O mito de uma Europa em paz
por Nadine Rosa-Rosso
[*]
No dia seguinte aos atentados de 13 de Novembro em Paris, perante o Congresso,
François Hollande afirmou em tom grave: "a França
está em guerra". A mesma frase repete-a sem cessar após cada
atentado. Depois dos acontecimentos de Niza, acrescentou que a "guerra
está fora e dentro da França". A terra sagrada dos direitos
humanos, da paz e das Luzes amanheceu em estado de sítio, cobardemente
atacada pela barbárie e o obscurantismo.
Esta é a versão da história que se supõe que
deveríamos aceitar e assumir, nós, os povos de uma Europa
civilizada que temos conseguido viver em paz há setenta anos.
Na realidade, nunca deixámos de estar em guerra. E a França
é um bom exemplo do que é um estado de guerra permanente.
Impõe-se a necessidade de recordar a história.
Um período de guerras ininterruptas
Mal acabara a II Guerra Mundial, o governo provisório francês
surgido, das forças da resistência e tantas vezes representado
como exemplo pela esquerda actual, envia ao Vietname (nessa época parte
da Indochina francesa) um corpo militar expedicionário para tratar de
acabar com a guerra de independência. Sob a presidência de Leon
Blum, figura política modelar para a esquerda actual, a
intervenção transforma-se numa verdadeira guerra. A França
envia cerca de meio milhão de soldados para salvaguardar o seu
território colonial: 43,5% dos soldados desse exército provem das
outras colónias francesas (Magreb e África negra) A França
será derrotada na batalha de Dien Bien Phu, em Maio de 1954.
Nesse mesmo período, em 1947, a França perpetra um massacre em
Madagáscar contra a rebelião dos malgaches, houve 11 mil mortos,
segundo as versões oficiais francesas e 100 mil mortos segundo os
resistentes malgaches. Nessa guerra, uma vez mais, as tropas de
repressão francesas eram constituídas na sua maioria por soldados
provenientes das colónias africanas e magrebinas.
Essas guerras sangrentas não impediram a participação da
França, no mesmo período, na guerra da Coreia, de 25 de Junho de
1950 a 27 de Junho de 1953. Uma coligação de 17 estados (entre
eles a Bélgica e a Grã Bretanha), liderados pelos Estados Unidos
e sob bandeira da ONU, teve por objectivo exactamente como na Indochina
opor-se às lutas de libertação dirigidas por forças
comunistas. Estas duas guerras provocaram mais de dois milhões de
mortos. A guerra esquecida da Coreia foi uma guerra de destruição
maciça. Em termos actuais chama-se a isso genocídio. A capital
Pyongyang foi totalmente arrasada. "No início do ataque, a 14 e 15
de Dezembro, a aviação norte americana lançou sobre
Pyongyang 700 bombas de 500 libras cada uma. Os aviões de combate
Mustang lançaram napalm e 175 bombas de explosão retardada que
aterrorizavam com um ruído ensurdecedor e rebentavam depois. Quando as
pessoas tentavam resgatar os corpos dos mortos dos incêndios provocados
pelo napalm, as bombas de explosão retardada detonavam. No início
do mês de Janeiro o general Ridgway ordenou de novo um ataque contra a
capital Pyongyang "procurando destruir a cidade pelo fogo com bombas
incendiárias" (objectivo cumprido em duas etapas, a 3 e 5 de
Janeiro de 1951)"
[1]
.
A guerra do Vietname, assim como a guerra da Coreia desembocaram na
partição dos dois países. O Vietname conseguiu a sua
reunificação mediante uma nova e longa guerra de
independência, desta vez contra os Estados Unidos em 1975. A Coreia ainda
não está reunificada e o território do sul continua
ocupado pelos Estados Unidos. É este o tipo de paz que dão as
nações autoproclamadas civilizadas desde o fim da Segunda Guerra
Mundial. Essas guerras foram rapidamente olvidadas pela população
europeia, mas não pelas populações afectadas por essas
guerras.
E não foram só os povos asiáticos os afectados por essas
guerras. A vitória dos vietnamitas em 1954 contra a metrópole
francesa deu um forte impulso a outras lutas de libertação em
toda a África.
Longe de aprender com a sua derrota humilhante no Vietname, a França
continuou com o seu programa colonial. "Entre 1960 e 1968, houve 60
intervenções militares francesas na África subsahariana,
23 foram empreendidas para "manter a ordem" ao serviço de um
regime amigo e as outras 14 para derrotar governos que não se submetiam
às ordens dos dirigentes franceses".
