Arriando a bandeira do século americano
Em 1962, a historiadora Barbara Tuchman publicou um livro acerca do
início da Primeira Guerra Mundial e o intitulou
As armas de agosto (
The Guns of August
)
. Chegou a ganhar um Pulitzer. Ela estava, é claro, recordando eventos
que haviam ocorrido quase 50 anos antes e tinha à sua
disposição documentos e informação não
disponíveis aos que participaram da guerra. Eles atuaram, como disse o
secretário de Defesa da era vietnamita Robert McNamara, no calor da
guerra.
Então, como estamos nós neste agosto de 2010, com as armas
pipocando numa guerra no Afeganistão enquanto tentamos nos safar de
outra no Iraque? Onde estamos, enquanto impomos sanções sobre o
Irã e a Coréia do Norte (e ameaçamos pior do que isso),
enquanto mandamos nossas mais recentes maravilhas em armamentos, mecanismos
automáticos equipados com bombas e mísseis, sobre as fronteiras
tribais do Paquistão, Iêmen e quem sabe onde mais, encarregados de
infindáveis "matanças dirigidas" que, em épocas
mais duras, chamávamos de assassinatos? Onde exatamente estamos,
enquanto continuamos a fortificar a maior parte do globo mesmo quando nosso
país está incapacitado de pagar por serviços
básicos?
Gostaria de ter uma bola de cristal em que pudesse espreitar para ver o que os
historiadores dirão de nossas próprias armas em agosto de 2060. O
calor da guerra, afinal de contas, é apenas uma metáfora para o
que poderia ser chamado de "as brumas do futuro", a inabilidade dos
humanos para descortinar o que o mundo virá a ser. Permitam-me
não obstante tentar oferecer alguns vislumbres do que essa paisagem
enevoada alguns anos no futuro poderá revelar, e mesmo arriscar algumas
predições sobre as possibilidades que aguardam a América
ainda imperial.
Começarei perguntando: Que danos sucederão aos Estados Unidos se
realmente decidirmos, contra todas as probabilidades, fechar os milhares e
milhares de bases, grandes e pequenas, que guarnecemos ao longo do mundo? O que
ocorreria se realmente desmantelássemos nosso império e
voltássemos para casa? Hordas como as de Genghis Khan desceriam sobre
nós? Pouco provável. Não é nem mesmo
concebível uma invasão por terra ou por mar aos EUA.
Ataques como o do 11 de setembro iriam se acelerar? Parece-me muito mais
provável que, à medida em que nossa presença no
estrangeiro encolhesse, a possibilidade de ataques assim encolheriam
também.
Os vários países que invadimos, algumas vezes ocupamos, e
tentamos colocar no caminho da justiça e da democracia degenerariam em
"estados falidos"? Possivelmente alguns, e evitar ou controlar isso
deveria ser a função das Nações Unidas ou dos
estados vizinhos. (É bom lembrar que o regime cambojano assassino de Pol
Pot acabou chegando ao fim não por nossa causa, mas por causa do vizinho
Vietnam.)
Império cambaleante
Em outras palavras, os piores medos que se poderia ouvir em Washington
se alguém se preocupasse minimamente em imaginar o que aconteceria se
começássemos a desmontar nosso império se
mostrariam apenas quimeras. Seriam, na verdade, notavelmente parecidas com as
funestas previsões nos anos 70 sobre os estados em toda a Ásia,
então na África, e assim por diante caindo, como dominós,
sob a dominação comunista se não ganhássemos a
guerra no Vietnam.
Como seria o mundo então se os EUA perdessem globalmente o controle
os maiores medos e as mais profundas reflexões de Washington
acerca de nossa pretensiosa auto-apreciação como
está efetivamente acontecendo agora apesar de nossos melhores
esforços? Como seria o mundo se os EUA apenas desistissem? O que nos
aconteceria se não fôssemos mais a "única
superpotência" ou a autonomeada polícia do mundo?
Na verdade, ainda seríamos um grande e poderoso
estado-nação com uma miríade de problemas internos e
externos. Uma crise de drogas e imigração em nossa fronteira sul,
custos de saúde subindo, um sistema de educação se
enfraquecendo, uma população envelhecendo, uma infraestrutura
envelhecendo, uma recessão sem fim nenhum dos quais terá
solução no futuro próximo, e nenhum dos quais tem
possibilidade de ser atacado de modo sério e bem sucedido enquanto
continuarmos a gastar nossa riqueza em exércitos, armamentos, guerras,
ocupação global e subornos a ditadores insignificantes.
