EUA: uma contradição peculiar e novíssima
por José Valenzuela Feijóo
[*]
Comecemos por uma pergunta: pode emergir uma contradição entre as
grandes corporações transnacionais estado-unidenses e o
capitalismo norte-americano?
O próprio enunciado poderia parecer absurdo: se se fala do capitalismo
de tal ou qual país, será possível pensar que surja uma
contradição entre este e suas empresas capitalistas? Acaso
não se estará a falar do mesmo? Será que se pode falar de
capitalismo nacional como algo distinto ou separado das empresas capitalistas
que nele radicam? O tema merece alguma discussão mínima. Podemos
abordá-lo em termos: i) da dinâmica e modos que assume o
investimento no estrangeiro; ii) das origens sectoriais e regionais dos lucros.
O investimento no estrangeiro
O investimento no estrangeiro, ou exportação de capital,
constitui uma característica antiga das grandes potências
capitalistas. E quando o sistema avança para a sua fase monopolista, tal
característica acentua-se: "o que caracterizava o velho
capitalismo, no qual dominava plenamente a livre competição, era
a exportação
de mercadorias.
O que caracteriza o capitalismo moderno, no qual impera o monopólio, e
a exportação
de capital
".
[1]
Neste momento, podem-se distinguir diversas etapas. Num primeiro momento, a
direcção das exportações de capital vai do centro
para a periferia e concentra-se na produção e
exportação de matérias-primas. Estas tornam-se baratas e
ajudam a baixar a composição do valor do capital e, por esta via,
elevar a taxa de lucro. Além disso, o grosso da indústria
continuava localizado no pólo desenvolvido.
Num segundo momento, pelo menos na América Latina, emerge algum
desenvolvimento industrial impulsionado pelo Estado e capitalistas nacionais. O
que muito contrariava os teóricos neoclássicos, os que
continuavam a defender a "racionalidade" da tradicional
divisão internacional do trabalho. Em termos quase "curiosos",
em pouco tempo chegou ali o capital transnacional, apoderando-se dos segmentos
mais estratégicos. Junto a esse movimento há outro que se deve
sublinhar: o investimento estrangeiro também se move
entre
os países do centro: vai dos Estados Unidos para a Europa e vice-versa,
do Japão para a Europa, etc. Neste caso, não são os baixos
salários o factor que os impulsiona e sim a dimensão dos mercados
para bens industriais. Os lucros que este movimento gera favorecem mais os
Estados Unidos: na Europa, por exemplo, expande-se o
american way of life
e a cultura gringa tende a impor-se. Esta fase coincide com outra: a do
padrão de acumulação com regulação
keynesiana que imperou nos EUA e Europa desde fins dos anos quarenta
até, aproximadamente, meados ou fins dos setenta. Também se deve
destacar: nesta fase observa-se um crescimento muito forte das grandes
companhias transnacionais.
Desde fins dos anos setenta até agora, o que impera é o
padrão neoliberal. Se pensarmos nos EUA, verificamos: a) piora
drasticamente a distribuição do rendimento: sob a taxa de
mais-valia; b) cai o coeficiente de investimento e reduz-se significativamente
o ritmo de crescimento do PIB; c) geram-se problemas do lado do emprego
produtivo; d) o mercado interno torna-se pouco atraente; e) emerge um
défice crónico na Balança de Pagamentos, o qual é
financiado através do expediente de emitir dólares que os
estrangeiros adquirem e utilizam como meio de reserva.
No plano que mais nos interessa cristaliza-se um fenómeno chave:
torna-se possível uma minuciosa fragmentação dos processos
produtivos. Portanto, esta fragmentação possível dá
lugar a que diversas partes do processo produtivo se possam localizar em muito
diversos pontos do globo terráqueo. O que passa a depender dos
níveis do salário, das políticas tributárias e
cambiais e das possíveis infraestruturas (portos, caminhos, energia
eléctrica, etc) que possam oferecer os diversos países e
regiões. Tudo isso recorda não pouco as condições
que se verificavam durante o modelo primário-exportador em vigor na
América Latina durante o século XIX (últimos dois
terços) e no primeiro terço do século XX.
Nas condições actuais, o investimento que se efectua fora, em
países como por exemplo o México, provoca um alto ritmo de
crescimento das exportações mexicana e, por sua vez, gera efeitos
de arrastamento que são praticamente nulos. As exportações
crescem a bom ritmo (as importações ainda mais), mas o PIB
permanece quase estagnado em termos per capita. Ou seja, os efeitos de
arrastamento destes investimentos sobre a economia nacional interna do
país recipiente são quase nulos. Mas aqui interessa-nos o impacto
na economia interna dos Estados Unidos.
