Daniel Ellsberg:
Precursor do WikiLeaks e inimigo da teoria económica neoliberal
Não é a primeira vez que milhares de documentos classificados
foram "libertados", revelando a um público espantado como o
seu governo travou uma guerra deliberada de desinformação contra
si a fim de dobrar a sua vontade quanto a uma guerra inútil: uma guerra
em cujo altar o público enganado é solicitado ritualmente a
sacrificar os seus filhos, maridos, esposas, amigos. Esta não é a
primeira vez que o establishment uniu-se na sua condenação do
corajoso "denunciante" por "colocar as vidas de soldados e
mulheres em risco". Não é sequer a primeira vez em que o
portador de verdades odiosas foi denegrido, perseguido, aprisionado.
Nesse sentido, nada mudou. Excepto, naturalmente, que, na era da Internet, o
WikiLeaks pode inundar o mundo, por meio de uns poucos toques de teclas, com os
documentos classificados sacados dos seus cofres bem guardados num
minúsculo dispositivo USB. Velocidade e volume contam. No entanto, esta
geração de buscadores da verdade, corajosamente a combater pelo
direito a saber, ainda deve aos seus antecessores um preito de gratidão
por lhes abrir o caminho numa época em que dar fuga à
informação significava árduo trabalho físico
(noites infindáveis em fotocopiadoras) o que os expunha a riscos muito
maiores.
O mais celebrado antecessor do WikiLeaks é, naturalmente, nada menos do
que um economista educado em Harvard, Daniel Ellsberg. A sua história
é de uma coragem, honestidade intelectual e brilho científico
incomuns, pela qual, talvez sem ele próprio saber, deparou-se com um
resultado analítico e empírico que deveria ter posto um
travão aos trabalhos da teoria económica neoliberal.
A história recordará Ellsberg como uma figura do establishment, o
cientista Guerreiro Frio e estrategista político cuja consciência
se ergueu contra os seus próprios esforços e que executou um acto
notável de resistência: um acto que efectivamente minou a
argumentação moral e militar para continuar a Guerra do Vietname.
Quase toda gente recorda os infames Pentagon Papers que Ellsberg passou
à imprensa, revelando a verdade de que a carnificina chamada Guerra do
Vietname era não só uma guerra invencível como
também que, notavelmente, os que tinham o poder tinham conhecimento
disso há anos e mesmo assim continuavam a enviar jovens soldados
à Indochina para matarem e serem mortos. Entretanto, o que é
menos sabido é que Ellsberg também costumava, de forma
sub-reptícia, minar as falsidades estabelecidas em outro campo de
batalha crucial.
O experimento subversivo
Ellsberg principiou a sua carreira como um cientista da RAND que passava o
tempo a estudar a teoria da decisão: modelos matemáticos cujo
objectivo é estabelecer as regras das escolhas racionais face à
incerteza. O Pentágono preocupava-se com estes modelos pois queria ajuda
sobre quando atacar, como atacar preventivamente um inimigo, como planear
ataques nucleares, etc. Naquele tempo, alguns dos melhores e mais dotados
trabalhavam na RAND ou em torno dela sobre estes modelos matemáticos,
com John von Neumann como líder natural do conjunto.
A importância destes modelos não pode ser exagerada. O seu
principal artifício era converter matematicamente opções
incertas em outras bem definidas. A ideia original (devida primariamente a von
Neumann e posteriormente a Leo Savage) era simples: considerar toda
opção disponível para o decisor (exemplo: posicionar um
submarino nuclear ao largo de Vladivostok ou reduzir o preço do seu
produto para minar seu competidores); calcular os valores esperados de cada
opção, uma vez consideradas todas as probabilidades relevantes;
escolher então a opção com o maior valor esperado.
Perguntou alguma vez onde os engenheiros financeiros que nos deram os agora
famosos derivativos tóxicos obtiveram tanta confiança para
calcular números exóticos, como Valor em risco
(Value at Risk, VAR),
os quais tranquilizavam os administradores de riscos dos bancos e levava-os
à aceitação imbecil dos riscos absurdos (mas supostamente
"sem riscos") que os seus rapazes estavam a assumir? A resposta:
estes mesmos modelos matemáticos elaborados na RAND e outras entidades
tais como as unidades de investigação da Guerra-fria na
década de 1950. Todas estas pessoas incrivelmente inteligentes
acreditavam piamente que a sua abordagem matemática do valor esperado
era o caminho para avançar. Todas excepto uma: Daniel Ellsberg, que
logo, desde o princípio e com absoluta honestidade intelectual, revelou
a loucura absoluta de toda a abordagem. Para demonstrá-lo, concebeu um
experimento brilhante.
