Um guião político para as Europeias de 2014
"A recuperação da soberania monetária constitui um
passo essencial, ainda que não suficiente, para a
superação da crise".
por Alexandre Abreu, João Rodrigues e Nuno Teles
[*]
As próximas eleições europeias assumem uma dimensão
inaudita no quadro político português. Nelas, provavelmente pela
primeira vez, as relações de Portugal com a União
Europeia, em geral, e com o Euro, em particular, deverão estar no centro
da campanha. Há boas razões para isso. Sob o Memorando assinado
com a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu (além do Fundo
Monetário Internacional), a política orçamental nacional
passou a ser decidida a nível europeu. E este processo
continuará, qualquer que seja o arranjo que se siga à
vigência do Memorando.
Os constrangimentos europeus, que acompanharam a integração
europeia nacional, foram acentuados após Maastricht: das regras do
mercado interno europeu, que implicaram um processo de
liberalização multidimensional e consequente sacrifício da
política de crédito ou industrial, à perda da
política monetária e cambial, passando pelos limites à
política orçamental. Os fundos estruturais foram uma
contrapartida relevante, do ponto de vista socioeconómico e
político, ainda que claramente insuficiente, para esta perda de margem
de manobra. A imposição política externa permanente, que
entretanto se gerou, tornou o nosso país num protetorado em agudo
empobrecimento: recessão permanente, desemprego recorde, agravamento das
desigualdades e da pobreza.
Se é verdade que a Constituição proclama que Portugal
é uma república soberana assente na democrática vontade
popular, também o é que
a base material dessa soberania condição necessária
da escolha democrática foi esvaziada a partir do momento em que o
país perdeu o essencial dos instrumentos de condução da
política socioeconómica. Neste contexto estrutural, as
forças de esquerda que operem no quadro das regras do jogo europeu em
vigor estão condenadas à derrota permanente.
Face a este cenário, é pois necessária uma
clarificação sobre as opções e alternativas de que
o país dispõe na sua relação com a UE, procurando
este texto contribuir para alterar os termos deste debate à esquerda: as
próximas eleições europeias não deverão ser
encaradas como mais uma oportunidade para difundirmos um suposto programa
europeísta em Portugal, como é comum dizer-se, devendo antes ser
assumidas como uma oportunidade para definir e afirmar um programa de defesa
dos interesses e aspirações do povo português na Europa,
trabalhando internacionalmente para que outras forças de esquerda
façam o mesmo a partir dos seus países. Trata-se de elaborar um
programa de libertação que envie um forte sinal de
desobediência democrática à UE e às suas
imposições, recusando de forma intransigente quaisquer perdas de
soberania e, pelo contrário, apostando na reconquista de instrumentos de
política entretanto perdidos.
Fazendo-o, estamos a confrontar diretamente as forças sociais internas
que se opõem a qualquer projeto político progressista e
emancipatório e cujas fontes de poder, que modificam em
permanência a correlação de forças em desfavor das
classes populares, estão hoje lá fora. Fazendo-o, estamos a
confrontar diretamente uma aliança de forças sociais capitalistas
e reacionárias, nacionais e estrangeiras. Fazendo-o, estamos a
confrontar um processo de distribuição de recursos de baixo para
cima e que se articula com um processo de distribuição de
recursos de dentro para fora. Fazendo-o, estamos a fundir uma questão
nacional politicamente potente a da independência do país,
que é a única forma de assegurar que os interesses da maioria dos
que aqui vivem são respeitados , com a indeclinável
questão social a da manutenção e reforço de
um Estado social que não sobrevive sem políticas
económicas nacionais de pleno emprego, que não sobrevive sem
instituições públicas, dos correios ao SNS, que criam uma
comunidade de destino, o cimento de uma primeira pessoa do plural que é
sempre o ingrediente de todas as grandes transformações
socialistas.
