Federalismo: o plano B para a UE qual será o plano C?
por Daniel Vaz de Carvalho
"O socialismo burguês resume-se precisamente nesta
afirmação:
os burgueses são burgueses no interesse da
classe operária",
C. Marx e F. Engels, Manifesto
1 O problema das boas intenções
Quando a realidade desmente os conceitos são pré-conceitos
inventa-se um mito. O federalismo como forma de resolver os problemas
com que os países da UE se debatem não passa de um mito sem o
mínimo suporte na realidade.
Há quem com boas intenções considere que a
solução para os problemas da UE é "mais Europa":
o federalismo. Diga-se que neste aspecto estão em muito má
companhia, por detrás deste conceito perfila-se gente muito perigosa
ideologicamente, mas não só, a requentados demagogos,
ilusionistas da política que têm feito sempre o contrário
do que dizem, chantageando o eleitorado com as suas
"inevitabilidades".
Contudo o mais aparente do federalismo é dizer que se quer mudar a UE
sem alterar em nada as políticas neoliberais que conduziram os
países à presente crise atual, resumindo-se a uma fórmula
para dar "confiança aos mercados". Podemos dizer que para
estes "os especuladores são especuladores no interesse dos
trabalhadores".
O "federalismo" que o diretório da UE pretende está
expresso nos tratados que têm sido aprovados pelos partidos socialistas e
social-democratas, na realidade neoliberais, como no Mecanismo Europeu de
Estabilidade (
MEE
), o designado "pacto orçamental", que define uma cada vez
maior intervenção repressiva sobre os povos.
A política que a UE segue sem alteração e que os que
defendem "mais Europa" aprovaram e defendem à parte a
retórica de circunstância foi claramente expressa pelo sr.
Trichet em junho de 2011: "
se um país mesmo assim não ficar a salvo
(após intervenção financeira
), numa segunda fase deve ser diferente (
) dando às autoridades da
zona euro uma muito maior autoridade na formação das
políticas económicas se estas continuarem fora do caminho
correcto. Uma directa influência bem acima da vigilância
reforçada que está actualmente considerada"
[1]
Estas medidas tornar-se-iam compulsivas se os governos não as aceitarem
ou não as cumprirem,
"tomando as autoridades europeias as decisões aplicáveis
à economia em causa. Designadamente, sobre as principais despesas do
governo e elementos essenciais á competitividade do país".
Isto mesmo configura o que está vertido
no MEE. Será esta a via federalista "federalista" defendida
pelo
PS que o considera a "regra de ouro"?!
O que a política "federalista" da UE mostra é uma cada
vez maior capacidade de intervenção nas políticas internas
para garantir a especulação, impedir a tributação
do grande capital e a livre transferência de lucros e rendas para
paraísos fiscais. O que a cúpula da UE pretende é poder
intervencionar um país membro da UE quando este, mesmo pela vontade
livremente expressa do eleitorado (cada vez menos livre) ou pelo generalizado
repúdio popular, não implemente as medidas
"recomendadas" pela Comissão Europeia ou pelo Conselho
Europeu, adoptando o que aquelas entidades consideram comportamentos
"perturbadores", para os interesses que defendem, isto é, como
dizia um destes epígonos: que "traumatizem os mercados".
2 Por que não é possível o "federalismo"
das boas intenções
Porque teríamos em Portugal, na Grécia, em países
Bálticos ou na Irlanda, benefícios sociais equivalentes aos da
Alemanha, da Bélgica, da Holanda, pagos pelo Estado Federal. Seria
necessário que o salário hora fosse idêntico pelo
menos em termos de poder de compra na zona euro. Seria necessário
que serviços sociais, pensões, forças armadas, parte
federal do ensino e da segurança, etc., fossem mantidos pelo Estado
Federal e não contribuíssem para aumentar a dívida de cada
Estado. Seria necessário que o sistema de impostos fosse igual em toda a
UE. Além disto implicaria que os consumos federais (nos EUA o maior
cliente a nível nacional) fossem distribuídos de forma a
favorecer regiões mais desfavorecidas e PME. Implicaria além
disso que os juros da dívida fossem iguais para todos os Estados.
