O Euro e a crise na e da União Europeia
Passaram duas décadas desde que, em finais de 1995, numa Cimeira de
chefes de Estado e de governo da União Europeia, em Madrid, a moeda
única europeia foi batizada: Euro, seria o seu nome. O primeiro-ministro
português à época, António Guterres, saudando a
decisão, haveria de proclamar: "Euro, tu és o euro e sobre
este euro edificaremos a União Europeia". A lembrança serve
não tanto para assinalar o ridículo a que o correr do tempo
expôs o triunfalismo da proclamação mas mais para evocar a
ofensiva política e ideológica que desde a primeira hora
acompanhou o nascituro.
Afirmou-se então, repetidamente, que o Euro traria estabilidade,
crescimento, emprego, convergência das economias. Que seria um escudo
contra a crise. Afirmações, todas elas, fragorosamente
contrariadas pela realidade.
A aplicação de uma política monetária única
a países com profundas disparidades nos níveis de desenvolvimento
económico e social e, por isso mesmo, com necessidades de
políticas diferenciadas ao nível monetário e cambial,
agravou, como era expectável, desequilíbrios
macroeconómicos; acentuou a dinâmica de divergência das
economias, já antes incutida pelo mercado único e pelas
políticas comuns; repercutiu-se de forma particularmente grave na
periferia, nos denominados "países da coesão".
Perante o risco de implosão do Euro, recrudesceram as teorias do
aprofundamento. A arquitetura foi incompleta, a ponte ficou a meio, afirmaram.
Logo acrescentando ser imprescindível construir a outra metade. A
União é monetária, mas não económica.
Há que completá-la, sentenciam, é necessário um
governo económico europeu, uma fiscalidade europeia, uma
"União Bancária". Os federalistas mais convictos
retornam ao sonho da unificação política.
Surgem o Pacto para o Euro Mais, a chamada Governação
Económica, o Tratado Orçamental, o Semestre Europeu. Formas de
concentração do poder no seio da Zona Euro. Mecanismos de
ingerência política, económica e social, que criam um
quadro de constrangimento quase absoluto a qualquer projeto soberano de
desenvolvimento económico e social. Obviamente não para todos: o
que se aplica aos pequenos e médios países, não se aplica
aos maiores e mais poderosos. Uma dolorosa confirmação da tese de
que à dependência económica sempre sobrevém a
subordinação política.
A resposta da União Europeia à crise da Zona Euro não
resolveu nenhuma das contradições que lhe estão
subjacentes, antes as agravou. As dinâmicas de tensão e de
confronto inerentes à imposição de uma moeda
única a situações tão assimétricas
são permanentes, contradizendo as teses sobre a estabilidade e
durabilidade do processo.
A Alemanha (o capital alemão) não está disposta a assumir
perdas nem a partilhar ganhos para lá do estritamente necessário
à sobrevivência deste seu instrumento e à
manutenção do seu papel hegemónico na zona de
influência do Euro, o que é susceptível de acirrar
contradições entre potências. Conjunturalmente relegadas
segundo plano, não foram abandonadas, longe disso, as teorias do
núcleo super-integrado, com possíveis
reconfigurações da Zona Euro, envolvendo a
"expulsão" das economias mais débeis e
periféricas.
Na periferia da Zona Euro, os Estados encontram-se desprotegidos para lidar com
uma recidiva da crise, com uma recaída em recessão. As taxas de
juro a zero ou mesmo negativas (como sucede com as taxas sobre os
depósitos dos bancos no BCE) dificilmente podem baixar mais,
dificultando os estímulos monetários.
A liquidez fornecida pelo BCE serve para insuflar uma nova bolha
obrigacionista, mas não chega à economia real, não se
traduz em investimento, nem em consumo. As dívidas públicas
dispararam e são colossais, dificultando novo endividamento,
nomeadamente junto dos mercados financeiros. A combinação
perversa do aumento da liquidez e da instabilidade, mundial e europeia,
alimenta a dimensão e a volatilidade dos fluxos financeiros, com a
escalada fácil das taxas de juro.