No caso estado-unidense destaca-se o forte crescimento do investimento que suas
grandes empresas aplicam no estrangeiro. Ao mesmo tempo, o debilitamento do
investimento que se aplica no território estado-unidense: investe-se
muito fora e muito pouco dentro do país. Em 1982 o investimento directo
dos EUA acumulado no estrangeiro chegava a 207,8 mil milhões. Em 2016
chegou a 5332,2 mil milhões. Multiplicou-se 25,7 vezes, crescendo a uma
taxa média anual de 10%. Entre 1982 e 1990 cresce a 9,5%. Entre 1990 e
2007 a 12,1% e entre 2007 e 2016 (período que abrange a grande crise de
2007-2009) cresce a 6,6%. A expansão é alta, com crescimento a
ritmos anuais muito elevados. Também se observa que no período
2007-2016 a expansão reduz-se bastante, quase à metade do
período anterior. Neste, pode-se supor que, devido à crise, os
"factores de atracção" se enfraquecem fortemente. O que
certamente está ligado à recessão que afecta não
só os EUA como também a Europa e o Japão. Os dados
básicos mostram-se no Quadro I.
Quadro I: EUA, Investimento directo no estrangeiro
Ano
|
Valor acumulado
(US$ mil milhões)
|
Índice
|
1982
|
207.8
|
100
|
1990
|
430,5
|
207
|
2000
|
1 316,2
|
633
|
2007
|
2 994,0
|
1 441
|
2016
|
5 332,2
|
2 566
|
Fonte: D.T. Jennings y S. Stutzman, "Direct Investment Position for
2016", em Survey of Current Business, July 2017.
Valores a custos históricos.
O aumento do investimento no estrangeiro pode ser melhor avaliado se o
compararmos com o comportamento do investimento no país. Isto é
mostrado no quadro seguinte.
Quadro II: Investimento nacional e no estrangeiro (índices)
Rubrica
|
2000
|
2014
|
Taxa média anual de crescimento
|
Investimento fixo não residencial
|
100,0
|
130,4
|
1,9 %
|
Investimento directo no estrangeiro
|
100,0
|
373,0
|
9,9 %
|
Fonte: Para investimento fora ver fonte do quadro I.
Para Investimento Fixo não residencial, NBER, "Economic Report of
the President, 2016".
A série é a preços constantes.
A evidência é contundente. Cresce muitíssimo mais o
investimento no estrangeiro do que no país. De facto, o investimento
interno mostra sinais claros de estancamento.
Convém especificar e notar os factos mais decisivos.
Primeiro:
cresce muito o investimento das CMN dos EUA no estrangeiro. E
enfraquece-se no território nacional.
Segundo:
no exterior, gera-se uma rede ou cadeia de produção que
impressiona pela sua fragmentação e extensão
geográfica. Produzem-se diversas partes do produto final em
regiões muito diversas, em cada uma das quais é acrescentado
certo montante de valor agregado.
Terceiro:
numa alta percentagem, o produto final acaba por ser vendido aos
próprios Estados Unidos.
Quarto:
no fim deste círculo, os Estados Unidos começa a
transformar-se num grande comprador (importador) de produtos finais e, ao mesmo
tempo, vai perdendo sua capacidade de produção industrial
com a consequente e forte perda de ocupações industriais. Em
alguns estudos estima-se que entre 2001 e 2011 a perda de empregos nos EUA
provocada pelo seu défice com a China chegou aos 2,7 milhões.
[2]
Um cálculo recente abrange os anos 2001 a 2015 e estima a perda de
empregos em 3,4 milhões.
[3]
Quanto ao NAFTA [North American Free Trade Agreement], nos seus primeiros 20
anos de funcionamento a perda em relação ao México e
Canadá é estimada em 850 mil empregos.
[4]
Quinto:
como contrapartida, emerge um forte défice na balança
comercial dos EUA. Com isto, o problema vital da realização do
excedente agrava-se ainda mais.
Para concluir esta enumeração, recordemos uma expressão
clássica: "o que é bom para a General Motors é bom
para os Estados Unidos". Alguns criticavam-na pois a classe
operária gringa tinha pouco a ver com tais benefícios. Pelo
menos, beneficiava-se numa proporção bastante menor. Mas agora, a
situação parece estar a mudar num sentido bastante mais radical:
o que é bom para as grandes corporações multinacionais
estado-unidenses já deixou de ser bom para o capitalismo dos EUA.
[1] Lenin, "El imperialismo, fase superior del capitalismo", en
Obras Escogidas, Tomo I, pág.741. Edit. Progreso, Moscú, 1978.
[2] Ver R. E. Scott, "The China toll: growing U.S. trade deficit with
China cost more than 2.7 million jobs between 2001 and 2011, with job losses in
every state"; Economic Policy Institute; Briefing Paper, n° 345.
[3] R. E. Scott, "Renegotiation NAFTA is putting lipstick on a pig";
en Economic Policy Institute, 21 de Agosto, 2017 (página
electrónica).
[4] R. E. Scott, ibídem.
[*]
Economista, chileno, professor universitário no México.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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