A esquerda que abandone o combate pela fusão destas duas questões
está a condenar-se a uma merecida irrelevância.
Crise
Com o desencadear da crise financeira de 2007-08 e o consequente aumento do
défice público em todas as economias desenvolvidas, a periferia
europeia foi colocada numa posição insustentável. Os
aumentos das necessidades externas de financiamento, conjugados com uma
dívida externa que se foi acumulando ao longo de anos e com a
ausência de soberania monetária, criaram as
condições para instalar a desconfiança sobre a capacidade
dos países da periferia europeia, como Portugal, conseguirem refinanciar
e assegurar o serviço da sua dívida.
O que podia ter sido uma tradicional crise de balança de pagamentos,
traduzida em especulação em torno da taxa de câmbio e
eventual desvalorização, tornou-se, no contexto do Euro, numa
crise de dívida pública, com os agentes financeiros a focarem a
sua atenção num ativo maioritariamente detido por estrangeiros. O
valor dos títulos de dívida pública destes países
caiu e as taxas de juro implícitas aumentaram. Estados como o
português perderam o financiamento de mercado que tinham promovido
ativamente desde que, nos anos noventa, deixaram, por imposição
europeia, de se poder financiar junto do seu Banco Central.
Contudo,
se bem que o problema português fosse essencialmente de dívida
externa privada, sobretudo bancária
, os problemas no refinanciamento privado não se verificaram. A banca
nacional, tendo também o seu financiamento de mercado bloqueado,
pôde recorrer ao financiamento de emergência do BCE, algo que
está vedado aos Estados. Os bancos portugueses estão hoje entre
os bancos europeus mais dependentes deste financiamento.
Contrariamente à narrativa dominante no espaço público,
sabemos hoje que a grave crise económica que Portugal atravessa, e que
viu o desemprego atingir o dobro do máximo histórico anterior
à adesão ao Euro, tem pouco ou nada que ver com um "viver
acima das possibilidades" ou com a "irresponsabilidade
orçamental". O problema maior da economia portuguesa foi, desde o
final dos anos noventa, a sua progressiva perda de competitividade externa no
quadro do Euro e a liberalização comercial e financeira promovida
à escala continental pela integração europeia e aceite
pelas elites nacionais.
Esta perda de competitividade traduziu-se num crescente desequilíbrio
das contas externas, com défices permanentes. O centro europeu, pelo
contrário, assistiu a crescentes excedentes externos, sobretudo
visíveis no caso da Alemanha. Esta acumulação de
défices por parte da economia nacional deu origem a uma das maiores
dívidas externas do mundo e impôs uma significativa
punção permanente de recursos nacionais que, se nada for feito,
se prolongará indefinidamente no futuro.
O Memorando de Entendimento assinado com a Troika em 2011 criou então os
instrumentos de ingerência externa sem os quais a agenda neoliberal da
maioria de direita não teria a força que tem hoje, conseguindo
operar uma transformação profunda da economia e da sociedade:
esmagamento do trabalho, sobretudo do organizado, crescente transferência
de recursos para o sector financeiro e para os interesses rentistas,
expansão do poder capitalista a todas as esferas da vida social e
aumento do fosso das desigualdades.
Manter o jugo da dívida e a dependência de financiamento externo
surge pois, de forma crescente, como condição necessária
para prosseguir e legitimar essa
agenda de reconfiguração das funções do Estado
, comprometendo as bases de uma economia com futuro e degradando
incessantemente a qualidade da própria democracia. É com esta
dupla ofensiva que uma esquerda de combate tem, inevitavelmente, de se
confrontar.
Que futuro neste quadro?
A resposta europeia à crise tem seguido um guião claro e
coerente: conceder empréstimos europeus aos Estados que perderam a
confiança dos mercados, com a contrapartida de
programas de austeridade que têm por objetivo garantir o serviço
da dívida pública com o mínimo de perdas dos credores
, ao mesmo tempo que
a "desvalorização interna" gera uma quebra dos
salários conseguida graças ao desemprego e à
alteração das regras sociais e laborais.