[2]
A guerra mais conhecida, no que respeita à França, é,
supostamente, a guerra da Argélia. Só quero insistir em alguns
aspectos. Primeiro sobre a posição do Partido Comunista
Francês, aureolado desde a Libertação e aos olhos
dos nacionalistas argelinos, pela sua heróica resistência perante
o ocupante nazi. (em Maio de 1945, uma marcha nacionalista em Setif foi
reprimida sangrentamente e a revolta que se seguiu, será também
liquidada com uma violência inaudita. Nesse caso também variam as
cifras entre um milhão e 80 mil vitimas segundo o ponto de vista do
historiador.
Como explica Mohammed Harbi, em França as forças políticas
provenientes da Resistência deixam-se manejar pelo partido colonialista.
"Procura-se a paz há 10 anos, se a França não fizer
nada, tudo voltará à situação anterior mas pior e
provavelmente sem remédio" alertou o general Duval, mestre da obra
da repressão. O Partido Comunista Francês (PCF) que qualificou os
líderes nacionalistas como "provocadores ao serviço de
Hitler" e que pediu que esses dirigentes fossem passados pelas armas"
(fuzilados) será considerado apesar da mudança de
opinião posterior e o seu combate pela amnistia, como partidário
da colonização"
[3]
O inimigo interno
Outro aspecto que quero sublinhar é a criação do
"inimigo interno" na politica e na ideologia francesa e que tomou
corpo durante a guerra da Argélia. "A 17 de Outubro de 1961, Paris
foi cenário de um dos maiores massacres de civis da história
contemporânea da Europa ocidental. Nesse dia dezenas de milhares de
argelinos manifestavam-se pacificamente contra o toque de recolher que lhes
havia sido imposto doze dias antes e a repressão desencadeada contra
eles pelo perfeito da polícia do Sena, Maurice Papon. A
intervenção da polícia foi brutal e sanguinária.
Dezenas de argelinos provavelmente entre 150 e 200, foram assassinados. Alguns
corpos foram encontrados no Sena. Durante decénios, a memória
deste episódio maior da guerra da Argélia foi silenciado"
[4]
Segundo Mathieu Rigouste
[5]
o conceito de inimigo interno data dessa época e está vinculado
à presença de uma emigração importante surgida da
colonização. "A história do controle da
emigração no pensamento militar francês permite analisar,
estudando a reconstrução de um inimigo interno
socio-étnico, a recriação e depois a
generalização no tempo e espaço de uma tecnologia
concebida para efectuar um controle excepcional de populações
consideradas inferiores".
Como reacção ao atentado de Niza (França) de Julho de
2016, Georges Fenech, presidente da comissão de
investigação parlamentar sobre os atentados de 2015 pediu a
criação de um "Guantanamo à francesa".
Propôs reunir todos os jiadistas que voltavam da Síria no centro
penitenciário da ilha de Re.
Essa ideia que provocou muita polémica, funde as suas raízes na
guerra da Argélia durante a qual o governo francês desenvolveu
campos de reagrupamento" destinados aos resistentes da FNL para impedi-los
de receber qualquer tipo de apoio por parte da população
argelina. Só falta introduzir oficialmente a tortura na França
para completar o regresso ao passado. Por outro lado, este debate delirante
já se dá no seio da Frente Nacional: reintroduzir a tortura ou
aplicar a pena de morte para Salam Abdesiam, tudo pode acontecer.
Assassinatos políticos em grande escala
A história "pacífica" da França não se
limita às guerras. A pátria autoproclamada dos direitos humanos
também desenrolou uma tradição importante de assassinatos
políticos exterminando dirigentes nacionalistas da África e do
Magreb. No livro "Devolvam as espingardas" Jean Ziegler dedica um
capítulo às campanhas de assassinatos políticos
organizados pelos serviços secretos europeus e analisa o caso dos
Camarões. Todos os dirigentes nacionalistas, sem excepção,
foram assassinados uns atrás dos outros. Ruben UmNyobe, já em
1955, e depois os seus sucessores Isaac Nyobe Pandjok, David Milton, Tankeu
Noé
[6]
. Zigler documenta o assassinato do jovem médico Félix Roland
Mounie, dirigente da União das Populações dos
Camarões (UPC) que foi convidado por um "jornalista"
francês para um almoço. Félix-Roland Mounie morreu em
Genebra envenenado na noite seguinte. Esse jornalista, era na realidade, o
coronel William Betchel, oficial francês do SDEXCE (Serviço de
Documentação Exterior e a sua inteligência) e que nunca foi
condenado por esse crime. E há muitos outros casos.
