por Manuel Salgado Tamayo
[*]
O coronel Lucio Gutiérrez, rodeado pelo Alto Comando das Forças
Armadas Equatorianas, às 21h30 de sexta-feira 25 de Abril leu o decreto
que declara o Estado de Emergência no Distrito Metropolitano de Quito, na
Província de Pichincha. Suspende assim a vigência dos direitos
humanos e constitucionais como a liberdade de opinião e de
expressão, a inviolabilidade do domicílio, a inviolabilidade e o
segredo da correspondência, o direito de transitar livremente pelo
território nacional, a liberdade de associação e de
reunião, dentre outros.
O Decreto dissolve o Tribunal Supremo de Justiça, nomeado por uma
maioria parlamentar adicta ao próprio governo, em 8 de Dezembro de 2004,
num acto ditatorial que viola a Constituição Política
que não confere ao Presidente faculdades para intervir nos demais
poderes do Estado e, finalmente, dispõe a
mobilização, desmobilização e
requisições que as Forças Armadas e a Polícia
Nacional deverão executar.
O decreto tenta ser uma resposta, desesperada, do coronel Gutiérrez
à crescente mobilização e protesto do povo equatoriano
pela consumação da impunidade em favor dos ex-governantes
Abdalá Bucaram, Alberto Dahik e Gustavo Noboa, que roubaram a
mãos cheias os recursos públicos e que agora retornaram
pimpões ao país, beneficiando-se de uma resolução
do espúrio presidente do Tribunal Supremo de Justiça, Pichi
Castro.
Em meio ao clima de tensão em que vive o país devido ao Estado de
Emergência, destinado a reprimir o povo, circularam rumores sobre a
existênia de fissuras na frente militar, uma vez que alguns oficiais se
teriam negado a cumprir tarefas punitivas. Adicionalmente, o Juiz
Décimo Quarto do Tribunal Penal de Pichincha, acolhendo uma
denúncia das organizações de direitos humanos, tornou sem
efeito o Decreto de Emergência de Gutiérrez, que poderia ser
revisto nas próximas horas pelo próprio presidente, habituado a
fazer e desfazer os seus próprios actos.
AS MIL FORMAS DE RESISTÊNCIA POPULAR
A resistência popular ganhou um aspecto inesperado depois de fracassar a
paralisação convocada terça-feira 12 de Abril pelo Partido
Social Cristão, pela Esquerda Democrática e pelo Movimento
Pachakutik. O povo deu-se conta de que todas as forças políticas
presentes no Congresso Nacional, no Executivo e no Poder Judicial são
coresponsáveis pelo desastre nacional a que Lucio Gutiérrez
conduziu e, por isso, o movimento espontâneo de massas levantou uma
palavra-de-ordem que se estende desde o seu epicentro em Quito até o
resto do Equador:
¡Que se vayan todos!
A criatividade do povo utilizou formas simbólicas diversas para promover
uma resistência pacífica que aumenta com a passagem das horas.
Panelas vazias que soam e se mobilizam a partir de todos os bairros de Quito
conduzidas por grupos familiares; balões que arrebentam a uma mesma
hora, em meio ao silênio da noite, simples pedaços de madeira
transformados em tímbales que agoniam a surdez do ditador, tudo
coordenado por uma equipe de jornalistas da Rádio La Luna,
encabeçada por um radialista democrático e polémico, Paco
Velasco, que acompanhou também os tempos de optimismo do 21 de Janeiro
de 2000, quando parecia que a aliança de Lucio Gutiérrez e do seu
grupo de militares com o Movimento Indígena era uma força social
alternativa destinada a perdurar.
AS RAÍZES PROFUNDAS DO CONFLITO
Os partidos políticos das classes dominantes e as ONGs financiadas pelo
Império empenharam-se em reduzir o conflito ao carácter
ditatorial da destituição do Tribunal Supremo de Justiça
anterior e a nomeação do actual em 9 de Dezembro do ano passado.
Na realidade, a maioria que tomou essa decisão, com os votos dos
deputados do Partido do governo Sociedade Patriótica, do PRE do
populista Abdalá Bucaram, do PRIAN do milionário Álvaro
Noboa, do MPD de suposta filiação marxista-leninista, do CFP do
solitário Jorge Montero, da DP e dos chamados independentes, que se
vendem pela melhor oferta, não tinham faculdades constitucionais para
tomar essa decisão e o acto era o segundo atropelo de uma maioria
parlamentar contra uma decisão popular tomada na Consulta Nacional de
1997, que se havia pronunciado pela profissionalização e
despartidarização do Poder Judicial no Equador.
