Denúncia é um ato de resistência política
"Venho esperando por alguém como você há 40
anos". Essas foram as
primeiras palavras de Daniel Ellsberg quando nos encontramos pela primeira vez
no ano passado. Dan e eu sentimos uma afinidade imediata, já que
conhecíamos a dimensão do risco em revelar fatos secretos e ter
nossas vidas irreversivelmente afetadas por isso.
Um dos maiores desafios de um
whistleblower
é aprender a conviver com a ideia de que há funcionários
trabalhando em seus escritórios, assim como fizemos, espalhados por
todas as unidades da agência de segurança, vendo o que você
viu, conformados em silêncio, sem reagir ou reclamar. Eles aprendem a
viver não apenas com inverdades, mas com inverdades
desnecessárias, inverdades perigosas e inverdades nocivas. É uma
tragédia dupla. Aquilo que começa como uma estratégia de
sobrevivência acaba por prejudicar quem pretendia proteger e desvirtuar a
mesma democracia que justificava tamanho sacrifício.
Mas, diferentemente de Dan Ellsberg, não tive que esperar 40 anos para
que outras pessoas rompessem o silêncio através da
revelação de mais documentos. Ellsberg entregou os Papéis
do Pentágono para o
New York Times
e outros jornais em 1971; Chelsea Manning cedeu os registros das guerras do
Iraque e do Afeganistão, bem como o material do Cablegate (telegramas
diplomáticos dos Estados Unidos) para o WikiLeaks em 2010. Eu decidi
fazer a minha parte 2013. E aqui estamos, em pleno 2016, e mais uma pessoa
embuída de coragem e consciência disponibilizou um
extraordinário conjunto de documentos que foram publicados em
The Assassination Complex
(O Complexo de Assassinato), um livro de Jeremy Scahill e da equipe do The
Intercept.
(Os documentos foram publicados originalmente em 15 de outubro de 2015 na
reportagem
The Drone Papers
).
Estamos começando a compreender este período em que
políticas de Estado nocivas se escondem nas sombras, aquele interim em
que atividades inconstitucionais podem ser levadas a cabo antes de serem
expostas por atos de consciência. Essa compressão temporal
é importante não só no âmbito das manchetes
jornalísticas; ela permite que cidadãos tomem conhecimento de
medidas importantes do governo, não como parte do registro
histórico, mas de forma que possam manifestar suas opiniões
diretamente através do voto. Em outras palavras, de forma a capacitar
uma sociedade mais bem informada para defender a tal democracia que os
"segredos de Estado" dizem proteger. Quando vejo indivíduos
capazes de divulgar informações importantes, tenho
esperança de que não vamos precisar questionar as atividades
ilegais de nossos governos incessantemente, como uma necessidade constante,
tentando erradicar irregularidades com a mesma frequência com que
cortamos a grama. (O curioso é que algumas pessoas começaram a
descrever as operações de assassinato por drones como
"cortar a relva".)
Um ato isolado de um
whistleblower
não altera o fato de que há inúmeros setores do governo
operando por debaixo dos panos, fora do alcance da fiscalização
da sociedade. Essas atividades secretas vão continuar, apesar das
reformas constitucionais. Porém, os responsáveis terão de
conviver com o medo de serem legalmente responsabilizados caso se envolvam em
atividades contrárias ao espírito democrático basta
que apenas um cidadão seja impelido a frear os mecanismos dessa
injustiça. Essa igualdade perante a lei é o fio condutor que
sustenta a boa governança, já que o único medo daquele que
move essas engrenagens é acabar sendo vítima delas mesmas.
Mas há esperança em passarmos de revelações
extraordinárias para uma cultura de responsabilização na
comunidade de inteligência. Assim, teremos dado um importante passo para
a solução de um problema que existe desde que governo é
governo.
Nem todos vazamentos são iguais, assim como seus responsáveis. O
Gen. David Petraeus, por exemplo, forneceu à sua amante e
biógrafa informações tão secretas que desafiam o
próprio conceito de confidencialidade, incluindo os nomes de agentes
secretos e as opiniões privadas do presidente sobre assuntos de
interesse estratégico. Petraeus não foi acusado criminalmente,
conforme o Departamento de Justiça recomendara inicialmente. Foi
permitido que o general se declarasse culpado por uma simples
contravenção penal. Se um soldado de baixa patente levasse
diversos documentos confidenciais e os passasse à sua namorada para
arrancar-lhe um sorriso, estaria sujeito a muitas décadas na
prisão, e não a diversas referências de caráter de
um quem é quem do Coração do Estado.