Agora é moda no Ocidente a denúncia da corrupção
(evidente) de muitos chefes dos estados africanos, mas seria melhor lembrar que
os nossos governos e seus sicários assassinaram quase todos os
dirigentes nacionalistas íntegros que queriam devolver a
independência, a dignidade e a justiça aos países
africanos. Sendo belga, não posso deixar de lembrar Patrice Lumumba,
herói africano ferozmente assassinado pelo comandante belga Weber a 17
de Janeiro de 1961, e cujo corpo foi depois dissolvido em ácido. Os seus
filhos lutam até hoje sem qualquer resultado, para que os culpados e o
Estado belga sejam condenados. Como lembra Jean Ziegler. "Estes crimes de
Estado foram implacáveis: era imperativo acabar com os autênticos
líderes nacionalistas para instalar no poder as elites
autóctones, amestradas, influenciadas e controladas pelo
colonizador"
[7]
Matar Lumumba para instalar o títere Mobutu, por exemplo.
Guerras, torturas e assassinatos políticos, esses são os
verdadeiros rostos desta França que se apresenta como portadora das
luzes quando age para defender o seu império colonial e os interesses
das suas multinacionais, Elf, Total, Areva, Bollore, Eramet, Technip, Bouygues,
Orange, Geocoton, Rougier, etc.
[8]
. E não se trata de uma história do passado, mas sim da vida
quotidiana de milhões de africanos.
O que é realmente novo hoje, é que a guerra, ou pelo menos uma
mínima parte dessa guerra, chegou até nós, em solo
francês ou em solo belga. Vítimas civis inocentes que morrem, e
com isso se mergulham famílias inteiras no horror. Por termos fechado os
olhos perante tantas vítimas inocentes no terceiro mundo, vítimas
das nossas guerras coloniais? Porque continuamos a apoiar governos e partidos
políticos que perpetuam essa mesma política?
Se o discurso dos recrutadores da jihad atrai tantos jovens é porque a
maioria das vezes usa uma retórica anti imperialista e porque qualquer
outra forma de protesto seu contra as nossas sociedades foi reprimida
[9]
. Em vez de concentrar todo o debate no aspecto religioso do fenómeno,
seria mais produtivo analisar o aspecto político e fazer um
balanço correcto a propósito das "nossas"
políticas coloniais e neocoloniais impregnadas de massacres e de
guerras. Embora os chefes do Daesh nada tenham que ver com os dirigentes
nacionalistas do século passado, bem podem ocupar o lugar vazio deixado
pelo nosso silêncio ensurdecedor sobre 70 anos de política
colonial feita de guerras e massacres.
Mas para quebrar esse silêncio nada podemos esperar nem dos partidos no
poder nem dos partidos na oposição, porque para eles pôr em
dúvida o colonialismo só lhes serviria para perder votos
eleitorais. Mas, como diz Jean Ziegler, "cada um deve escolher o seu
campo", o de quem, apesar da repressão e os massacres continua a
resistir, e embora sejam aqui muito poucos, existem apesar de tudo os Henry
Alleg (autor do importante livro A questão denunciando a
tortura e escrito sendo prisioneiro dos franceses na Argélia), os
membros da Rede Jeanson (rede de apoio a FLN), os carregadores de maletas
anónimas (pessoas que transportam dinheiro e documentos falsos para a
FLN, que fazem com que continuemos a amar a França).
11/Outubro/2016
(1)
chaoscontrole.canablog
(2) Francis Azalier, Colonialismo e imperialismo: "a
excepção francesa" ou o "mito humanista", numa
má descolonização, a França: do império aos
levantamentos dos bairros populares. O tempo das cerejas, Pantin, 2007, p.
36-37.
(3) Mohammed Harbi, Faces ocultas da segunda guerra mundial. A guerra da
Argélia começou em Setif. O Mundo diplomático, Maio de
2005, pag. 21;
www.monde-diplomatique
(4)
www.lemonde.fr/societe/
(5) Mathieu Rigouste, o inimigo interno, da guerra colonial ao controle
securitário,
conflits.revues.org/31
(6) Jean Ziegler, Devolvam as armas. Escolher o seu campo.
Edições do Seuil, Paris, 2014, pp 199-200
(7) Idem, p. 198
(8)
www.afrique-demain.org/
(9) Ver o meu artigo anterior: 26 anos depois da revolta dos jovens em Forest:
primeira, segunda, terceira geração, sempre a
repressão
.
[*]
Jornalista, belga.
O original encontra-se em
http://nadinerosarosso.blospot
e a versão em português em
http://www.odiario.info/o-mito-de-uma-europa-em/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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