Mesmo sem nossa interferência, o Oriente Médio continuaria a
exportar petróleo, e se a China estivesse comprando uma parcela cada vez
maior do que permanece inexplorado naqueles países, talvez isso nos
estimulasse a uma conservação maior e nos levasse mais
rapidamente à era das energias alternativas.
Potência emergente
Enquanto isso, se desmantelarmos ou não nosso império, a China se
tornará (se já não é) a próxima
superpotência mundial. Ela, também, enfrenta uma série de
problemas internos, incluindo muitos dos mesmos que temos. Entretanto, tem uma
economia em crescimento, uma balança de pagamentos favorável
frente ao resto do mundo (particularmente os EUA, que está atualmente
enfrentando um déficit comercial anual com a China de US$ 227 mil
milhões) e um governo e uma população determinados a
transformar o país num estado poderoso e economicamente dominante.
Cinqüenta anos atrás, quando comecei minha carreira acadêmica
como especialista em China e Japão, fiquei fascinado pela
história moderna desses países. Meu primeiro livro tratou do modo
como a invasão japonesa da China nos anos 30 impulsionou Mao Tse Tung e
o Partido Comunista Chinês rumo ao poder, graças à
resistência nacionalista aos invasores estrangeiros. Incidentalmente,
não é difícil encontrar exemplos deste processo, no qual
um grupo político local chega ao poder porque lidera a resistência
a tropas estrangeiras. No período imediato à Segunda Guerra
Mundial, isso ocorreu no Vietnam, na Indonésia e na Malásia; com
o colapso da União Soviética em 1991, ao longo de toda a Europa
Oriental; e hoje certamente esta acontecendo no Afeganistão e
provavelmente no Iraque também.
Quando começou a Revolução Cultural na China em 1966,
perdi temporariamente o interesse no estudo do país. Eu pensava que
sabia para onde a desastrosa reviravolta interna estava levando a China, e
assim me voltei para o Japão, que estava então sendo bem
conduzido em sua surpreendente recuperação da Segunda Guerra
Mundial, graças ao crescimento econômico dirigido pelo estado, mas
não de sua propriedade.
Esse padrão de desenvolvimento econômico, algumas vezes chamado de
"estado desenvolvimentista", difere fundamentalmente tanto do
controle da economia nos moldes soviéticos quanto da abordagem
laissez-faire dos EUA. A despeito do sucesso do Japão, lá pelos
anos 90 sua burocracia crescentemente esclerosada havia levado o país a
um prolongado período de deflação e
estagnação. Ao mesmo tempo, a Rússia
pós-soviética, por um curto período atrelada ao
aconselhamento econômico norte-americano, viu-se cativa dos rapaces
oligarcas que desmantelaram o comando da economia somente para enriquecerem a
si próprios.
Na China, o líder do Partido Comunista Deng Xiaoping e seus sucessores
puderam observar os acontecimentos no Japão e na Rússia,
aprendendo com ambos. Eles claramente adotaram os aspectos efetivos dos dois
sistemas para sua economia e sua sociedade.Com um pouco de sorte, na economia e
em outros setores, e como continuação de sua atual
liderança bem informada e racional, a China continuou a prosperar sem
ameaçar nem seus vizinhos nem os EUA.
Imaginar que a China quereria iniciar uma guerra com os EUA ainda que
sobre uma questão tão profundamente emocional quanto o status
político de Taiwan seria projetar para o país uma
direção muito diferente daquela na qual está rumando
atualmente.
Arriando a bandeira no século americano
Daqui a 35 anos, terá terminado oficialmente o século em que a
América terá sido o chefão (1945-2045); sua época
pode, de fato, estar acabando neste momento. Estamos começando a parecer
cada vez mais uma versão gigante da Inglaterra no final de seu
período imperial, na medida em que começamos a enfrentar, ainda
que necessariamente não os resolvendo, o envelhecimento de nossa
infraestrutura, nossa influência internacional declinante e nossa
economia decadente. Poderia, até onde sabemos, ser ainda o século
de Hollywood daqui a décadas, de modo que ainda pudéssemos agitar
a superfície da cena cultural, do mesmo modo que a Inglaterra fez nos
anos 60 com os Beatles e Twiggy. Turistas iriam sem dúvida visitar
algumas de nossas maravilhas naturais e talvez algumas de nossas cidades menos
imundas, em parte porque as taxas de câmbio do dólar possivelmente
estariam favoráveis a eles.