A condicionalidade dos empréstimos, as revisões sucessivas do
Memorando e o estabelecimento de regras gerais sobre política
orçamental, como as inscritas no recente Tratado Orçamental
Europeu, obedecem a este guião. A austeridade é o atual programa
europeu de apoio à moeda única, que pode ser complementado por
novos empréstimos à periferia e, eventualmente, com perdas
marginais para os credores em casos de clara insustentabilidade financeira.
O equilíbrio orçamental como "regra de ouro"
terá efeitos recessivos sobre a totalidade da economia europeia,
deprimindo o consumo privado e o investimento. Mas
enganam-se aqueles que pensam que austeridade permanente "é igual
para todos".
Ainda que os países da periferia consigam, com apoio europeu,
financiar-se nos mercados e estabilizar o seu ritmo de endividamento,
os efeitos da política orçamental europeia são claramente
assimétricos,
penalizando estes países por dois grandes motivos:
1.
Com dívidas públicas que continuarão bem acima da
média europeia e com taxas de juro de mercado necessariamente mais
elevadas do que o resto da Europa,
o custo do serviço da dívida será sempre muito mais
gravoso nestes países, impondo a obtenção de
extraordinários saldos primários. Estes saldos, em que o Estado
arrecada mais do que gasta correntemente, equivalem à saída de
recursos do país para o exterior.
Neste quadro, a economia portuguesa terá sempre um pesado lastro sobre
o seu desenvolvimento que impossibilita qualquer convergência com o resto
da Europa.
2.
Países com economias mais frágeis e com sectores informais mais
alargados terão de fazer um esforço orçamental mais
elevado do que as economias mais desenvolvidas, ainda que as metas nominais
sejam as mesmas.
Assim,
mesmo num quadro otimista
, em que as economias europeia e mundial recuperam e em que a assistência
financeira europeia continua (podendo envolver mesmo alguns custos para os
países do centro em eventuais reestruturações da
dívida pública),
Portugal não poderá ambicionar a mais do que a
estagnação depois do atual empobrecimento
, quer devido ao permanente peso da dívida e do equilíbrio
orçamental, quer devido à impossibilidade de o Estado poder agir
na economia, respondendo às deficiências estruturais que
estão na origem da crise.
O ajustamento externo, problema central da nossa economia, será sempre
feito através do empobrecimento e da consequente
diminuição de importações, e não por uma
requalificação da economia portuguesa, capaz de assegurar a
substituição de importações e de promover
exportações de elevado conteúdo tecnológico. Isto
é, as condições necessárias para instaurar uma
trajetória de crescimento social e ecologicamente sustentável
(reconversão energética, desenvolvimento de tecnologias verdes,
promoção da eficiência energética, etc.)
serão uma miragem cada vez mais distante.
Que fazer deste país?
O diagnóstico em torno das causas da crise e do atual enquadramento
europeu é essencial para se pensarem as alternativas à esquerda.
Há cerca de dois anos, alguns de nós escreveram um documento em
que se apresentavam as duas grandes alternativas ao dispor da esquerda na luta
contra a crise europeia:
a reconfiguração europeia ou a rutura com o Euro.
[1]
Estes continuam hoje a ser, à esquerda, os termos do debate de Portugal
na Europa.
Reconfiguração europeia: lutar por dentro
No primeiro caso, defende-se a mutualização da dívida
através de euro-obrigações, o eventual perdão
parcial de parte da dívida, o reforço do orçamento
comunitário e das transferências para os países do Sul, a
harmonização fiscal, a refundação do BCE, o aumento
do peso do Banco Europeu de Investimento, a união bancária, etc.
Este é um conjunto de propostas intelectualmente coerente, mas com dois
problemas imbricados que são cada dia mais claros.