O federalismo é uma fuga em frente mas no mesmo caminho que
até aqui contando com a boa vontade alheia. Porém, nos
avanços para o federalismo expressos nos últimos tratados da UE e
do euro foram aceites condições que desarmaram os países
mais frágeis economicamente perante a prepotência da
finança e dos países mais fortes. Isto já era evidente
mesmo antes da adoção do euro que acelerou nesses países a
desindustrialização e a degradação da agricultura e
pescas.
Nos EUA o FED (Banco Central) não empresta aos bancos a 1% para estes
cobrarem ao Estado conforme melhor acharem com os álibis que entendem,
pois o mercado serve para tudo, menos para proteger as populações
dos predadores financeiros. Aponta-se então como medida os
"eurobonds", justificados com casos de sucesso como o Reino Unido, o
Japão e os EUA, cujos bancos centrais emitem moeda própria.
Parecem esquecer-se que o Reino Unido está duramente envolvido em
austeridade e na mesma crise que toda a UE; que a enorme dívida
pública do Japão (cerca de 200% do PIB) é sobretudo
interna e que sob a dogmática neoliberal esse mecanismo foi praticamente
desmantelado de forma a canalizar as poupanças dos pequenos aforradores
para a banca privada e daí para o circuito especulador. Foi uma
das nefastas actuações do ministro Teixeira dos Santos, a par da
sua invenção do "risco sistémico" do BPN,
medidas que contribuíram para a situação desastrosa a que
conduziu as finanças públicas.
Quanto aos EUA são um país insolvente cuja dívida federal
atingia no final de abril mais de US$15,6 milhão de milhões
(trillions)
e que se endivida à razão de 2 milhões de dólares
por minuto. Para o dólar ser mantido como moeda global os EUA
dispõem de mais de um milhar de instalações militares
espalhadas pelo Globo, sete esquadras navais e 13 porta-aviões.
País permanentemente envolvido em guerras, conflitos,
conspirações, massiva manipulação da opinião
pública. Mas tudo isto custa dinheiro e o povo norte-americano empobrece
cada vez mais para que os tais 1% sejam cada vez mais ricos.
O Estado federal dos EUA não é um exemplo minimamente
aplicável na Europa. Constituíram-se após uma sangrenta
guerra civil cujas sequelas permaneceram durante muitas décadas, apenas
dissipadas por os EUA serem um país emergente com enormes espaços
por habitar e dispondo de enormes riquezas naturais, duas guerras mundiais
vitoriosas e afirmar-se como superpotência tirando disso vantagens
sobre o resto do mundo. Além disto a crise de 1929 levou a que o Estado
então se afirmasse como condutor da política económica,
prestador de serviços sociais e motor de desenvolvimento e portanto
elemento fomentador de unidade.
A UE é tudo menos isto, agravada com as regras da zona euro que acentuam
desigualdades, divergências económicas, cortes nas
prestações sociais.
Porém, por acção da crise e sob os critérios
neoliberais também nos EUA os processos de desagregação e
divergência entre Estados estão em curso, que só o poder
militar e a exacção sobre o resto do mundo através da
aceitação do dólar como moeda global vão escondendo
e adiando.
3 Os eurobonds e as "alterações institucionais"
Federalismo, eurobonds e "alterações institucionais"
são fórmulas vazias de conteúdo para iludir a
dominância neoliberal. Diz-se que "o combate tem de ser feito a
nível europeu". Trata-se de mais um espantoso jogo de palavras.
Combater o quê? Combater com quem? Com gente submetida aos
"mercados" e à burocracia de Bruxelas? Onde está o povo
neste processo, quando tudo fizeram para evitar a discussão
pública e que se referendassem os diversos tratados sobre a UE ou o
euro?
