Capitalismo norte-americano:
Caminho de sentido único para a cleptocracia?
por David Kerans
[*]
"Se há uma guerra de classes nos EUA, o meu lado está a
ganhar".
Warren Buffet, investidor multimilionário, 2004
As palavras de Buffett agitaram os media norte-americanos, que fazem geralmente
tudo o que podem para esconder a luta de classes ou ridicularizá-la,
como se fosse imoral e estranha aos EUA. Contudo, para aqueles que observam de
perto os EUA, os comentários de Buffett são reveladores
não pela sua franqueza, mas pelo eufemismo. Como uma análise
apressada das tendências recentes revela, a luta de classes nos EUA
adquiriu um carácter preocupantemente unilateral. Índices
comparativos de desigualdade colocam os EUA no topo dos países
industrializados ou próximos, uma situação que traz custos
e perigos reais para a sociedade norte-americana.
[1]
Para além disso, a desigualdade está agora profundamente
estabelecida e as suas características aproximam-se da cleptocracia [N.
T.: literalmente, governo de ladrões] nos EUA, com umas poucas elites
privilegiadas apoderando-se de enormes quantidades de riqueza pública.
Pior ainda, os dois sectores da economia mais envolvidos neste processo
cleptocrático são o financeiro e o militar, precisamente os dois
sectores mais capazes de provocar alvoroço num mundo mais global, como
esta década mostrou tão claramente. Por mais claramente que
possamos identificar os perigos, não é tão claro que
possamos fazer alguma coisa para os afastar, e os observadores internacionais
não devem partir do princípio de que a chegada da
administração de Barack Obama é garantia de
segurança face a novos assomos de aventureirismo financeiro ou militar.
Uma hegemonia de classe que se intensifica
A relutância do sistema norte-americano em admitir a existência ou
legitimidade da luta de classes tem as suas raízes num período de
opulência da classe média, no pós-Segunda Guerra Mundial.
Por uma variedade de razões, nesse período as classes mais baixas
deixaram gradualmente de se mobilizar e nunca voltaram a revitalizar-se
enquanto força política.
[2]
O que esta visão do sistema deixa de lado, claro, é que a camada
mais rica da sociedade fez grandes progressos na sua mobilização
para alterar as regras de governo e os locais de trabalho a seu favor. Esta
história está bem documentada, e envolve tudo desde
métodos ilegais para neutralizar sindicatos até à baixa
dos impostos sobre as grandes fortunas. É claro que há uma guerra
de classe nos EUA.
Muito para além de trabalhar para alterar a distribuição
da riqueza como numa clássica luta de classes, os interesses das grandes
fortunas conseguiram nas últimas décadas alterar o sistema
político nos EUA de modo a solidificar as suas vantagens com uma firmeza
sem precedentes. A chave foi a cooptação quase indiscriminada dos
políticos mais relevantes (incluindo o Partido Democrata e não
apenas o abertamente pró-corporativo Partido Republicano) ao
serviço das grandes corporações, poderosos interesses
especiais e o sobredimensionado Exército. É certo que figuras
proeminentes da Esquerda têm desde há muito acusado o Partido
Democrata de se render às corporações (Ralph Nader fez
disso uma carreira desde os anos 1990 e a tradição é muito
mais antiga). Mas por um certo número de razões (em particular a
rápida subida dos custos das campanhas eleitorais, a
tentação dos empregos rendosos com patrocinadores corporativos ou
lobbies empresariais no final dos mandatos) funcionários eleitos e
nomeados em ambos os partidos agora abdicam da sua autonomia muito antes de
ocupar os seus lugares em Washington. Parece haver cada vez maiores cartazes a
dizer "vende-se" sobre as cabeças de funcionários
nacionais em anos recentes: gastos com lobbies em Washington mais que
duplicaram entre 1999 e 2007 e saltaram mais 15-20% em 2008.
[3]
Os grupos de pressão estão a desenvolver-se como nunca,
precisamente porque os seus remuneradores corporativos estão a
usá-los para exercer um controlo cada vez maior sobre o funcionamento de
Washington.
[4]
As grandes corporações e os poucos privilegiados que as lideram
tiraram lucros enormes dos esforços dispendidos para dominar Washington.
A fatia das receitas dos impostos federais oriunda das
corporações desceu de 26,5% em 1950 para 10,2% em 2000 (a quebra
foi compensada com impostos sobre os trabalhadores).
[5]
Enquanto parte do PIB, os impostos corporativos caíram de 6% nos anos
1950 para apenas 1,8% em 2001.
[6]
Além disso, Washington cortou o valor dos impostos sobre as maiores
fortunas em cerca de 50% ou mais desde o fim dos anos 1970.