A ausência de justiça no país e a cumplicidade do governo
de Gutiérrez no perdão e esquecimento dos delitos cometidos por
governantes e banqueiros é um elemento poderoso na génese do
protesto popular, mas além disso estão presentes outros factores
nos quais prolongam-se os resultados da crise financeira de fins do
século XX e reproduzem-se outros impostos pelas políticas de
condicionalidade do Fundo Monetário Internacional e a abertura
unilateral que obriga o país aos compromissos contraídos com a
Organização Mundial de Comércio, como: A quebra de
centenas de empresas. O crescimento do emprego e do subemprego (nos dois anos
de governo de Gutiérrez o desemprego cresceu de 8% para mais de 11%). A
perda de poder aquisitivo dos salários. A deterioração
dos serviços públicos. Os cortes das verbas orçamentais
para educação, saúde, habitação,
desenvolvimento comunitário. O crescimento explosivo da
delinquência comum. A queda dos níveis de nutrição.
O fracasso da dolarização, que não regista a bondades
preconizadas pelos seus defensores. Depois de cinco anos de vigência,
mostra taxas de juros entre os 12% e os 16%, que são um atentado contra
o investimento. A rigidez do esquema, que implica uma taxa de câmbio
fixa, levou-nos a uma perda de competitividade brutal; a
reprimarização da economia prossegue; as
remunerações deterioram-se; o fosso entre ricos e pobre
agiganta-se, o PNUD afirma que 43% do rendimento concentra-se em 10% da
população, a pobreza afecta 42%, ao passo que 30% vive na pobreza
extrema.
O pagamento da dívida externa transformou-se, com a cumplicidade do
coronel Gutiérrez, numa bomba de sucção impossível
de resistir e tolerar. Se em 1994 o serviço da dívida
significava o pagamento de 769 milhões de dólares, em 2004 essa
cifra aumentou para 3.795 milhões de dólares, pelo que para
pagá-la há que aumentar a dívida interna e externa.
A BASE DE MANTA E O PLANO PATRIOTA
Além disso, a Base de Manta e a submissão do coronel aos
desígnios de Bush e de Uribe Vélez na execução do
Plano Colômbia e do Plano Patriota, significaram uma
distribuição de milhões de dólares para financiar a
mobilização na fronteira norte, com a Colômbia, de uma
operação de mais de 12 mil soldados que participam nas tarefas de
contra-insurreição, concebidas pelos assessores ianques, o que
implica o abandono da tradicional política internacional de
princípios, baseada no respeito ao direito à
auto-determinação dos povos e uma trágica perda de
soberania que nos transforma numa semi-colónia norte-americana. A
sensação de que o país se desintegra e se arruina com a
cumplicidade de um coronel traidor que não tem sentido de Pátria
nem de dignidade aumenta ao comprovar a forma servil e irresponsável
como se negocia o Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos da
América.
O resultado social mais dramático e doloroso é a explosão
migratória que, entre 1996 e 2004, atingiu um milhão e meio de
pessoas, ou seja, o mesmo número de compatriotas, aproximadamente, que
abandonou o país no meio século anterior.
Todos estes factores fazem a Agenda, elaborada por milhões de mulheres e
de homens, de todas as idades, que vão tomando progressivamente as ruas
e praças do país para exigir que se vá o traidor e que se
inicie o esforço colectivo pela restauração da
pátria.
AS MULETAS DO 'CHAUPI' DITADOR
Gutiérrez suportou várias tormentas com o apoio invariável
da Embaixada Americana, do Partido Social Cristão e de Febres Cordero
que o utilizou dois anos; da social-democracia local, representada pela ID,
que sofreu uma paulatina direitização que a levou a caminhar
pelas trilhas da privatização e da terciarização
neoliberal, na administração dos governos locais, assim como a
coincidir no projecto anti-democrático do bipartidarismo concebido por
Febre Cordero com o método Imperial e, para cúmulo, um dos seus
deputados, Guillermo Haro, esteve ao serviço do Império
perseguindo os familiares dos insurgentes colombianos que supostamente vivem no
Equador.
Outra das muletas de Gutiérrez foi o insólito MPD, de suposta
filiação marxista-leninista, que serve o regime com o
silêncio e a desmobilização de uma parte do
magistério e da Universidade Central, em troca de altos postos na
burocracia. E, agora, também com o jogo de interesses do PRE, uma das
estruturas políticas mais corruptas da nação e o PRIAN, do
milionário mas pouco favorecido pelo talento Álvaro Noboa, que
sonha ser Presidente da República.
PARA ONDE VAI O EQUADOR?
Como se vê, há um actor espontâneo de primeira grandeza: as
massas de cidadãos empobrecidos. Existe também um Programa ainda
não consensualizado de modo suficiente. As formas de luta são
muito criativas. O que não vemos e terá de ser construído
é o sujeito político capaz de vertebrar e organizar todo este
processo para dar-lhe uma saída em meio a um panorama latino-americano
caracterizado pela presença de um bloco alternativo de poder que, com
sabedoria e audácia, Fidel Castro e Hugo Chávez vão
construindo.
[1]
'Chaupi' é uma palavra quicha que significa metade ou meia.
[*]
Professor da Universidade Central do Equador
O original encontra-se em
http://www.anncol.org/side/1286
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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