A verdadeira história dos voos da CIA Os táxis da tortura
por Trevor Paglen e A. C. Thompson
[*]
Uma cidade chamada Smithfield
A pequena cidade de Smithfield fica a meia hora de distância de Raleigh,
na Carolina do Norte. A cidade fica aninhada entre inúmeros hectares de
pinheiros altos e esguios e as correntes lânguidas e lamacentas do rio
Neuse. Aqui, a empresa Aero Contractors opera às claras. A Aero faz
trabalhos para a CIA e muitos dos seus funcionários vivem na cidade.
Pode-se dizer que Smithfield é uma cidade da empresa e estamos
interessados em a observar de perto.
À medida que avançamos em direcção à cidade,
com cerca de doze mil habitantes, localizada no condado rural de Johnston, as
placas que ilustram um certo etos regional começam a acumular-se, umas
atrás das outras. Um bar chamado
The Last Resort,
situado nos arredores da cidade, está adornado com bandeiras
confederadas. Vêem-se memoriais de guerra por todo o lado. O tribunal do
condado, fechado nesta Sexta-feira Santa, está adornado com cinco destes
memoriais e, adicionalmente, com placas que comemoram duas batalhas diferentes
da Guerra Civil. Do outro lado da rua, a Riverside Coffee Company exibe uma
carta emoldurada de agradecimento dos elementos de uma companhia do
Exército estacionada em Fort Bragg, nas proximidades. À medida
que nos embrenhamos na cidade, vemos cartazes e placas de néon que
proclamam, uma e outra vez, que Jesus é o Senhor, que Ele salva, e que a
condenação eterna está sempre a alguns passos de
distância. Vêem-se igrejas por todo o lado.
Mas as coisas por vezes correm mal na Terra do Senhor: os romances e os filmes
de terror estão cheios de lugares-comuns sobre cidades pequenas. Nessas
histórias, as cidades pequenas muitas vezes escondem um segredo profundo
e aterrador. E, apesar de aquilo que acontece no aeroporto do Condado de
Johnston não ser o mesmo que no filme de terror
Children of the Corn,
não está muito longe disso. Smithfield, tal como muitas cidades
pequenas, alberga algumas coisas sobre as quais é melhor não
falar.
Estamos interessados no que se passa no aeroporto local. O aeroporto do Condado
de Johnston é um pequeno aeroporto regional, nos arredores de
Smithfield. É pouco mais do que uma pista ao lado de um pequeno conjunto
de hangares, caravanas e barracas. A maior parte dos aviões aqui
estacionados são pequenos aviões a hélice Cessna pilotados
por entusiastas locais da aviação. Mas a Aero Contractors, Ltd.,
também opera fora do aeroporto. Dirige as suas operações a
partir de uma reduzida área situada a sul da pista, ao fundo de uma rua
lateral chamada Charlie Day Memorial Drive. (O nome da rua sugere o
negócio da Aero Contractors: Charlie Day era um mecânico da
empresa de fachada da CIA, Air America.) Enquanto algumas empresas de fachada,
como a Premier Executive Transport Services, são efectivamente
proprietárias dos táxis da tortura da CIA, a Aero Contractors
é uma das empresas que os controla e os põe a voar.
E, portanto, este pequeno aeroporto rural no coração do Condado
Johnston é a última paragem de inúmeros voos de entrega de
prisioneiros da CIA. Um dos mais infames aviões de tortura, o Gulfstream
V, conhecido como o Expresso da Baía de Guantánamo, teve como
base principal este aeroporto ao longo de cinco anos. Uma pequena frota de
aviões com turbopropulsores, de fabrico espanhol, da marca Casa, e que
foram vistos em todo o mundo, também aqui estão estacionados. Um
Twin Otter, com o número de cauda N6161Q e operado pela Aero, efectua
voos regulares até aos campos de treino da CIA, em Camp Peary. A Aero
Contractors opera igualmente o infame Boeing Business Jet 737 a partir de um
aeroporto próximo, situado em Kinston, na Carolina do Norte.