O primeiro diz respeito ao que pressupõe: maior integração
europeia rumo a um modelo federal. A mutualização da
dívida a nível europeu e um orçamento europeu que apoie a
sua moeda implicam necessariamente um Tesouro Europeu, em suma um
Ministério das Finanças, por dois motivos. Em primeiro lugar, a
mutualização da dívida implica que toda a UE seja
solidária nas garantias da dívida de cada país, sem
limites financeiros pré-estabelecidos para a responsabilidade de cada
país como hoje acontece no Mecanismo Europeu de Estabilidade. Só
com recursos europeus (receitas fiscais europeias) é pois
possível empreender uma mutualização da dívida bem
sucedida. Em segundo lugar, existe a necessidade de um orçamento europeu
robusto: qualquer reforço que sirva para promoção da
convergência real das economias europeias implica superar o atual e
limitado modelo de transferências nacionais, em que o orçamento
não pode incorrer em défice, passando para um modelo onde,
novamente, a UE teria receitas próprias (impostos europeus) que geriria
enquanto orçamento federal, podendo incorrer em défices. Em suma,
este modelo implica um Tesouro europeu ou, mais simplesmente, um
Ministério das Finanças europeu.
Se o passo federal é entendido com naturalidade por muitos à
esquerda, aliado a um aprofundamento da democracia europeia (por exemplo, a
emergência deste Tesouro do Parlamento Europeu), ele coloca dois
problemas a pequenos países como Portugal.
Dados os diferenciais de desenvolvimento, desemprego, salários, modelos
de Estado Social e a fraca identidade europeia, não pode ser
expectável que países com pouco peso na UE tenham aí o
poder e a autonomia suficientes para alavancar a sua mudança estrutural.
As condições objetivas dos povos são diferentes e,
não obstante os campos de luta comum, os seus interesses, traduzidos
politicamente, também são diferentes, penalizando os
países mais atrasados e com menos poder.
Por outro lado, dada a história recente da UE e em particular da
Zona Euro , é uma ilusão política apostar
determinada e prioritariamente num programa federal progressista. O modelo do
mercado único, nos termos da ideologia neoliberal, constitui um
traço matricial da construção europeia, que está
estruturalmente no centro da sua ação e que se tem traduzido na
imposição da austeridade permanente e numa profunda
reorganização do seu poder interno favorável às
suas grandes potências, em especial à Alemanha.
Todos temos a obrigação de saber que
a lógica polarizadora do "desenvolvimento desigual e
combinado" capitalista
, e os seus efeitos materiais diferenciados nos ciclos políticos dos
vários países do centro e das periferias, conjugada com as
assimetrias cada vez mais cavadas de poder entre Estados, impõem a
colocação da luta contra formas de tutela imperial na agenda dos
desafios que se nos colocam, em particular na agenda dos periféricos e
fracos elos desta cadeia.
A evolução política recente e a permanente e crescente
divergência económica entre países implicam uma profunda
consciencialização das dificuldades de um programa federalista
que, sendo intelectualmente coerente, carece de bases económicas e
sobretudo políticas para responder à urgência de uma crise
socioeconómica sem paralelo nos países periféricos. De
resto, temos também a obrigação de saber que
um sistema federal, mesmo que politicamente possível, terá
necessariamente que enfrentar um forte viés neoliberal favorável
ao capital,
dada a fraqueza dos laços que unem os povos europeus e que tornam
qualquer processo redistributivo significativo numa miragem. Além do
mais, mesmo que um tal processo redistributivo ocorresse, as experiências
das regiões menos desenvolvidas em Estados federais impedem qualquer
atitude mais otimista, dada a força das dinâmicas estruturais
contrárias com que se deparam.
Rutura com o Euro: desobediência democrática
É hoje consensual à esquerda a necessidade de
libertação do fardo da dívida pública para a
prossecução de políticas públicas de
promoção da coesão social e do crescimento
económico. De facto,
os recursos que o serviço da dívida consome atualmente assumem
uma magnitude que é comparável ao orçamento anual para a
saúde ou educação.