Há vazamentos autorizados, assim como há revelações
admissíveis. É raro ver figuras do alto escalão pedindo
explicitamente que um subordinado vaze o nome de um agente da CIA em
retaliação a seu marido, como parece ter sido o caso de Valerie
Plame. É igualmente raro que um mês inteiro se passe sem que uma
figura do alto escalão revele informações confidenciais
com interesses partidários, porém, evidentemente "nocivos
à segurança nacional", de acordo com nossa
legislação.
Esse tipo de dinâmica pode ser observada no caso da
"conferência telefônica catastrófica" da al Qaeda,
na qual agentes de inteligência, provavelmente tentando exagerar a
dimensão da ameaça terrorista e evitar críticas à
vigilância em massa, revelaram a um site neoconservador relatos
detalhados de conversas específicas que haviam sido interceptadas,
incluindo a localização das partes e o conteúdo exato das
discussões. Se acreditarmos nas alegações dos agentes,
pode-se concluir que eles perderam uma oportunidade extraordinária de
descobrir os planos e intenções dos líderes terroristas em
troca de uma vantagem política efêmera nos noticiários.
Ninguém parece ter se tornado mais disciplinado após o resultado
daquilo que nos custou a capacidade de ouvir o conteúdo da suposta linha
direta da al Qaeda.
Se os danos causados e a autorização para
divulgação não
fazem diferença, qual a distinção entre uma
revelação admissível e uma revelação
inadmissível?
A resposta é o controle. Um vazamento é aceitável se
não for visto como uma ameaça, como um questionamento às
prerrogativas da instituição. Mas se todos os componentes
distintos não apenas a cabeça, mas suas mãos,
pés e todas as partes do corpo devem ser encarados como se
tivessem o mesmo poder para discutir questões do interesse da
instituição, há uma ameaça existencial ao
monopólio do controle de informações no contexto
político moderno, em especial quando falamos de revelações
de irregularidades graves, atividades fraudulentas e ilegais. Se você
não pode garantir que pode explorar sozinho o fluxo de
informações controladas, então o conjunto de assuntos
sigilosos de todo o mundo incluindo os seus representam mais um
risco do que uma vantagem.
Revelações verdadeiramente proibidas são necessariamente
um ato de resistência isto é, se não tiverem a
finalidade única de alimentar a imprensa e engrandecer a imagem ou
reputação de uma instituição. Porém, isso
não quer dizer que elas sempre virão dos mais baixos
escalões. Em algumas ocasiões, aqueles que se manifestam
estão próximos do topo da pirâmide do poder. Ellsberg
pertencia ao alto escalão; ele se encontrava com o secretário de
Defesa. Não se pode chegar mais alto do que isso a menos que você
seja o próprio secretário de Defesa, mas não há por
que um oficial do alto escalão se envolver em revelações
de interesse público, visto que já possui a influência
necessária para alterar políticas de Estado diretamente.
No outro extremo do espectro institucional, está Manning, um soldado
raso, muito mais próximo da base da pirâmide hierárquica.
Eu estava no meio da minha carreira profissional. Me reunia com o diretor-chefe
de Informações da CIA, e estava orientando a ele e seu
diretor-chefe de Tecnologia enquanto faziam declarações
públicas como: "Tentamos coletar tudo e guardar para sempre",
e todo mundo achava aquilo um lema bonitinho. Enquanto isso, eu desenvolvia
sistemas que eles usariam para cumprir essa promessa. Eu não orientava a
ala política, como o secretário de Defesa, mas orientava a ala de
operações, como por exemplo o diretor tecnológico da
Agência de Segurança Nacional. Irregularidades por parte de
oficiais podem servir como catalisadoras para que funcionários de todos
os níveis revelem informações, mesmo que isso os coloquem
em risco, desde que estejam convencidos de que é necessário
fazê-lo.
É um desafio dirigir-se a esses indivíduos e ajudá-los a
entender que, como servidores públicos, sua aliança principal
é com a sociedade em vez de com o governo em si. É uma
mudança considerável na cultura de um funcionário do
governo.
Já defendi que
whistleblowers
são escolhidos pelas circunstâncias. Não é uma
virtude pessoal ou inerente às suas origens. Tem a ver com aquilo a que
você se expõe, aquilo que você testemunha. Nesse momento, a
pergunta passa a ser: "Você acredita sinceramente que tem a
capacidade de remediar o problema e influenciar as políticas de
Estado?". Eu não encorajaria ninguém a revelar
informações, mesmo que elas sejam sobre irregularidades, se
não acreditasse que possam gerar resultados, já que esse momento
perfeito pode ser tão raro quanto a própria
disposição a agir.
Essa é uma consideração
estritamente pragmática e estratégica.