* * *
Walt e Allyson Caison são das poucas pessoas que vivem no Condado de
Johnston que se disponibilizam para falar sobre as operações da
CIA no aeroporto local. Mostram-se extremamente loquazes relativamente a este
tema e são muito críticos. Na medida em que são
cristãos profundamente empenhados, os Caison sentiram-se bastante
perturbados quando, em Maio de 2005, o programa noticioso
60 Minutes
apresentou uma reportagem sobre o caso de Khaled El-Masri. El-Masri é
um cidadão alemão que foi raptado enquanto passava férias
na Macedónia; acabaria por ser transportado para uma prisão
secreta da CIA no Afeganistão e torturado. O programa
60 Minutes
implicara a Aero Contractors e o aeroporto do Condado de Johnston no seu
desaparecimento e posterior tortura. Apesar de os pilotos e pessoal da Aero que
viviam na comunidade dos Caison provavelmente não terem raptado
terroristas suspeitos na rua, e provavelmente também não terem
sido eles a aplicar qualquer tipo de tortura, tinham, conforme sabemos,
tripulado os aviões de transporte. E Walt e Allyson sabiam que os pais
dos amigos dos seus filhos tinham transportado prisioneiros encapuçados,
drogados e algemados para algumas das prisões mais secretas da guerra
contra o terrorismo. Mais ainda, estes voos regressavam sempre a Smithfield; a
base principal dos táxis da tortura situava-se nas traseiras da casa dos
Caison.
Walt, um psicólogo de meia-idade, com um bigode farfalhudo e olhos
gentis, há muito que tinha conhecimento daquilo que se passava no
aeroporto. Ouvira falar pela primeira vez sobre a Aero Contractors enquanto
escuteiro numa saída em que fora acampar com o filho. Certa noite,
já muito tarde, em torno da fogueira, um dos outros pais tinha abordado
a questão da "operação dirigida pela CIA no
aeroporto". Walt não insistira no assunto, receando ofender o
conservadorismo arreigado do outro indivíduo. A presença da CIA
em Smithfield era um segredo conhecido de todos, disse Walt: "Todas as
pessoas na cidade sabiam há anos que havia ali uma companhia de
aviação que realizava operações para a CIA".
[1]
"Analiso esta situação a partir de uma perspectiva baseada
na fé, o que está certo, está certo", disse-nos
Allyson.
[2]
Os Caison entendiam que a sua fé continha uma mensagem de
justiça, uma obrigação de fazer frente à
injustiça e de tratar as outras pessoas com decência,
independentemente do que elas tivessem feito. Era difícil imaginar algo
mais anticristão do que fazer desaparecer e torturar pessoas, pensavam
eles. Mas a presença da Aero no condado, já para não falar
do trabalho em que a empresa estava envolvida, não era um tema de
discussão pública, disseram-nos. As poucas conversas que se
verificavam entre os vizinhos dos Caison e a congregação da
igreja revolviam em torno de saber se a Bíblia autorizava a tortura.
Várias pessoas na igreja dos Caison tinham absoluta certeza que sim.
Para tal, indicavam que, no Livro da Revelação, Deus ordenara aos
enxames de gafanhotos que torturassem os descrentes.
Para Walt e Allyson Caison, falar sobre desaparecimentos e tortura no Condado
de Johnston é menos abstracto do que nas páginas do
Washington Post
ou do
The New York Times,
Falar contra a tortura em Smithfield é falar, literalmente, contra as
acções dos vizinhos. Todas as pessoas em Smithfield se conhecem,
conhecem os vizinhos e os vizinhos dos seus vizinhos. E a Aero é o maior
empregador da região. Para os Caison, falar connosco sobre tortura era
semelhante a acusar as pessoas da sua cidade de participarem numa
conspiração satânica. Além disso, havia fortes
razões para evitar qualquer tipo de divergência. Disseram-nos que
o conselho de administração da Aero é composto pelos
líderes religiosos e empresariais da cidade, advogados e outros
elementos proeminentes da pequena comunidade. O sacerdote da igreja dos Caison
fazia parte do conselho, tal como muitos dos "membros mais respeitados da
comunidade" de Smithfield, disse Allyson.