No entanto, as propostas de renegociação da dívida das
esquerdas continuam a ser feitas de forma genérica, sem um mapeamento
claro e suficiente das opções e constrangimentos que essa escolha
implica. Não negando a complexidade jurídica e económica
que uma renegociação comporta, acreditamos que o seu
carácter genérico se deve também a razões de
natureza política.
De facto,
uma renegociação liderada pelo devedor
distinta portanto da reestruturação que foi empreendida
pela Troika e pelo Estado grego em 2011
implica uma moratória sobre o serviço da dívida, que
assinale uma posição de força do Estado português
nessa negociação.
E esse incumprimento tem consequências previsíveis: à
imagem do que aconteceu aquando do chumbo do plano de resgate cipriota pelo seu
parlamento, é provável que o BCE recuse o refinanciamento da
banca portuguesa, que é condição essencial para o seu
funcionamento. Ora, num tal quadro de recusa,
só a recuperação da autonomia monetária pode evitar
o colapso do sistema bancário português.
Consequentemente, temos a obrigação de saber e de tornar
claro que qualquer redução do fardo da dívida
pública, enquanto ato soberano e democrático, implicará,
em última instância e com elevadíssima probabilidade, a
imposição da saída de Portugal do Euro.
Tal não significa, no entanto, que a saída do Euro seja um
desenlace negativo. Pelo contrário, a saída do Euro apresenta-se
como resposta consequente ao diagnóstico que fazemos da atual crise.
Face aos desequilíbrios externos acumulados, traduzidos num brutal
endividamento externo da economia portuguesa,
a recuperação da soberania monetária constitui um passo
essencial, ainda que não suficiente, para a superação da
crise.
Essencial não só a fim de proceder a uma
desvalorização cambial promotora da competitividade-preço
da produção nacional, mas sobretudo com vista à
recuperação dos instrumentos necessários à
prossecução de uma política por parte do Estado
favorável aos trabalhadores e classes populares. Isto é,
uma política que assente na capacidade de o Estado se financiar junto do
seu Banco Central e na prossecução de uma política
monetária e de controlo de capitais que penalize o rentismo e dinamize o
investimento, com baixos juros reais e a libertação de recursos
destinados à redinamização da economia nacional.
Tal opção não pode ser entendida como uma política
de ganhos num jogo de soma nula, no qual os ganhos nacionais são
simétricos face às perdas incorridas por outros países.
Pelo contrário,
a saída do euro, além de permitir o reequilíbrio externo
da economia portuguesa, demonstrará, aos restantes povos europeus, a
existência de alternativas de desenvolvimento promotoras da igualdade na
economia e penalizadoras das elites dependentes do capital financeiro.
Sabemos que esta é uma opção com custos e riscos. A
desvalorização cambial traduzir-se-á num aumento da
inflação (por via da componente importada da despesa), no aumento
real da dívida externa e em ruturas potenciais no sistema de pagamentos.
Porém, estes problemas devem ser analisados friamente e na sua
verdadeira dimensão.
Efetivamente, devido ao efeito da inflação, a
desvalorização cambial conduzirá a uma perda real de
capacidade aquisitiva dos rendimentos nacionais (incluindo dos rendimentos de
capital e não apenas dos salários e pensões, como
tem sido o caso na trajetória atual). No entanto, como a não
muito longínqua história portuguesa demonstra,
os ganhos ou perdas salariais reais num contexto inflacionista são
determinados pela correlação das forças sociais nacionais
e são sempre mais favoráveis do que na alternativa decorrente da
desvalorização interna em curso, custosa em termos de desemprego
e de lastro de reformas neoliberais.