[7]
O 1% mais rico da população apropria-se agora de perto de 70%
dos retornos de capital (dividendos, juros, rendas e lucros), comparados com os
37% de há dez anos atrás, e 58% de há cinco anos
atrás. É a mais elevada proporção já
registada nos EUA.
[8]
Como se o movimento ascendente de dinheiro não fosse suficientemente
preocupante, a distribuição desequilibrada deste movimento para o
sector financeiro é ainda mais alarmante. De 1998 a 2008, Wall Street e
as companhias de seguros despejaram 1,7 mil milhões de dólares em
contribuições de campanha política e gastaram pelo menos
mais 3,4 mil milhões de dólares com Washington através de
grupos de pressão.
[9]
Wall Street obteve o que pretendia. Conseguiu o relaxamento de importantes
regulações sobre as suas operações, e a parte de
lucros corporativos dos EUA do sector subiu em conformidade: chegou aos 40%
nesta década, em relação a uns 21-30% nos anos 1990 e
apenas 8-20% nos anos 1980.
[10]
Expropriando os expropriados: a elite põe o país a saque
Tendo estabelecido uma hegemonia incontestável por volta dos anos 1990,
as elites corporativas dos EUA decidiram atribuir-se a si mesmas
pródigas quantias de dinheiro dos contribuintes. O processo teve
início de um modo prosaico, com o esquema dos subsídios
governamentais atribuídos à finança. Na viragem para o
século XXI, a assistência do Governo Federal às
corporações totalizou 75 mil milhões de dólares por
ano em subsídios directos, mais 60 mil milhões em cortes nos
impostos. Os custos indirectos que as corporações trazem à
sociedade, sob a forma de poluição, desperdícios,
corrupção, lobbies, acidentes, eram então muitas vezes
mais altos.
[11]
A extracção de riqueza através do sector da defesa foi
muito mais sinistra que a questão dos subsídios para a
finança. Os maiores contratantes da Defesa fizeram das pressões
sobre o Congresso uma ciência (que rendeu 149 milhões de
dólares em 2008) e atingiram um aumento de 70% em orçamentos para
bases do Pentágono (sem contar o custo dos conflitos) durante esta
década.
[12]
Para além disso, fatias desmesuradas destes orçamentos
vão parar aos bolsos de pessoas não identificadas. Como lamentou
o próprio secretário da Defesa Donald Rumsfeld em 2001, o
Departamento da Defesa não sabia para onde tinham ido 2,3 milhões
de milhões
(trillions)
de dólares do seu financiamento.
[13]
Perdas enormes continuam a ter lugar, a julgar pelo anúncio do
Departamento de Defesa em 2006 de que não poderá apresentar
declarações de auditoria financeira antes de 2016.
[14]
E o roubo estende-se ainda mais amplamente. Ao longo da última
década o Congresso desenvolveu um sistema para canalizar dezenas de
milhares de milhões por ano a patrocinadores privilegiados
através de emendas não controladas a projectos de lei sobre
dotação, acrescentadas à última da hora e
portanto não controladas e não verificadas ; o chamado
"earmarking" [N. T.: alocação], cerca de metade do qual
pertence hoje ao sector da defesa).
[15]
O zénite da cleptocracia (pelo menos nesta altura) chegou com a recente
crise financeira. No ano passado, o Departamento do Tesouro dos EUA e a Reserva
Federal pegaram em milhões de milhões de dólares dos
contribuintes, à maneira de Wall Street, muitas vezes sem requerer
padrões de responsabilidade para o uso dos fundos, e geralmente sem
compensar justamente os contribuintes.
[16]
Calcular a dimensão das ofertas aos grandes bancos demonstrou ser muito
difícil, mas ninguém duvida de que o total é prodigioso, e
continua a subir.
[17]
A assistência directa à população mais geral, em
contraste, tem sido insignificante.
[18]
A maldição do gigante
Como o economista-chefe do FMI Simon Johnson delineou, a trajectória
geral da cleptocracia norte-americana reflecte a de muitas economias de mercado
emergentes nos períodos pós-colonial e pós Guerra-fria,
atingindo um surto de empréstimos descuidados, um crash económico
traumático e uma determinação do governo em evitar
prejudicar interesses oligárquicos que muito colocam em perigo a
estabilidade económica (os maiores bancos sobreviventes em Wall Street e
o Pentágono, no caso dos EUA).
[19]
Fossem os EUA uma potência menor e o FMI e outros potenciais credores
imporiam a eliminação selectiva de alguns cleptocratas antes de
fornecer assistência financeira. Mas os EUA não são uma
potência menor. São a maior economia do mundo e usufruem da moeda
de reserva mundial e podem portanto simplesmente cunhar moeda para pagar a sua
dívida externa. O sistema parece impermeável à reforma
vinda do exterior, e apenas revela leves indícios de reforma interna.