Que defesa de princípios diferentes se pode esperar de políticos
para os quais a simples renegociação da dívida de
países à beira do desastre, os põe em pânico,
afirmando com que justificação? que tal levaria
"à saída do euro". E não os incomoda o desastre
à vista?
A bondade dos argumentos esboroa-se perante a realidade dos factos.
Aliás, nem mesmo se podem considerar argumentos, o que surge são
intenções, votos, esperança na clemência dos que
levaram e levam os países para a crise, que os defraudam e depauperam,
esperando que "ajudem", e sejam "solidários", etc.
Os mesmos que promovem a saída de lucros e rendimentos para os
paraísos fiscais e em troca impõem "austeridade".
Nas "alterações institucionais" que proclamam como
remédio santo, continua a submissão aos "mercados"
considerados na teoria e na prática como entidades abstractas,
racionais, benevolentes, quando na realidade se trata de especuladores, gente
associada à corrupção e à fraude, socialmente
amoral, exclusivamente movida pela ambição do enriquecimento
pessoal, assumido como padrão de "eficiência".
Ao afirmar-se que os eurobonds seriam a salvação do euro,
esquece-se que para os eurobonds funcionarem, o euro teria primeiro de ser
salvo em termos económicos o que implicaria o abandono das
medidas de austeridade e uma dinâmica de crescimento incompatível
com tudo o que o euro tem representado e representa. Mesmo com os eurobonds os
desequilíbrios mantêm-se, os défices acumulam-se, a
especulação reforça-se fica ainda mais garantida.
Os eurobonds títulos de dívida da zona euro iriam
cobrir as dívidas públicas e o "lixo tóxico" da
banca, sendo portanto um mecanismo inserido na especulação
financeira global, não para a evitar ou controlar. Por exemplo, a
Alemanha que atualmente tem juros abaixo da taxa de inflação
pagaria os juros que "os mercados" atribuíssem á zona
euro no seu conjunto. Mas a Alemanha e os outros poucos países
excedentários não estão dispostos a arcar com as
dívidas dos restantes, e isto tem sido repetidamente declarado.
Os eurobonds iriam fazer concorrência aos títulos de dívida
dos EUA e só seriam viáveis na medida em que o euro assumisse um
papel significativo no comércio mundial retirando protagonismo ao
dólar. Ora, a UE já deu demasiados tiros no pé para este
objetivo ser alcançado ao apoiar agressões e
sanções contra países que tinham deixado ou se propunham
deixar de negociar o seu comércio externo em dólares passando ao
euro.
4 A UE hoje: crónica de uma catástrofe anunciada
O Nobel e adepto da "economia de mercado", o sr. Stiglitz, classifica
a Europa de "uma catástrofe de origem humana". Cada
avanço na integração europeia tem representado não
uma aproximação e convergência, mas afastamento e
divergência e uma forma de assegurar o domínio neocolonial sobre
os países mais frágeis. Afastamento dos processos
democráticos, dos desequilíbrios e divergência dos
indicadores sociais, económicos, financeiros. Sob a égide da
propaganda abstracta e manipulação venderam-se para a
opinião pública como receitas milagrosas, medidas e
decisões que são sucessivos desastres.
Os povos da UE são hoje conduzidos por uma burocracia
antidemocrática cujo objetivo é defender os interesses
financeiros, proteger os lucros monopolistas e especulativos, garantir que
erros técnicos e fraudes sejam pagos pelos povos.
Dizia o filósofo Ortega e Gasset que "a burocracia é fautora
de guerra civil". A UE vive hoje um clima de efetiva guerra social, que
políticos desacreditados põem em prática segundo as
orientações e diretivas dessa burocracia. O seu papel resume-se
ao de funcionários para implementar aquelas decisões e, mentindo,
semear ilusões quanto à sua bondade mantendo as camadas populares
na ignorância do colapso iminente do seu modo de vida.