Sublinhamos, para que fique claro, que em tais circunstâncias os
objectivos de reequilíbrio externo e de recuperação da
parte dos salários no rendimento nacional não são
contraditórios entre si: uma vez que a inflação provocada
pela desvalorização é inferior em termos relativos
à própria desvalorização, o alinhamento dos
salários com a inflação esperada permitiria a
manutenção do respetivo poder aquisitivo real sem que os ganhos
de competitividade fossem anulados.
Outra preocupação, intimamente ligada à anterior, tem a
ver com a desvalorização das poupanças, mas, também
a este nível, tudo depende da política monetária adotada,
nomeadamente no que se refere às taxas de juro. No atual contexto de
sobre-endividamento privado,
é desejável uma taxa de juro inferior à
inflação que permita a redução real das
dívidas dos atores privados e incentive o consumo e o investimento.
A perda de valor dos ativos financeiros que isso implica decorrerá
assim de uma escolha política mediada pela inflação, que
favorecerá os devedores face aos credores sendo entretanto
possível e desejável implementar medidas que protejam os pequenos
aforradores, de modo a que a penalização dos credores corresponda
de forma mais perfeita a uma penalização do capital.
O
problema do aumento real da dívida externa em termos reais
é sem dúvida mais complicado do que os anteriores, uma vez que a
esmagadora maioria da dívida externa foi contraída por privados
(sobretudo a banca) e não pelo Estado. No entanto, esta dívida
está hoje na prática socializada pelas instituições
financeiras europeias através dos empréstimos do BCE à
banca nacional. Nos casos em que a dívida externa não puder ser
redenominada na nova moeda (o que depende do enquadramento legal dos diferentes
contratos de dívida), o Estado português terá no seu Banco
Central o instrumento de renegociação da dívida externa
remanescente englobando-a na renegociação da dívida
pública , já que foi através deste mesmo Banco
Central que boa parte dessa dívida foi canalizada. Por outro lado, no
caso das grandes empresas portuguesas que se endividaram diretamente no
exterior, estas terão que proceder a um recentramento da sua atividade,
vendendo os seus ativos externos para a pagar a sua dívida, no que
poderá aliás traduzir-se num salutar retorno de atividade ao
nosso país.
Finalmente, temos o
problema das potenciais ruturas a nível do sistema de pagamentos.
O cenário catastrófico, que importa evitar no contexto da
saída do Euro, é a conjugação de uma crise de
dívida, uma crise bancária e uma crise cambial. Se as duas
primeiras podem e devem ser prevenidas através de uma ação
imediata e eficaz em duas frentes (reestruturação da
dívida e nacionalização do sistema bancário,
financiado pela emissão de dívida na moeda nacional), a terceira,
a crise cambial, coloca mais problemas, já que depende de
variáveis não controladas pelo Estado. Todavia, uma
reação imediata ao nível da conversão
monetária (envolvendo dias de feriado bancário, tal como sucedeu
no Chipre), a mobilização de garantias (como as reservas
nacionais de ouro) no acesso às divisas externas e a
imposição de controlos de capitais permitirão minimizar os
riscos de uma desvalorização descontrolada da nova moeda e
ajudarão à estabilização do seu valor num
espaço de tempo relativamente curto. Acresce que um tal processo de
efetiva repressão financeira permitiria recolocar o sistema financeiro
ao serviço das efetivas necessidades da economia portuguesa, quebrando o
padrão rentista da acumulação da burguesia nacional e os
constrangimentos impostos pelo capital financeiro internacional. De resto, sem
controlos de capitais é impossível reconstruir uma
cooperação monetária à escala europeia que permita
gerir os ajustamentos cambiais necessários.
É importante frisar que
a opção política pela saída do euro não pode
ser confundida com aventureirismo,
pois decorre da avaliação dos constrangimentos com que nos
deparamos e dos passos necessários para a sua superação.
