tipos de medidas
vão aparecer como projectos nos diferentes países. E portanto
digo isso agora para que estejam prontos a responder.
Poderias falar-nos da lista de organizações terroristas na Europa
e nos Estados Unidos?
Este tipo de procedimento em que se tomam medidas sem controlo
judiciário, sem provas, já existe ao nível europeu. Uma
vez que há listas de organizações terroristas, aquela do
Conselho permite-lhe por exemplo bloquear as suas contas bancárias,
suprimir o conjunto de ajudas do Estado até porque você
está inscrito na lista. E é uma decisão administrativa que
se faz pelos funcionários do Conselho geralmente a pedido dos Estados
Unidos. Por exemplo, na Holanda, o antigo presidente do Partido Comunista
Filipino, José-Maria Sison, que esteve refugiado na Holanda... Do dia
para a noite, viu a sua conta bloqueada, tinha um alojamento do CPAS
holandês, foi posto fora do seu alojamento e assim percebeu do dia para a
noite que o seu nome fora posto na lista anti-terrorista.
Com efeito, foram os Estados Unidos que fizeram o pedido nesse caso...
Efectivamente. E a Holanda, depois a União Europeia colocou-o na lista
de organizações terroristas. E no entanto você pode ser
posto numa lista sem se saber, pois a lista da Europol é secreta. Isto
permite legalizar certos procedimentos de inquérito muito intrusivos.
Como, por exemplo, ler o seu correio electrónico, abrir o seu correio,
revistar à noite mesmo na sua ausência e, se se achar qualquer
coisa, poderá ser usado contra você. Não pelos
serviços secretos porque é ilegal, mas neste caso como tinha o
seu nome na lista da Europol, geralmente a pedido dos Estados Unidos, se se
encontrar alguma coisa mesmo sem nenhuma relação com o que se
procura, isso poderá ser usado contra si.
Não tenho dúvida de que tens ainda muitas más novidades
dessas para nos contar! Retenho portanto isso que com o mandato de
prisão internacional, que permite de facto aos piores regimes fazer tudo
o que quiserem no território europeu, com a definição de
actos terroristas e a lista de organizações terroristas,
completamente arbitrária, politizada e submissa aos Estados Unidos, se
está em vias de adoptar uma série de medidas
antidemocráticas, extremamente perigosas e é do interesse
público divulgar...
[*]
Sociólogo, autor de numerosos artigos em
Le Monde diplomatique, Les Temps modernes, La Revue nouvelle, Avancées, Toudi,
Le Journal des Procès,
autor dos livros "Vers un Etat policier en Belgique", "La lutte
anti-terroriste - Fin de l'Etat de droit?", "Lutte antiterroriste ou terrorisme
d'Etat" e outros.
O original encontra-se em
http://www.michelcollon.info/debat_europe.php
Tradução de Pedro Santos.
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info/
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