* * *
O gestor adjunto da Aero Contractors, que dirige efectivamente a empresa,
é um indivíduo chamado Bob Blowers. E, tal como muitas das
pessoas envolvidas no programa de entrega extraordinária de
prisioneiros, tem afirmado que a Aero Contractors não tem absolutamente
ligação nenhuma com a CIA, muito menos com torturas e
desaparecimentos. Quando a imprensa local começou a colocar
questões sobre a Aero, Blowers insistiu que a empresa era uma companhia
de aviação de voos charter genéricos e que não
tinha qualquer ligação com o transporte de suspeitos de
terrorismo por todo o mundo. "Operamos aqueles aviões
internamente", disse ele ao
Smithfield Herald.
"Nenhum dos nossos funcionários foi ao estrangeiro
na
verdade não sei por que motivo se verifica toda esta
agitação".
[3]
No entanto, quando o
The New York Times
deu seguimento jornalístico à peça do programa
60 Minutes,
Blowers reconheceu uma ligação ao governo: "Temos vindo a
fazer negócios com o governo desde há muito tempo, e uma das
razões para isso é o facto de não falarmos sobre o
assunto".
[4]
Em 2006, Blowers deixou de falar com os meios de comunicação
social. "Já se agitaram o suficiente as águas", disse
Lamar Armstrong, o advogado da empresa, declinando os nossos pedidos de uma
entrevista.
Mas a repetida insistência de Blowers quando afirma que a empresa
é uma empresa de aviação de voos charter perfeitamente
normal é fortemente contrariada pelos registos da empresa na
Administração Federal de Aviação, e pelas
histórias contadas por ex-pilotos. Por exemplo, numa carta de 30 de
Novembro de 2001 do registo da FAA sobre o Boeing Business Jet 737 (o
avião que transportou Khalid El-Masri, Binyam Mohammed e inúmeros
outros prisioneiros para a rede de câmaras de tortura da CIA e outras
prisões secretas) Blowers escreveu à Administração
Federal de Aviação solicitando que fosse atribuído um
número de registo à Premier Executive Transport Services.
Os documentos de manutenção do Expresso da Baía de
Guantánamo também têm as marcas de Blowers: numa carta de
Janeiro de 2005 para a FAA, Blowers escreveu que "o número de
registo no G-V
que operamos
mudou para N44982" (acrescentámos o itálico). Outras cartas
e documentos nos ficheiros da FAA reiteram o facto de a Aero operar
vários aviões da CIA.
[5]
E as informações descobertas nos ficheiros da FAA são
corroboradas, tal como muitas outras provas, pelos registos de voo dos
aviões. Quer o Expresso da Baía de Guantánamo tenha
transportado algum infeliz prisioneiro até Cabul ou dignitários
de serviços secretos estrangeiros a reuniões em Washington, os
registos de voo mostram sempre que os táxis da tortura regressaram a
Smithfield.
O problema das tentativas de Bob Blowers de "negação
plausível" é que a sua versão da
"negação" simplesmente não é
plausível.
* * *
A Aero Contractors é apenas uma das mais recentes
encarnações da história das linhas aéreas secretas
da CIA. Na verdade, a agência controla aviões praticamente desde
que existe. Começou com uma empresa chamada Civil Air Transport (CAT),
constituída em 1946 por Claire Chennault, Whiting Willauer e Thomas G.
Corcoran. A intenção deles era usar a companhia para apoiarem os
nacionalistas chineses, já que se iniciava a guerra civil na China.
