O comboio do Euro descarrila
O parlamento grego submeteu-se portanto à tortura orçamental
("fiscal waterboarding")
da Troika e concordou com os termos de um novo programa de salvamento externo
(bailout)
que amarrará a economia grega à regra das euro
instituições e do FMI durante pelo menos três anos. E isto
significará que a maioria dos gregos terá austeridade e
padrões de vida reduzidos que lhe serão impostos durante o futuro
previsível.
As implicações podres dos termos deste acordo têm sido
habilmente criticadas pelo ex-ministro grego das Finanças, Yanis
Varoufakis,
num dos seus artigos recentes
. Assim, neste artigo quero considerar o quadro mais vasto do projecto europeu.
Recuando a 1989, a França e a Alemanha decidiram que iriam promover mais
do que a União Europeia e avançar para uma união
monetária única destinada a criar uma divisa para o
comércio e o investimento que rivalizasse com o dólar e o yen.
Isto colocaria a Europa ou, para ser mais exacto, o capital
franco-alemão no mapa global como um grande "jogador".
Para fazer este trabalho, a princípio 10 outros países europeus
foram persuadidos a abandonar suas divisas nacionais em favor do euro.
Como se vê, o projecto Euro é realmente como um comboio. O comboio
tem uma locomotiva (Alemanha) e uma carruagem condutora (França) e a
seguir foram-lhe acopladas dez outras carruagens. A França foi muito
entusiasta em obter ainda mais carruagens para o comboio. Logo havia 15, depois
18 e agora 19 carruagens.
A cenoura para estes estados capitalistas europeus mais fracos é que
seriam capazes de beneficiar da integração na área euro
através da convergência dos seus PIBs e padrões de vida com
os estados mais ricos. Mas para fazerem isto, o bastão era que primeiro
tinham trazer as suas taxas de juro e de inflação e os seus
défices orçamentais e os seus rácios da dívida
pública a um certo nível acordado para assegurar que a divisa da
união se firmaria e que a divergência de categorias
orçamental e monetária não seria demasiado grande.
Mas nenhum deles o fez, incluindo a Alemanha e a França. Longe de se
verificar convergência, o desenvolvimento desigual do capitalismo
simplesmente agravou a divergência das economias Euro em matéria
de emprego, crescimento da produtividade e inflação.
Exemplo: se olharmos para o PIB real per capita dos 12 euro-estados originais
em 1999 e compararmos como os de 2014 (utilizei a base de dados AMECO da
Comissão da UE), descobrimos que nos últimos 15 anos houve ainda
mais divergência entre o estado com o mais alto PIB per capita (a
Holanda) e um com o mais baixo (Portugal). E tem havido mais divergência
porque as economias mais fracas têm caído ainda mais para
trás, não fecharam o fosso.
Na verdade, desde 1999, o PIB real per capita da Itália caiu 21% em
comparação com a média dos Euro-12, ao passo que o da
Irlanda subiu relativamente em 6%.
Mas o projecto Euro foi em frente de qualquer maneira. Tudo parecia bem
até o Crash Financeiro Global e a Grande Recessão que se seguiu.
Foi como uma avalanche que atingiu o comboio Euro e encheu as carruagens com
variados graus de entulho.
Todo o comboio Euro sacolejou até parar.
O peso da avalanche atingiu os mais fracos e sobretudo os da cauda.
Várias
carruagens balouçaram quase a saírem dos trilhos
(Irlanda, Portugal, Grécia e Espanha). Outras sacolejaram duramente
(Itália, Eslovénia, Chipre).
A avalanche deixou uma enorme pilha de dívida sobre as carruagens mais
fracas do Euro. Mas ao invés desta dívida ser igualmente
distribuída pela locomotiva e o condutor à frente do comboio de
modo a que as carruagens Euro de trás pudessem permanecer nos trilhos, o
entulho nas da frente (esmagando bancos alemães e franceses) foi
despejado
(bailed out)
e esse fardo foi amontoado ainda mais sobre as carruagens posteriores.
Finalmente, a expensas do trabalho e dos contribuintes das carruagens mais
fracas, as carruagens posteriores lutaram para voltar aos trilhos e o comboio
do Euro moveu-se outra vez, muito vagarosamente.
Mas não a Grécia. Ela estava demasiado fraca e demasiado pesada
devido ao lixo da avalanche. Claramente, ela nunca deveria ter estado no fim do
comboio do Euro. Mas ela estava no fim e agora era como uma carruagem
descontrolada
indo para trás quando o comboio se movia novamente.
Ao invés de ajudá-la pela redução do peso do
entulho (dívida) que ela tinha, a locomotiva alemã e o condutor
francês empilharam ainda mais dívidas sobre ela. As outras
carruagens ficaram satisfeitas porque já estavam sobrecarregadas e
não queriam qualquer entulho (dívida) a mais da Grécia.
Finalmente, a locomotiva alemã começou a pensar que a melhor
coisa a fazer era simplesmente desligar a carruagem grega de modo a que o
comboio Euro pudesse recomeçar a andar. Mas ela foi persuadida pelo
condutor francês (e outras carruagens preocupadas, as quais pensavam que
poderiam ser as próximas), de que deveria ser permitido à
carruagem grega permanecer ligada.
Aparentemente, a locomotiva alemã e o condutor francês, juntamente
com um conjunto de inspectores ferroviários (Comissão Europeia)
estão à espera de que a carruagem grega fique mais fortalecida
porque deve carregar mais entulho. Mas esta política havia fracassado em
duas ocasiões anteriores.