Também não é uma proposta que decorra de
raciocínios meramente económicos: pelo contrário, é
uma proposta intrinsecamente política, que tem no seu âmago uma
avaliação das perspetivas de evolução da
relação de forças entre classes dentro e fora da UEM. E
também não é uma proposta com objetivos ou
princípios nacionalistas de fechamento, uma vez que considera o
desmantelamento da UEM como uma condição necessária para o
progresso das classes populares em toda a Europa não apenas em
Portugal , podendo e devendo fazer-se acompanhar por novas modalidades
progressistas de cooperação entre Estados, por uma nova
declinação do europeísmo.
No entanto, sabemos que, no atual contexto, esta escolha é e será
diabolizada, muitas vezes com vozes ativas e cumplicidade à esquerda.
A desinformação sobre a saída do euro é permanente
e tem evoluído à medida que vai sendo debelada:
os combustíveis que encareciam 50%, as dívidas que ficavam em
euros, as caixas multibanco que não funcionavam, o fim do
comércio internacional, etc. É fundamental que desconstruamos
estes mitos e falácias que tolhem a eficácia da
ação política progressista e que percebamos claramente o
essencial. Em primeiro lugar, a afirmação clara da
disponibilidade para assumirmos a possibilidade de saída do Euro como
consequência da imposição unilateral da
libertação do jugo da dívida é uma arma negocial
fundamental, de que a esquerda tem vindo erradamente a abdicar.
Mais do que isso, a saída do Euro é, em si mesma, um elemento
fundamental de qualquer estratégia política progressista e
emancipatória, dado que a União Económica e
Monetária foi, e é, o mecanismo que instaurou a divergência
internacional permanente no seio da UE e que alterou decisivamente a
relação de forças em desfavor dos trabalhadores e classes
populares. Deve por isso ser assumida como objetivo instrumental claro da
política progressista. E, finalmente,
não devemos permanecer tolhidos pelo medo da incerteza que lhe
está associada, pois essa incerteza não só é menor
do que habitualmente é afirmado, como se contrapõe à
certeza de uma trajetória permanente de empobrecimento nacional e de
recuo dos trabalhadores e classes populares. Podemos afirmar com propriedade: o
medo injustificado e ativamente promovido pelas forças conservadoras
é atualmente o nosso pior inimigo.
Conclusões
No atual contexto, sabemos que as contradições colocadas pela
Zona Euro à periferia europeia não encontram em Portugal o seu
expoente máximo. Todavia, tal constatação não deve
traduzir-se em maior tibieza por parte da esquerda portuguesa. Pelo
contrário, num quadro em que a diabolização da
opção soberana tenderá a crescer no espaço
público, até na proporção em que a sua popularidade
for crescendo, é decisivo que a esquerda nacional consiga construir uma
robusta plataforma política soberana para o país que responda aos
desafios políticos que se colocarão à União
Europeia no futuro, sejam eles produto de uma correlação de
forças sociais favorável em Portugal ou em qualquer outro
país da periferia Europeia.
Uma Europa solidária de esquerda implica por isso a ativa
mobilização contra uma integração europeia em cujo
centro está a neoliberalização assimétrica do
espaço europeu. Assim,
a campanha de uma força de esquerda que queira ser portadora de um
projeto de esperança para os que aqui vivem tem de saber articular
três grandes linhas: desobediência e recusa das perdas passadas e
futuras de soberania, porque quem manda aqui é o povo português;
renegociação da dívida, porque esta foi o produto de uma
integração disfuncional e constitui um fardo intolerável;
e exigência de saída do Euro, porque é a única forma
de recuperarmos os instrumentos de política sem os quais não
existe a escolha de que é feita a soberania democrática.
24/Novembro/2013
[1]
debate-a.weebly.com/uploads/8/8/5/3/8853184/dez_ideias_bloco.pdf
.
Nota: Os sublinhados a vermelho são da responsabilidade de resistir.info.
[*]
Economistas, co-autores de
A Crise, a Troika e as Alternativas Urgentes
O original encontra-se em
https://docs.google.com/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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