Os adeptos da crença federalista parece não escutarem ou
não entenderem a mensagem do ministro das finanças alemão:
títulos de dívida europeia só quando houver
consolidação orçamental. Isto é, a única
certeza que se pode ter é a do MEE, uma espécie "tratado de
Versalhes" (1919) económico, mas desta vez aplicado pela Alemanha
aos países deficitários, derrotados pelo "seu" euro,
que lhe dá confortáveis excedentes comerciais. Parece
também não perceberem que o entendimento entre a França e
a Alemanha, se fará sempre no interesse da banca e do grande capital dos
respectivos países e que resultará, como no passado, em
prejuízos para os países "periféricos".
5 Urgente um outro plano para a Europa!
A questão a colocar acerca do federalismo como solução
para os problemas da UE, é a seguinte: se o almejado federalismo, que
reconstituiria a utopia europeia não se concretizar, estando a vingar o
"federalismo" do MEE, isto é, se falhar o plano tal B, qual
será então o plano C?
A situação de crise a que chegou a zona euro e para ela
caminhava desde o início, como foi previsto, mereceria que esta
discussão estivesse a ser feita a nível europeu, prioritariamente
entre portugueses, gregos, espanhóis, italianos, franceses, irlandeses.
Mas não está. As vozes discordantes da escolástica atual
são silenciadas enquanto o euro prossegue a rota do desastre.
Portugal está hoje como a Grécia há cerca de ano e meio, a
Espanha como Portugal idem, a Itália vai pelo mesmo caminho; a Irlanda
continua mergulhada na estagnação e no desemprego; dos
países do Leste e Bálticos nem se fala; no horizonte perfila-se a
Bélgica e quem diria a França que cairá a
par com os seus vizinhos.
A discussão sobre a Europa teria de começar por decidir se se
quer que os Estados controlem os processos monetários e a finança
desligando-os da especulação ou se se quer que a finança
continue a destruir a economia e os países. Está mais que
demonstrado que não é possível em termos de estabilidade e
desenvolvimento económico ter uma moeda única em países
com diferenças de produtividade e estrutura produtiva muito afastadas.
Os casos da Argentina, do México (quando ligaram as suas moedas ao
dólar) e a própria situação dos países do
euro, comprovam-no.
Assim, quanto a nós,
a discussão que importa fazer não é se saímos do
euro: é como saímos.
Tudo passará pelo que for possível de tomada de
consciência, unidade e luta em torno dos interesses nacionais, dos
interesses das mais amplas camadas populares. Incute-se na opinião
pública o medo de considerar que "o rei o euro vai
nu" e como escreveu Rudo de Ruijter "o medo vence sempre a
razão"
[2]
. Não sei se vence sempre, mas os que raciocinam na base do medo
soçobram nas duras lutas da vida, tanto no mar como em terra.
O que a cúpula dirigente da UE e seus subservientes serventuários
mais temem é que os povos da UE sob a férula da agiotagem e da
livre transferência de capitais se unam em defesa dos seus interesses
comuns, que são muitos, contra a ditadura de Berlim e Frankfurt. Nesse
momento o seu poder ruiria como um castelo de cartas e uma outra Europa de paz,
liberdade e soberania seria possível com base nos reais interesses de
cada povo, que deseja trabalhar em paz em colaboração com todos
os outros povos. Esta foi sempre através da História a base da
prosperidade e do progresso.
É este outro grande debate que falta generalizar-se, não o de
fantasias irrealistas como o "federalismo".
Contra a propaganda que transforma a repetição de mentiras em
factos os povos têm de se unir e lutar em defesa da justiça
económica e social e da proteção ambiental. Lutar por
governos que defendam a soberania nacional, e estejam ao serviço dos
seus povos e não da agiotagem financeira. Governos que não
assinem pactos de agressão aos direitos populares e que consideram os
retrocessos civilizacionais como sendo "a realidade".
[1]
Europe's New Road to Serfdom
, Michael Hudson, 3-5/Junho/2011
]2] Em
Ascensão e Queda do Euro
, vários autores, coordenação de Jorge Figueiredo, Ed.
Chiado, Lisboa, 2012, p.143. Trata-se de um livro incontornável sobre a
problemática do euro e da UE.
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