Um outro inspector ferroviário (o FMI) considera agora que colocar mais
dívida dentro da carruagem grega só irá piorar as coisas.
Mas a Comissão Europeia e os alemães estão a resistir
à sua solução de transferir uma parte daquele entulho para
dentro das outras carruagens a fim de aliviar a carga da grega.
O relatório mais recente do FMI sobre a sustentabilidade da
dívida grega deixa claro: a menos que a dimensão da dívida
pública grega seja reduzida em pelo menos 30% do PIB e que o
período para liquidar o resto seja estendido por até 30 anos, o
fardo será demasiado para a Grécia (
thenextrecession.files.wordpress.com/2015/07/cr15186.pdf
). O rácio da dívida realmente ascenderá dos actuais 180%
do PIB para mais de 200%, ou mais do que o dobro do nível a que a
Grécia começou na crise em 2010. A carruagem grega, já
descontrolada no fim do comboio do Euro, cairá fora.
Em contraste, o
relatório mais recente da Comissão Europeia
argumenta que as coisas não são tão más
porque o fardo do reembolso da dívida já foi recuado até
2022 e os custos do serviço anual da dívida são de apenas
2% do seu PIB, muito baixo e mesmo mais baixo do que outras carruagens como
Portugal ou Irlanda estão a pagar.
O problema com este argumento é que mesmo 2% do PIB de serviço da
dívida por ano exige pelo menos 2% de crescimento por ano e mesmo assim
isso apenas estabilizaria a dívida, não a reduziria. O peso do
entulho sobre a carruagem grega permaneceria o mesmo. Mas a economia grega
não está a crescer sequer a 2% ao ano. Ao contrário.
A Troika está a exigir que o governo grego obtenha no seu
orçamento um excedente de 3,5% do PIB antes dos custos dos juros da
dívida. Isto é assim para que possa reembolsar a dívida ao
BCE e ao FMI em 2018. E o pacote mais recente que a Troika impôs aos
gregos inclui 13 mil milhões de cortes nos gastos governamentais
e aumentos de impostos (IVA) etc. Isto só pode conduzir a economia ainda
mais para baixo. Há uma estimativa de que a economia grega estará
4,8% menor do que estaria normalmente em 2018 (o fim do novo programa bailout)
por causa das novas medidas de austeridade.
Mas a ironia cruel deste último pacote da Troika é que 90% dos
enormes financiamentos de 82 mil milhões serão utilizados
para recapitalizar o aflito sector bancário privado grego; reembolsar o
FMI, o BCE e outros credores. Só 8 a 12 mil milhões
estarão disponíveis para financiar o défice governamental
ao longo dos três anos. Assim, de um fundo bailout de aproximadamente 40%
do PIB anual grego, só 4% iráo para o povo grego ao longo dos
três anos.
Alguns argumentam que o bailout funcionará pois uma parte do dinheiro
irá para bancos gregos e eles podem começar a emprestar outra
vez; os depósitos na banca voltarão; o capital que fugiu
retornará e os atrasos de pagamentos do governo serão liquidados.
Talvez, mas isso só conseguirá que as coisas voltem ao ponto onde
estavam antes das tortuosas negociações iniciadas em Fevereiro
último. A partir daí, a questão do crescimento mais
rápido dependerá de os capitalistas gregos investirem, bem como
de um influxo de capital estrangeiro. Podemos realmente esperar por isso? A UE
diz que proporcionará até 35 mil milhões em
investimento novo. E isto constitui no máximo apenas 3-5% do PIB anual
se se materializar, ao passo que as medidas de austeridade estão a
atingir a economia a 3-4% do PIB durante os primeiros dois anos.
De modo que a carruagem grega provavelmente permanecerá como um fardo
aborrecido no fim do comboio Euro. O ministro alemão das
Finanças, Schauble, está correcto de certa maneira. Ela deveria
ser desligada de modo a que o Euro-comboio possa mover-se. Mas esse argumento
também poderia ser aplicado às outras carruagens.
E aqui está a dificuldade. O Euro-comboio está a lutar para andar
nos trilhos de alguma maneira. O crescimento do PIB real é fraco, mesmo
na cabeceira do comboio. E não há intenção de
partilhar o fardo da recuperação ou crises futuras com
transferências orçamentais dos estados mais ricos para os mais
pobres, como numa federação justa ou numa união
orçamental (ver minha mensagem,
https://thenextrecession.wordpress.com/2015/02/12/red-lines-and-fiscal-union/
).
Pior ainda: fazem agora sete anos desde começo da Grande Recessão
que revelou esta desordem no Euro-comboio. As recessões parecem surgir
com regularidade a cada 8-10 anos. De modo que a Eurozona podia estar a
encaminhar para uma nova queda bem antes de o programa de salvamento grego ser
completado em 2018.
Além disso, o problema da fraca lucratividade do capital permanece
na verdade, a lucratividade do capital nos estados da Eurozona caiu
dramaticamente nos últimos 15 anos. Só a Alemanha foi beneficiada
com o comboio do Euro.
A dívida do sector privado e do público permanece a níveis
recorde. Se o comboio do euro permanecer no túnel da depressão e
ainda for atingido por um novo bloqueio nos carris...
. ele pode não mais permanecer como uma unidade.
Ver também:
Possibilidade de confisco (bail-in) de depósitos na banca grega
Alemanha pressiona por bail-ins de grandes depositantes gregos
Greece, Preliminary Draft, Debt Sustainability Analysis
, FMI, 26/Jun/15
[*]
Economista.
O original encontra-se em
thenextrecession.wordpress.com/2015/07/19/the-euro-train-going-off-the-rails/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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