Suponha que uma urna contenha 90 bolas e dizem-lhe (a) que 30 são
vermelhas e (b) que as restantes 60 bolas são uma mistura desconhecida
de negras e amarelas (Importante: não lhe dizem quantas destas 60 negras
ou amarelas são realmente negras ou amarelas. Na verdade, podem ser
todas amarelas, todas negras ou qualquer combinação de negras e
amarelas). Uma bola é seleccionada aleatoriamente e dão-lhe a
seguinte escolha. A Opção I lhe dará US$100 se for
retirada uma bola vermelha e nada se for negra ou amarela. A
Opção II lhe dará US$100 se for retirada uma bola negra e
nada se for uma vermelha ou amarela. Aqui está um resumo das
opções:
|
Vermelho
|
Negro
|
Amarelo
|
Opção I
|
$100
|
0
|
0
|
Opção II
|
0
|
$100
|
0
|
Anote a sua escolha e considere então duas outras opções
baseadas igualmente na retirada aleatória desta urna (depois de as bolas
terem sido recolocadas de modo a que a urna contenha as mesmas bolas como antes:
|
Vermelho
|
Negro
|
Amarelo
|
Opção III
|
$100
|
0
|
$100
|
Opção IV
|
0
|
$100
|
$100
|
Qual opção escolheria agora?
O experimento, no qual Ellsberg pediu a centenas de pessoas inteligentes para
efectuarem estas escolhas, revelou que a maior parte das pessoas seleccionou as
Opções I e IV. Ellsberg destacou então que estes
resultados não podiam sem enquadrados com a abordagem matemática
(descrita acima) preferida pelos seus colegas da RAND. Por que?
Recordar que os matemáticos da RAND assumiam que, quando apresentados
com opções incertas, a pessoa racional assinalaria um valor
numérico específico a cada uma e então escolheria a
opção com o valor mais alto. Nesta interpretação,
quando uma pessoa escolhe a Opção I em detrimento da
Opção II, ela está a revelar uma expectativa de que deve
haver mais bolas vermelhas na urna do que negras (uma vez que o número
de bolas amarelas não tem consequência, uma vez que ela nada
ganhará na outra opção se uma amarela for retirada da
urna). Contudo, quando a mesma pessoa prefere a Opção IV à
Opção III, ela revela exactamente o oposto: que pensa haver mais
bolas negras do que vermelhas na urna. (Por que de outro modo daria uma
avaliação mais alta à Opção IV do que
à Opção III?). Mas isto não pode ser
"racional". Não há, na verdade, qualquer meio para que
alguém possa racionalizar uma crença de que há mais bolas
vermelhas do que negras quando escolhendo entre as Opções I e II
e, ao mesmo tempo, pensar que há mais bolas negras do que vermelhas
quando escolhendo entre as Opções III e IV. Afinal de contas,
trata-se da mesma urna que contem as mesmas bolas.
Então, o que está a acontecer aqui? A explicação
simples de Ellsberg é que as pessoas não actuam como os seus
colegas da RAND esperavam. Que elas não olham para as suas várias
opções de risco, atribuem-lhe diferente valores numéricos
esperados e então tratam de escolher a que tem o valor mais alto. As
pessoas reais, pensava Ellsberg, interessam-se por algo que os cientistas da
RAND desprezam: nós não gostamos de ambiguidade! Para ver o que
isto significa, recorde, ao escolher entre as Opções I e II, a
pessoa que opta por I sabe a probabilidade exacta de ganhar US$100: é 1
em 3 (uma vez que lhe foi dito inequivocamente que 30 das noventa bolas na urna
são vermelhas). Em contraste, se escolhesse a Opção II, a
probabilidade de vencer seria desconhecida para ela (uma vez que a
proporção de bolas negras é desconhecida). Agora olhe as
Opções III e IV. Mais uma vez, ao escolher a Opção
IV, a pessoa sabe a probabilidade exacta de vencer: 2 em 3 (uma vez que 60 das
bolas não são vermelhas). Em contraste, a probabilidade de ganhar
US$100 ao escolher a Opção III é ambígua (pois a
proporção de bolas vermelhas e amarelas é desconhecida).
Por outras palavras, as escolhas de I e IV podem ser explicadas pela
aversão à ambiguidade
e preferência por opções que venham com
informação precisa e objectiva acerca da probabilidade de ganhar
ou perder. Esta espécie de preferência viola a lógica dos
cientistas da RAND
mas não pode de modo algum ser ignorada.
Este experimento, cujos resultados Ellberg publicou em 1961,
[1]
passou a ser conhecido como o
Paradoxo de Ellsberg
. A sua importância é que reflecte um problema mais profundo de
toda a teoria económica neoliberal: o tipo de teoria que, especialmente
após o fim de Bretton Woods, apossou-se não só da academia
como também do sector financeiro e da elaboração da
política económica nos governos. O seu princípio
básico era, e continua a ser, que coisas incertas podem ser tratadas
como se fossem seguras, desde que os riscos tenham sido factorados
probabilisticamente! Risco sem risco, por outras palavras. Será que isto
o recorda de alguma coisa? Como as classificações AAA dos
derivativos que explodiram em 2008?