Chennault era um general americano reformado com uma longa história na
China; liderara os Flying Tigers (pilotos voluntários americanos que
lutavam em defesa dos chineses contra os japoneses) e a Décima Quarta
Esquadra da Força Aérea durante a Segunda Guerra Mundial. A CAT
ganhava dinheiro principalmente no apoio prestado às
operações paramilitares dos nacionalistas chineses. Nos seus
primeiros anos, a CAT transportou militares, abastecimentos, diplomatas e
executou outras missões em nome das forças em retirada de Chiang
Kai-shek. No entanto, em 1949, a CAT começara a implodir, empurrada de
um lado pelas fortunas cada vez menores dos nacionalistas e, do outro, pela
inflação esmagadora da economia chinesa. Para sustentar a
empresa, Chennault propôs ao Departamento de Estado que começasse
a apoiar as forças nacionalistas no sul da China e a fornecer
assistência aos guerrilheiros chineses. Chennault calculava que a entrada
de dólares norte-americanos ajudaria à sobrevivência da
empresa. Mas quando o Departamento de Estado recusou o plano de Chennault, o
seu sócio, Thomas Corcoran, colocou-o em contacto com a
Secção de Coordenação de Política da CIA,
cuja designação deliberadamente vaga permitia esconder a sua
função como ramo das acções secretas da CIA.
Frustrada por ter de depender da força aérea militar americana e
britânica para as suas operações, a CIA apercebeu-se do
enorme potencial que teria se controlasse os seus próprios bens
aéreos e, a 1 de Novembro de 1949, Corcoran assinou um acordo com a
agência. A CAT recebeu quinhentos mil dólares para financiar uma
nova base na Tailândia e para mudar a sede para Hong Kong; recebeu
igualmente um adiantamento de duzentos mil dólares para conceder acesso
prioritário à CIA nas operações da companhia
aérea. A entrada do dinheiro da CIA, no entanto, não resolveu os
problemas financeiros da CAT e, depois de recorrer sucessivamente à
agência para obter fundos adicionais, a empresa acabaria por ser
absorvida pela CIA.
[6]
Ao longo da década seguinte, o crescente ramo paramilitar da CIA
serviu-se de aviões e pilotos da CAT para expandir as suas guerras
secretas: primeiro na China, depois na Coreia, depois no Vietname, em Dien Bien
Phu. Em meados da década de 1950, as operações da CAT
tinham começado a disseminar-se por todo o mundo, em paralelo com o
alcance cada vez mais global da CIA. Na América Central, o co-fundador
da CAT, Thomas Corcoran, ajudou a convencer a CIA a levar a cabo uma guerra
secreta contra o líder eleito da Guatemala, Arbenz Guzmán.
Além do seu papel na CAT, Corcoran era também funcionário
de um gigante da agricultura, a United Fruit, uma empresa com sede nos EUA e
com uma forte intervenção sobre as exportações
agrícolas da América Central. Quando Guzmán ameaçou
nacionalizar as plantações da United Fruit, a CIA interveio para
pôr fim ao "comunismo" de Guzmán e, em seu lugar,
instalou uma série de ditadores brutais.
[7]
À medida que crescia o programa de acções secretas,
também acontecia o mesmo à dimensão da sua frota de
aviões "civis". Em finais da década de 1950 e no
início da década de 1960, a agência remodelou a CAT,
transformando-a na actualmente famosa Air America. A Air America acabaria por
operar uma das maiores frotas de aviões civis do mundo, com 167
aviões, oito mil funcionários e muitas outras empresas
subsidiárias dedicadas integralmente à manutenção
da frota da Air America.
[8]
Outras empresas controladas pela CIA seguiram os passos da Air America: a
agência comprou uma empresa chamada Southern Air Transport passando a
operá-la a partir da Florida,
[9]
e criou uma outra companhia aérea, a Intermountain Aviation, em Marana,
no Arizona.