Os estímulos orçamentais são dificultados pelos
férreos constrangimentos impostos pelas regras da União
Económica e Monetária. O Euro continua a desfiar o
infindável novelo da dita austeridade, com os Estados cada vez mais
desamparados, cada vez mais desprovidos dos poucos instrumentos que lhes
restavam para gerir as dificuldades.
Uma situação que talvez ajude a explicar porque é que a
maioria dos países da União Europeia que não integram a
Zona Euro tenham decidido prolongar indefinidamente a derrogação
que os mantém fora do Euro.
Sem moeda própria, sem um banco central emissor e prestamista de
último recurso, que possa assistir financeiramente o Estado (e a banca)
em situações mais complicadas, a dependência dos mercados
financeiros ou, igualmente grave, do BCE, da União Europeia e do FMI
é total.
O Euro encurralou a periferia entre a espada e a parede: ou a chantagem dos
especuladores, ou a chantagem da
troika.
O exemplo grego é, por agora, a mais viva demonstração
deste facto. Um retrato do que pode suceder, e de facto sucedeu, a um
país periférico do Euro. Uma experiência da qual se
impõe retirar lições evidentes.
Uma primeira lição: a de que uma mudança de
políticas a favor dos trabalhadores e do povo, mesmo que apenas para
fazer frente a uma crise humanitária, confronta-se inevitavelmente com
os constrangimentos da União Económica e Monetária e do
Euro.
Uma segunda lição: nesse confronto, a União Europeia
revela-se completamente inamovível, respondendo com arrogância,
com ameaças, pressões e chantagens a qualquer
intenção de mudança. No caso grego, o confronto assumiu a
gravidade da opção entre claudicar ou romper.
O que nos traz a uma outra lição: o implacável desfazer
das ilusões de que é possível a um país submetido e
devastado crescer e desenvolver-se satisfatoriamente dentro do
colete-de-forças do Euro.
E, finalmente, uma lição fundamental: a indispensabilidade de
preparar um país que queira crescer e desenvolver-se satisfatoriamente,
que queira concretizar um projeto soberano de desenvolvimento, para a
introdução de uma nova moeda nacional.
O caso grego confirma ainda a profunda interligação entre o Euro,
a banca e a dívida. A importância do controlo de capitais,
impedindo as fugas de depósitos. A importância de afirmar de forma
soberana o direito de renegociação da dívida. A
importância de não deixar o sistema bancário refém
do fornecimento condicionado de liquidez pelo BCE.
A tragédia grega da qual, por estes dias, nos são dados a
ver novos episódios não resultou de se querer sair do
Euro. Resultou sim da opção por se ficar no Euro.
Perante este quadro, importa ainda não perder de vista uma
característica matricial do Euro e da União Económica e
Monetária: a sua natureza de classe; a sua natureza de instrumentos ao
serviço de um projeto político, de classe. O Euro foi e é
uma decisão política, uma opção do grande capital
europeu, no contexto do aprofundamento da integração capitalista
europeia. Entre os seus impulsionadores e mais acérrimos defensores
estão, desde o início, as confederações do grande
patronato europeu, as grandes multinacionais europeias.
Por detrás do objectivo da política monetária a
dita estabilidade dos preços, encontra-se o objectivo, cada vez mais
claramente assumido, de reduzir os custos unitários do trabalho,
garantir a transferência dos ganhos de produtividade do trabalho para o
capital, contribuindo para a aumentar a taxa de exploração e com
ela sustentar as taxas de lucro.
Retirando aos Estados a política monetária, cambial, mas
também a orçamental e a fiscal, por via das
imposições decorrentes do Pacto de Estabilidade, os factores de
ajustamento a choques económicos recaem unicamente sobre os
salários e o emprego, desvalorizando os salários, aumentando o
desemprego o que força novamente a descida dos salários.
O Euro oleou os circuitos do mercado único, facilitou a
colonização de mercados, nomeadamente os da periferia; acentuou a
liberalização dos movimentos de capitais e, consequentemente, o
grau de mobilidade do capital multinacional que opera no mercado interno
europeu. As deslocalizações são mais fáceis e
juntam-se ao desemprego para forçar a concorrência entre a
força de trabalho e a sua desvalorização geral.