Whistleblowers
são exceções à regra e, se pretendem ser
forças políticas efetivas, é fundamental que maximizem os
bens sociais produzidos a partir de uma semente tão rara. Quando estava
tomando minha decisão, entendi que uma ponderação
estratégica, como esperar o mês de uma eleição
nacional, poderia ser superada por outra, como a obrigação moral
de conter uma tendência global que já tinha ido longe demais. Eu
estava concentrado naquilo que observava e no insuportável sentimento de
que governo, no qual acreditei por toda minha vida, estava envolvido em um ato
de tamanha falsidade.
Mudanças vêm de baixo para cima.
No centro dessa evolução, encontra-se o fato de que
whistleblowing
é um acontecimento radicalizador quando digo "radical"
não me refiro a "extremo", falo do sentido tradicional de
radix,
a raiz da palavra. De repente, você entende que não basta trocar
algumas letras de lugar em uma página e torcer pelo melhor. Não
basta mais informar seu supervisor a respeito do problema, como tentei fazer,
porque é inevitável que supervisores fiquem temerosos. Eles
consideram os riscos estruturais a suas carreiras. Têm medo de sacudir as
estruturas e "acabar com fama". Não há incentivos para
se produzir reformas significativas. Fundamentalmente, em uma sociedade
democrática, as mudanças vêm de baixo para cima.
Quem trabalha no seio da comunidade de inteligência abdicou de muitas
coisas para fazer esse trabalho. Aceitou restrições
tirânicas sem ressalvas. Submete-se voluntariamente a testes de
polígrafo e conta ao governo todos os detalhes sobre sua vida. Abre
mão de vários direitos, porque acredita que o valor
intrínseco de sua missão justifica sacrificar mesmo aquilo que
é mais sagrado. É uma causa justa.
E, quando se vê frente a provas não em um caso extremo ou
peculiar, mas em consequência direta do programa de que o governo
está infringindo a Constituição e violando os ideais que
você defende fervorosamente, você tem de tomar uma decisão.
Quando você constata que um programa ou uma política é
inconsistente com os compromissos e obrigações que jurou observar
ante a sociedade e a você mesmo, torna-se impossível conciliar
isso com o programa. Qual dos dois merece mais sua lealdade?
Um dos aspectos
extraordinários sobre o ritmo crescente das revelações dos
últimos anos é o fato de ocorrerem num contexto em que os Estados
Unidos são vistos como uma "superpotência
inquestionável". Temos incontestavelmente a maior máquina
militar da história mundial, respaldada por um sistema político
cada vez mais disposto a autorizar todo o tipo de uso de força militar
em resposta a praticamente qualquer explicação. No contexto
atual, essa justificativa é o terrorismo, mas não necessariamente
porque nossos líderes estejam particularmente preocupados com esse
fenômeno, nem porque acreditem que o terrorismo representa uma
ameaça existencial para a sociedade. Eles reconhecem que o número
de vítimas mortais em acidentes de carros e por doenças
cardíacas continua sendo superior ao número de mortes se
tivéssemos um ataque como o 11 de Setembro por ano, no entanto,
não vemos o mesmo investimento de recursos em resposta a essas
ameaças mais expressivas.
No fundo, tudo se resume à realidade política de termos uma
classe política que se sente obrigada a se defender contra
acusações de fraqueza. Nossos políticos têm mais
medo da política em torno do terrorismo de serem acusados de
não levarem terrorismo a sério do que do crime em si.
Por consequência, atingimos um poder inigualável, não
restrito pela classe política. Ficamos dependentes do que apenas se
destinava a funcionar como último recurso: os tribunais. No
período após o 11 de Setembro, os juízes, conscientes de
que suas decisões subitamente adquiriram uma importância
política e impacto muito superiores ao que originalmente se previa,
esforçaram-se para evitar rever as leis e as operações do
Executivo no contexto da segurança nacional e definir precedentes
restritivos que, mesmo se fossem perfeitamente adequados, imporiam limites
à ação do governo por décadas ou, quem sabe,
séculos. Isso significa que a instituição mais poderosa
que a humanidade já testemunhou se transformou também na menos
cerceada. Todavia, essa mesma instituição nunca fora concebida
para funcionar dessa forma, tendo sido, muito pelo contrário,
explicitamente fundada com base em princípios de regulação
e equilíbrio. O nosso impulso fundador traduziu-se na
afirmação: "Apesar de sermos poderosos, restringimos nossa
força voluntariamente".
imagem
O presidente Barack Obama caminhando com agentes do serviço secreto dos
Estados Unidos para o Air Force One, no Aeroporto Internacional de Los Angeles,
Califórnia, 8 de maio de 2014.
Foto: Pete Souza/Casa Branca
Em sua primeira visita oficial ao quartel-general da CIA, você ergue a
mão e
presta juramento, mas não à agência nem à
confidencialidade. Você faz um juramento à
Constituição. Por isso, há um conflito, como uma disputa
entre os deveres e valores que o governo pede que você cumpra e as
atividades reais nas quais exigem que você participe.