[10]
Os nomes destas empresas tornar-se-iam sinónimos de guerras secretas em
todo o mundo: o nome da Intermountain Aviation ficou ligado ao assassinato de
Patrice Lumumba e à ascensão do arquiditador Mobutu Sese Seko no
Congo; o nome da Air America era quase sinónimo das vastas e
semi-secretas guerras no Laos. E, décadas mais tarde, uma Southern Air
Transport reconfigurada tornar-se-ia representativa do apoio ilegal da
administração Reagan aos Sandinistas, do escândalo
Irão-Contras e dos boatos persistentes de operações de
contrabando de droga efectuadas pela CIA.
[11]
As companhias de aviação da CIA foram praticamente encerradas na
década de 1970. Depois de investigações do Congresso
lideradas pelo Senador Frank Church e pelo membro da Câmara dos
Representantes Otis Pike terem revelado que a CIA estivera envolvida em
inúmeras actividades ilegais, incluindo a espionagem de cidadãos
americanos, a tentativa de assassinato de líderes mundiais e o apoio
à entrada ilegal nos escritórios do Partido Democrata no
Watergate Hotel, a agência recebeu ordens de, entre outras coisas, vender
os aviões da Air America um por um e, adicionalmente, de vender toda a
Southern Air Transport.
[12]
Mas a capacidade aérea da agência não seria anulada durante
muito tempo. Em vez de a CIA deter empresas proprietárias, como a Air
America, mudou de táctica, conseguindo alcançar o poderio
aéreo através do recrutamento de uma rede de companhias de
aviação charter independentes que mantinham contratos de
exclusividade com a agência. A Aero Contractors, juntamente com outras
empresas, como a Summit Aviation, a Corporate Air Services, a St. Lucia Airways
e a Tepper Aviaton, são as empresas da geração seguinte,
que preencheram o vazio deixado pelo desaparecimento da Air America.
[13]
* * *
Para lançar a Aero Contractors, a CIA recorreu a um antigo piloto da Air
America chamado Jim Rhyne, uma figura conhecida nos círculos da
espionagem e que passara as décadas de 1960 e 1970 a pilotar
aviões para a agência, transportando sem alarido homens e
materiais de e para o sudeste asiático durante a guerra do Vietname.
Rhyne actuara como responsável máximo pelas
operações da Air America no Laos, onde perdera uma perna durante
um tiroteio. Pelas suas contribuições para o esforço de
guerra, os Boinas Verdes tinham concedido a Rhyne uma boina honorária, e
a CIA concedera a Rhyne a Intelligence Star e a Intelligence Cross, duas das
suas mais importantes medalhas.
[14]
Depois de ter conseguido atrair com sucesso Rhyne para iniciar a Aero
Contractors em 1979, a CIA deu-lhe instruções para que
encontrasse um aeroporto discreto, a não mais de três horas de
distância de voo de Washington D. C. e que pudesse servir como base de
operações. Segundo um antigo piloto da Aero, que pediu para
não ser identificado, após a dissolução da Air
America, os responsáveis da CIA disseram a Rhyne que "Precisamos de
pôr novamente esta coisa em acção. Procura um local para
nós". Na procura desse local, "Jim andava simplesmente de um
lado para o outro em busca de aeroportos e instalações, tentando
encontrar um local que permitisse apoiar as nossas necessidades", recordou
o antigo piloto. Rhyne era do Sul, da Geórgia, e tencionava instalar a
base da nova empresa algures abaixo da linha Mason-Dixon. Smithfield cumpria os
requisitos estipulados por Rhyne: situava-se no Sul e era razoavelmente
próxima de Washington. Além disso, o aeroporto era especialmente
atractivo porque não tinha qualquer torre de controlo, o que significava
que as operações da companhia não estariam
vulneráveis aos olhares de soslaio do pessoal do aeroporto.