Podemos afirmar que o Euro não falhou. O Euro cumpriu e cumpre o papel
para o qual foi criado.
Agora, mais do que diagnósticos, a situação que vivemos
exige respostas. Mais do que identificar constrangimentos que hoje
são por demais visíveis é necessário
enunciar as linhas de ruptura que nos permitam libertarmo-nos desses
constrangimentos.
Desde 2007 que o PCP tem vindo a propor a dissolução da
União Económica e Monetária. Uma dissolução
programada e organizada, que reduza ao mínimo as
perturbações económicas e financeiras resultantes da
constituição das novas moedas nacionais e estabeleça
programas financeiros de apoio aos países com economias mais
débeis e mais endividados.
Este objectivo deve justificar a procura de uma conjugação e
articulação de esforços, desde logo, dos países que
enfrentam dificuldades semelhantes, tendo em vista, para além da
dissolução da União Económica e Monetária, a
convocação de uma Conferência Intergovernamental destinada
a debater o problema das dívidas públicas e a suspender e revogar
o Tratado Orçamental.
É óbvio que a solução ideal seria fazer reverter as
causas da grave situação em que nos encontramos. Porém,
nada indica que passem por aqui as intenções da União
Europeia e dos seus órgãos. O quadro de medidas necessário
é exatamente o oposto daquele que a União Europeia vem impondo.
Apesar disso, é necessário e é possível romper o
espartilho que constrange o desenvolvimento económico, o progresso
social, a soberania nacional. O que não é viável é
prolongar a submissão aos ditames do Euro e aceitar a sentença de
empobrecimento perpétuo que lhe está associada.
A libertação da submissão do país ao Euro
resolveria todos os nossos problemas? Obviamente que não. O mercado
único, as políticas comuns, as disposições dos
Tratados, constituem pesados constrangimentos que não podem ser
ignorados.
A recuperação da soberania monetária e por
arrastamento da soberania cambial, orçamental e fiscal é
condição necessária, ainda que insuficiente por si
só, para garantir um desenvolvimento soberano do país.
Uma condição que permitiria libertar o Estado da
dependência exclusiva dos mercados financeiros para o seu financiamento
de último recurso. Ou, vedado o acesso aos mercados pelas taxas de juro
agiotas, libertar o Estado da chantagem permanente e da condicionalidade
política associada aos empréstimos da União Europeia e do
FMI.
Uma condição que permitiria ajustar a gestão
monetária, financeira e orçamental do Estado à
situação e necessidades específicas do país
muito distintas das de outros países. Uma condição para
abandonar o Pacto de Estabilidade e as consequentes restrições ao
investimento e ao cabal financiamento das funções sociais do
Estado. Assim criando outras e melhores condições para o
investimento, a criação de emprego e a dinamização
da produção nacional.
Neste processo de recuperação de soberania, é de admitir
que a institucionalidade europeia, as regras e as disposições dos
tratados possam conflituar com os interesses nacionais. Mas não
esqueçamos que estas regras não são, nunca foram,
"escritos sagrados".
O recente caso
Brexit
e as negociações que envolveu são exemplares a este
respeito (independentemente do seu conteúdo e resultados). Na
União Europeia, as regras são o resultado em cada momento de uma
determinada relação de forças, são fruto de uma
negociação permanente. Negociação em que é
muito forte a vontade e a determinação de um povo ganho para
defender o seu direito ao futuro.
Não existem saídas no atual quadro que não passem por uma
ruptura com as políticas vigentes. Essa ruptura é
necessária para libertar os povos da subalternidade, da
dependência e do atraso.
[*]
Do comité central PCP e deputado ao PE.
Intervenção na sessão "A libertação do
país da submissão ao euro, condição para o
desenvolvimento e soberania nacional", 10/maio/2016, em Lisboa
O original encontra-se em
http://www.pcp.pt/euro-crise-na-da-uniao-europeia
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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