Ellsberg lançou a advertência urgente de que
avaliações de probabilidade captam de forma inadequada o modo
como a incerteza entra na tomada de decisão. Embora ele não o
tenha dito no momento da publicação do artigo, o experimento
acima deveria fazer soar campainhas de alarme todas as vezes que fosse proposto
um modelo neoliberal. Se a contribuição científica de
Ellsberg não tivesse sido ignorado pela profissão das
ciências económicas, os últimos trinta anos ou pouco mais
poderiam ter sido diferentes. Infelizmente, resultados científicos como
esse de Daniel Ellsberg podem ser seguramente ignorados quando a pista do
dinheiro aponta uma direcção diferente.
A grande fuga
Possivelmente devido ao seu profundo envolvimento na RAND e no complexo
militar-industrial do qual a RAND era uma parte importante, Ellsberg tornou-se
profundamente envolvido na política do governo dos EUA, a saber, a
corrida às armas nucleares, a Crise Cubana dos Mísseis, a Guerra
do Vietname, etc. Devido às suas credenciais inquestionáveis como
empregado da RAND e como um Guerreiro Frio, ele tinha acesso aos chamados
Pentagon Papers:
um vasto conjunto de documentos altamente classificados que provavam para
além de qualquer dúvida que toda a administração
dos EUA já sabia que a guerra não podia ser vencida e que as
baixas seriam enormes.
Chocado com o que lia, Ellsberg começou a comparecer a reuniões
anti-Guerra do Vietname. Em 1969, numa destas reuniões, encontrou um
soldado que estava determinado a tomar posição contra a
continuação dessa guerra estúpida mesmo que tivesse de ir
para a prisão. Ter contacto pessoal com um objector de consciência
de carne e osso, um homem pronto para arriscar tudo a fim de fazer a coisa
certa, provocou a epifania de Ellsberg a qual o estimulou a tornar-se o mais
famoso dissidente do governo dos EUA.
Com a assistência de outro empregado da RAND, ele passou noites
incontáveis a fotocopiar documentos, um por um. Depois de terem
fracassado as suas tentativas de interessar legisladores quanto ao seu
conteúdo, ele passou-as para o
New York Times
e o
Washington Post.
Os primeiros extractos explosivos foram publicados em Junho de 1971. A seguir
Ellsberg foi despedido do seu emprego e em 1973 foi sujeito a um julgamento sob
acusações que o teriam feito passar mais de 110 anos na
prisão. Contudo, a notoriedade do seu caso, a defesa rigorosa por
advogados qualificados e a evidência clara de subterfúgio do
governo (incluindo uma campanha encoberta para difamar e mesmo insultar
Ellsberg) levaram finalmente à sua absolvição. Até
hoje o establishment americano, incluindo a RAND, não o esqueceu.
Epílogo
No momento em que os nossos estados "liberais" emitiram o equivalente
a uma
fatwa
contra Julian Assange por ajudar, através do WikiLeaks, a tornar
públicas verdades vergonhosas, é importante para esta
geração recordar os pioneiros, e aprender com eles, nesta luta
inter-temporal contra a misantrópica indústria militar e do
confusionismo económico.
[1]
Ver Daniel Ellsberg (1961) "Risk, Ambiguity, and the Savage
Axioms," Quarterly Journal of Economics, 75 (4): 643-669. Curiosamente, o
seu resultado experimental está próximo da rejeição
de John Maynard Keynes da noção de que, num mundo incerto,
pessoas racionais comportam-se como se fossem maximizar alguma
função bem definida envolvendo expectativas matemáticas.
[*]
Professor de Teoria Económica e director do Departamento de Economia
Política da Faculdade de Ciências Económicas da
Universidade de Atenas. Seus livros incluem: The Global Minotaur: The True
Origins of the Financial Crisis and the Future of the World Economy; (com S.
Hargreaves-Heap) Game Theory: A Critical Text (Routledge, 2004); Foundations of
Economics: A Beginner's Companion (Routledge, 1998); and Rational Conflict
(Blackwell Publishers, 1991). O artigo acima resume argumentos apresentados no
Capítulo 12 de Modern Political Economics: Making Sense of the Post-2008
World, de autoria de Yanis Varoufakis, Joseph Halevi, e Nicholas Theocarakis (a
ser publicado em Março 2011 pela Routledge).
O original encontra-se em
http://mrzine.monthlyreview.org/2010/varoufakis161210.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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