[15]
E, na verdade, até há pouco tempo, a empresa conduziu os seus
negócios com poucas investigações dos cidadãos de
Smithfield. "Ninguém investigou muito profundamente",
disse-nos o antigo piloto. "É apenas uma pequena cidade adormecida.
Pareceu-me extremamente retrógrada".
Grande parte do trabalho que o piloto desenvolveu para a Aero era de rotina:
"Noventa e nove por cento dos voos serviram apenas para transportar
pessoas de um lado para o outro. Eram efectivamente coisas bastante mundanas...
principalmente na Ásia Central e na América do Sul.
Dedicávamo-nos aos transportes, ao aspecto logístico",
explicou ele.
[16]
Mas a história da Aero Contractors, tal como a de outras companhias de
aviação controladas pela agência, é uma
história de operações confidenciais e guerras secretas.
Durante o tempo que passou na companhia, o piloto com quem falámos
ajudou a CIA a efectuar ataques surpresa contra narcotraficantes na
América Latina, normalmente aos comandos de bimotores com
turbopropulsores. Também voou de e para o Tajiquistão, na
década de 1990, transportando operacionais da agência encarregados
de recuperar mísseis Stinger aos senhores da guerra afegãos.
(Depois de a União Soviética se ter retirado do
Afeganistão, a CIA tentou recuperar todos os mísseis Stinger,
armas de alta tecnologia que são disparadas por um homem com um
dispositivo colocado sobre o ombro, e que os EUA tinham distribuído aos
mujahedin
durante a ocupação soviética.)
Após o 11 de Setembro, a nossa fonte disse-nos que a Aero Contractors
duplicou imediatamente de dimensão: "A companhia ligou-se
simplesmente a uma espécie de oleoduto de dinheiro. Passaram de treze
pilotos para vinte e cinco ou trinta, de um dia para o outro... Transportavam
pessoas de e para Guantánamo".
[17]
Com esta entrada de dinheiro, a Aero expandiu a sua frota de aviões. A
companhia assumiu o controlo de vários aviões de carga CASA,
fabricados em Espanha e com turbopropulsores, que foram registados numa empresa
de fachada denominada Devon Holding na Leasing, Inc. Passou ainda a controlar o
Boeing Business Jet 737. A Aero já controlava aquele que se tornaria o
Gulfstream V, Expresso da Baía de Guantánamo, antes do 11 de
Setembro.
[18]
Quando tomou posse do Boeing Business Jet 737, a Aero viu-se forçada a
expandir a sua localização para além do Condado de
Johnston, porque o seu aeroporto base era demasiado pequeno para receber o 737.
A Aero rapidamente iniciou a construção de um hangar com cerca de
dois mil metros quadrados no Kinston Jetport, no vizinho Condado de Wayne, onde
o Business Jet viria a ficar normalmente instalado.
[19]
* * *
As revelações sobre o envolvimento da Aero no programa de entrega
extraordinária de prisioneiros atraíram muitas
atenções indesejadas para o condado ("levantaram
poeira", nas palavras do advogado da Aero), mas seria exagerado afirmar
que as revelações sobre a participação da Aero
provocaram uma profunda crise espiritual no Condado de Johnston. É
difícil saber se o silêncio de Smithfield sobre as actividades da
Aero Contractors é resultado do medo, do conformismo ou de uma
genuína apatia.
Quando alguns activistas da região do Triângulo da Carolina do
Norte começaram a protestar em Smithfield, Allyson e Walt Caison foram
dos poucos residentes locais que se juntaram aos manifestantes. Mas a
decisão de Allyson de assumir uma atitude activa implicou
ramificações mais imediatas no que diz respeito à
posição que ocupa na comunidade fortemente unida do que para os
manifestantes de fora da cidade. "Parece-me que estou realmente a arriscar
mais porque sou agente imobiliária", disse-nos ela. O seu sustento
depende da reputação que tiver entre os vizinhos, muitos dos
quais trabalham para a Aero. Desde que decidiu assumir uma
posição contra a Aero, ela e Walt já estiveram presentes
em piquetes no aeroporto e manifestaram a sua raiva a executivos e membros do
conselho de administração. Durante uma Peregrinação
pela Paz e pela Justiça na Semana Santa, uma marcha que durou
vários dias e percorreu vários condados, os manifestantes levaram
consigo cruzes de madeira e pararam no aeroporto para rezar pelas
vítimas da tortura patrocinada pela CIA, assim como pelas almas dos
próprios indivíduos que praticavam os actos de tortura. Allyson
foi a única residente no condado a participar. Levava consigo um cartaz
em que afirmava, "aero, fora do condado de johnston".