As revelações sobre o programa de assassinatos da
administração Obama confirmam que existe um aspecto do
caráter americano que se preocupa profundamente com o exercício
ilimitado de poder sem supervisão. E não há exemplo mais
claro de poder sem supervisão do que chamar para si a autoridade para
executar um indivíduo fora do contexto de guerra e sem o envolvimento de
qualquer tipo de processo judicial.
Tradicionalmente, no contexto militar, sempre foi do entendimento geral que a
força letal em situação de guerra não poderia se
sujeitar a restrições judiciais prévias. No campo de
batalha, entre dois exércitos, não há espaço para
um juiz. Mas agora o governo decidiu sem a participação da
sociedade, sem nosso conhecimento e consentimento que o mundo todo
é um campo de batalha. Por meio da subversão da linguagem,
indivíduos que não representam uma ameaça iminente em
nenhum sentido são ressignificados para que se encaixem nessa
definição de ameaça.
Inevitavelmente, essa subversão conceitual atinge seu objetivo,
juntamente com a tecnologia que permite que as autoridades promovam
ilusões confortáveis sobre os assassinatos cirúrgicos e a
vigilância não intrusiva. Vejam, por exemplo, o Santo Graal da
constância dos drones, uma capacidade que os Estados Unidos há
muito pretendem obter. O objetivo é implementar drones movidos a energia
solar que possam voar por semanas sem necessidade de aterrissarem. Quando isso
for possível e acoplando um dispositivo de coleta de sinais na
parte inferior do drone para monitorar sem limites os sinais de
endereços de rede de todos os laptops, smartphones e iPods
será possível saber a localização de um determinado
dispositivo em qualquer cidade, assim como o apartamento onde se encontra cada
dispositivo, e todos os percursos e deslocamentos efetuados. Conhecendo o
dispositivo, conhece-se também o seu dono. Quando esse procedimento for
implementado em diversas cidades, será possível monitorar
não somente os movimentos de indivíduos, como também de
populações inteiras.
O poder sem limites pode ser muitas coisas, mas não é um
traço americano.
Aproveitando-se da necessidade moderna de estar permanentemente conectado, os
governos conseguem reduzir nossa dignidade à dignidade de animais
marcados, com a única diferença de que nós pagamos pelas
marcas que carregamos em nossos bolsos. Tudo isso soa a uma fantasia paranoica,
mas, em nível técnico, é muito fácil de ser
implementado, por isso, não consigo imaginar um futuro em que isso
não venha a acontecer. Inicialmente, será um procedimento
limitado a cenários de guerra, em conformidade com nossos costumes, mas
a verdade é que a tecnologia de vigilância tende a nos seguir
até as nossas casas.
Aí reside a dupla faceta de nosso nacionalismo à moda
exclusivamente americana. Somos criados com a crença do excepcionalismo,
para pensar que somos a melhor das nações, com o destino
manifesto de governar o mundo. O perigo é que há quem acredite
piamente nessa ideia, e algumas pessoas esperam que a
concretização de nossa identidade nacional, ou seja, nosso
governo, se comporte e aja em conformidade com ela.
O poder sem limites pode ser muitas coisas, mas não é um
traço americano. É nesse sentido que o
whistleblowing
se torna cada vez mais um ato de resistência política. O
whistleblower
dá o alerta e ergue a tocha que lança luz sobre os fatos,
perpetuando o legado de uma linhagem de americanos nascida com Paul Revere.
Os indivíduos responsáveis por essas revelações se
sentem tão inflamados pelo que viram que se dispõem a arriscar
suas vidas e sua liberdade. Eles sabem que nós, o povo, somos o
mecanismo mais forte e confiável de controle do poder do governo. As
fontes internas nos mais altos níveis do governo têm uma
capacidade extraordinária, recursos extraordinários, amplo acesso
à influência e ao monopólio da violência, no entanto,
em última análise, há apenas uma figura que importa: o
cidadão.
E estamos em maior número do que eles.
Ver também documentos dos Drone Papers:
The assassination complex
A visual glossary
The kill chain
Find, fix, finish
Manhunting in the Hindu Kush
Firing blind
The life and death of "Objective Peckham"
Target Africa
The alphabet of assassination
Retirado de
The Assassination Complex: Inside the Government's Secret Drone Warfare Program
(O Complexo de Assassinato: Dentro do Programa de Guerra Secreto de Drones),
por Jeremy Scahill e a equipe do The Intercept, com prefácio de Edward
Snowden e posfácio de Glenn Greenwald, publicado por
Simon & Schuster
.
[*]
https://twitter.com/@snowden
O original encontra-se em
theintercept.com/...
e a versão em português em
theintercept.com/...
Tradução de Inacio Vieira.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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