Se, todavia, decidíssemos desmantelar nosso império de bases
militares e redirecionar nossa economia para indústrias produtivas, e
não mais destrutivas; se mantivéssemos nossas forças
armadas voluntárias principalmente para defender nossas próprias
costas (e talvez para serem usadas sob o comando das Nações
Unidas); se começássemos a investir em nossa infraestrutura,
educação, saúde pública e poupança,
então poderíamos ter a possibilidade de nos reinventar como uma
nação normal e produtiva. Infelizmente, não vejo isso
acontecendo. Escrutinando este nebuloso futuro, simplesmente não consigo
imaginar os EUA desmantelando voluntariamente seu império, o que
não significa que, como todas as fortificações imperiais,
nossas bases não acabem algum dia.
Ao invés disso, prevejo os EUA à deriva, da mesma forma que a
administração Obama parece estar à deriva na guerra do
Afeganistão. A opinião corrente entre os economistas hoje
é que o alto desemprego deve permanecer por mais uma década.
Acrescente-se a isso o baixo investimento e a contenção de gastos
(exceto talvez os gastos do governo) e eu temo que T.S. Elliot tivesse
razão quando escreveu: "É assim que o mundo termina,
não com um estrondo, mas com um gemido".
Tenho sido sempre um analista político e não um ativista. Esta
é uma das razões porque por um breve tempo tornei-me consultor do
principal ramo analítico da CIA, e porque eu agora prefiro sair da
Agência. Não somente a CIA perdeu sua razão de ser ao
permitir que sua coleta de inteligência se contaminasse politicamente,
mas suas operações clandestinas criaram um clima de impunidade no
qual os EUA podem assassinar, torturar e aprisionar pessoas à vontade em
todo o mundo.
Da mesma forma que perdi o interesse na China quando a liderança daquela
país se dirigiu de maneira tão cega para o caminho errado durante
a Revolução Cultural, temo estar perdendo o interesse em
continuar a analisar e dissecar as perspectivas para os EUA nos próximos
anos. Aplaudo os esforços de jovens jornalistas de dizerem as coisas
como elas são, e os dos acadêmicos em juntarem
informações que um dia capacitarão historiadores a
descrever onde e quando nos perdemos. Admiro especialmente as
percepções do lado de dentro, como aquelas dos ex-militares como
Andrew Bacevich e Chuck Spinney. E reverencio os homens e mulheres dispostos a
arriscar suas carreiras, salários, liberdade e mesmo vida para protestar
como os padres e freiras do SOA Watch, que fazem piquetes regulares na
School of the Americas e chamam atenção para a presença de
bases militares e o mau comportamento americano na América do Sul.
Estou também impressionado com Pfc. Bradley Manning, se ele é na
realidade a pessoa responsável pela potencial liberação ao
público de 92 mil documentos secretos sobre a guerra no
Afeganistão. Daniel Ellsberg estava há tempo esperando que
alguém fizesse o que ele próprio fez quando liberou os Documentos
do Pentágono durante a guerra do Vietnam. Ele deve ter se surpreendido
com a resposta a este chamado e de maneira tão improvável.
Meu próprio papel nesses últimos 20 anos foi o de Cassandra, a
quem os deuses concederam a dádiva de prever o futuro, mas também
amaldiçoaram com o fato de que ninguém acreditaria nela. Eu
gostaria de ser mais otimista sobre o que está reservado para os EUA.
Mas não há um só dia em que nossas próprias armas
de agosto não continuem a me assombrar.
[*]
Autor de
Blowback (2000), The Sorrows of Empire (2004), Nemesis: The Last Days of the American Republic (2006), Dismantling the Empire: America's Last Best Hope (2010) e outros livros
.
O original encontra-se em
www.tomdispatch.com/...
. Tradução de RMP.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|