[20]
Enquanto saíamos da cidade, ficámos impressionados pela forma
estranha como é possível aproximarmo-nos tanto dos voos de
entrega de prisioneiros. Smithfield não é seguramente nada
difícil de encontrar. E o que aqui acontece não é
certamente um grande segredo: conforme descobrimos, estava escondido à
vista de todos.
Notas
1- Entrevista com Allyson e Walt Caison, Smithfield, Carolina do Norte, 13 de
Abril de 2006.
2- Ibid.
3- Entrevista com Jordan Cooke, 14 de Abril de 2006. Ver também Jordan
Cook, "Aero Denies CIA Flight",
The Herald (Smithfield Clayton Cleveland),
11 de Março de 2005.
4- Scott Shane, Stephen Grey e Margot Williams, "CIA Expanding Terror
Battle Under Guise of Charter Flights",
New York Times,
31 de Maio de 2005.
5- Ver ficheiros da Administração Federal de
Aviação sobre o Boeing Business Jet N4476S, número de
série 33010; e ficheiros da FAA para o N4476S, Gulfstream V,
número de série 581.
6- Ver John Prados,
President's Secret Wars
(Chicago: Ivan R. Dee, 1996), pp. 62-64. Ver também William Leary,
Perilous Missions
(University: University of Alabama Press, 1984).
7- Ver John Prados,
President's Secret Wars,
pp. 98-106. Ver também Nick Cullather,
Secret History: The CIA's Classified Account of its Operations in Guatemala
1952-1954
(Stanford: Stanford University Press, 1999).
8- Prados, p. 231.
9- Ibid., p. 184.
10- Kevin O'Brien, "Interfering with Civil Society: CIA and KGB Covert
Political Action during the Cold War",
International Journal of Intelligence and Counterintelligence,
1995, Vol. 8, Edição 4.
11- Ver, por exemplo, Peter Dale Scott e Jonathan Marshall,
Cocaine Politics
(Berkeley: University of California Press, 1998), p. 18.
12- Prados, pp. 324-325.
13- Ver Prados, pp. 374-375. Ver também Lawrence E. Walsh
Firewall
(Nova Iorque: Norton, 1997), pp. 74-75. Para a Tepper Aviation, ver Ted Gup,
The Book of Honor
(Nova Iorque: Doubleday, 2000), p. 330.
14- Para uma breve história sobre a carreira de Jim Rhyne na Air
America, ver Ted Gup,
The Book of Honor,
pp. 245-246.
15- Entrevista com antigo piloto da Aero Contractors.
16- Ibid.
17-- Ibid.
18- Registos na FAA e de segurança de voo para o N168D, N4476S e outros
aparelhos.
19- Sam Atkins, "Global TransPark Board Approves Operating Budget",
Goldsboro News-Argus,
23 de Junho de 2004.
20- Ibid. Ver também Monica Chen, "Protest Ends in Arrests",
The Herald (Smithfield Clayton Cleveland),
22 de Novembro de 2005.
[*]
Autores de
"A verdadeira história dos voos da CIA Os táxis da tortura"
, Campo das Letras, Porto, 2007, 184 pgs.,
ISBN: 978-989-625-150-5. O presente texto é o Capítulo 2
do livro.
Este texto encontra-se em
http://resistir.info/
.
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