Nestas circunstâncias, não deverá ser uma surpresa para
ninguém assistir a mais crises financeiras e aventureirismo militar com
origem nos EUA.
Notas
1. Uma perspectiva segura encontra-se em: Paul Krugman,
The conscience of a Liberal,
Norton, 2009, em especial o capítulo 12, "Confrontando a
desigualdade".
2. As razões mais frequentemente apresentadas são a
ascensão de uma máquina de propaganda mediática dominada
por enormes corporações e a deslocação da
manufactura para países de baixo custo na Ásia.
3. Dados do Center for Responsive Politics
(
http://www.opensecrets.org/lobby/index.php
).
4. As propostas, periodicamente discutidas, para limitar as quantias
despendidas em campanhas políticas limitariam mas não retirariam
as pressões dos lobbies sobre os legisladores. A tentação
dos empregos de salários chorudos após o termo dos mandatos ainda
garante obediência por parte de muitos congressistas.
5. Kevin Phillips,
Wealth and Democracy,
Broadway Books, 2002, p.149.
6. Justin Fox, "More Cream for the Fat Cats",
Fortune Investors Guide,
25/Dezembro/2006.
7. Figures in Krugman,
op. cit.,
p. 257.
8. Michael Hudson, "Obama's Awful Financial Recovery Plan",
www.counterpunch.org
, 12/Fevereiro/2009.
9. Robert Weissman e Harvey Rosenfield, "Sold Out: How Wall Street and
Washington Betrayed America,"
(
http://www.wallstreetwatch.org/soldoutreport.htm
).
10. Simon Johnson, "The Quiet Coup",
The Atlantic,
Maio 2009, p. 49.
11. Cerca de 2,6 milhões de milhões por ano, de acordo com uma
estimativa agressiva (Phillips,
op. cit.,
p.149).
12. Frida Berrigan, "Why the Pentagon Can't Put America Back to
Work", TomDispatch.com, 12 de Março, 2009 (que cita
investigação do Center for Responsive Politics).
13. Veja-se por ex. "The War on Waste", CBS Evening News, 29 de
Janeiro de 2002
(
http://www.cbsnews.com/stories/2002/01/29/eveningnews/main325985.shtml
). Em
principio a corrupção diz respeito apenas a uma
fracção do financiamento desaparecido.
14. Veja-se por ex. Nick Turse,
The Complex,
Metropolitan Books, 2008, p.81.
15. Nem todas as alocações são sinal de
corrupção, é claro, mas esta prática cresceu
exponencialmente na última década, a par com a ascensão da
cleptocracia. Uma perspectiva meritória pode ver-se em Ken Silverstein,
"The great American pork barrel: Washington Streamlines the means of
corruption",
Harper's,
Julho de 2005. Sobre a parte do sector da defesa, veja-se Bob Edgar e Bill
Goodfellow, "Where our Defense Money Goes", Boston Globe, 5 Agosto,
2009.
16. Uma perspectiva persuasiva, baseada na análise isolada do programa
mais bem conhecido, o TARP, encontra-se em Donald L. Barlett e James B. Steele,
"Good Billions After Bad",
Vanity Fair,
Outubro de 2009.
17. Vejam-se por ex., os argumentos de Dean Baker sobre os empréstimos
do Governo quase sem juros para alimentar os lucros dos bancos dos EUA na
primeira metade de 2009 ("Reverse Bank Robbery", Guardian UK, 31 de
Agosto, 2009:
http://www.commondreams.org/view/2009/08/31-7
. Um estudo
útil do leque de subsídios a beneficiar a Goldman Sachs
encontra-se em Matt Taibbi, "The Real Price of Goldman's Giganto
Profits", em Taibblog, 19 de Julho, 2009
(
http://trueslant.com/matttaibbi/2009/07/16/on-goldmans-giganto-profits/
).
Algumas das ofertas do governo ainda não começaram. A pior de
todas é a chamada PPIP (veja-se por ex. Joseph Stiglitz, "Obama's
Ersatz Capitalism",
New York Times,
31/Março/2009: "
os bancos ganham, os investidores
ganham; e os contribuintes perdem").
18. Assaz lamentável, a este respeito, é a
rejeição, por parte do secretário do Tesouro Paulson, de
aconselhamento dum leque de economistas de topo e políticos para ajudar
proprietários de casas quando a derrocada do sector imobiliário
tomou forma no final de 2008 (veja-se por ex., Edmund L. Andrews, Busted,
W.W.Norton & Co., 2009, pp. 206-207).
19 Johnson,
op. cit.
O original encontra-se em
http://en.fondsk.ru/article.php?id=2500
. Tradução de André Rodrigues P. Silva.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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