Bioconfusão
Os biocombustíveis estão na ordem do dia. De facto, desde a
recente Cimeira da Primavera, que reuniu em Bruxelas os chefes de estado e de
governo europeus, e cuja agenda foi dominada pela questão
energética, até à visita do presidente de Bush ao Brasil
realizada em 8 e 9 de Março, cujo objectivo central anunciado foi o
fornecimento de bioetanol brasileiro aos EUA, passando pelo o anúncio
caseiro de que, no âmbito do
Quadro de Referência Estratégico Nacional
(QREN),
se iria incrementar o uso dos biocombustíveis nas frotas municipais,
pelo menos nos municípios da AML Área Metropolitana de
Lisboa, o assunto está presente de uma forma central em todas as agendas.
Impõe-se, então, tentar descodificar o que poderá
justificar tamanho fervor e, desde logo, esclarecer o que significam, de facto,
os biocombustíveis de que tanto se fala.
Sob a designação de biocombustível (ou biocarburante,
na expressão dos espanhóis e franceses), acomodam-se diversos
tipos de produtos muito distintos. De facto, poderemos incluir nesta classe os
seguintes produtos: bioetanol, biodiesel, biogás, biometanol, bio-ETBE,
bio-MTBE, biohidrogénio e o óleo vegetal puro (diversos tipos).
Contudo, numa análise mais abrangente, os biocombustíveis
são, no fundo, membros de uma ampla família, a dos produtos
bioenergéticos, que acomoda a biomassa, ou seja, inclui desde as mais
diversas formas de lenha, até aos resíduos da floresta e das
indústrias conexas, passando pelos resíduos da agricultura
(vegetais e animais), às produções agrícolas
bioenergéticas sólidas (i.e. cardo), aos óleos vegetais
residuais (recolhidos selectivamente nas zonas urbanas), ao biogás
(biometano), aos subprodutos de diversas actividades agrícolas,
designadamente as que se destinam à produção de
óleos vegetais energéticos e/ou alimentares, e, ainda, às
fracções biodegradáveis dos resíduos industriais e
urbanos (Directiva 2001/77/EC).
Deve esclarecer-se, porém, que a enorme corrida lançada desde
há poucos anos pela UE e pelos EUA, centra-se quase exclusivamente no
biodiesel e no bioalcool (bioetanol),
com o objectivo de os utilizar como combustíveis alternativos à
gasolina e ao gasóleo no sector dos transportes, particularmente nos
veículos automóveis.
Embora quase não seja perceptível na corrente informativa
dominante, até porque se verifica um estranho silêncio das
organizações ecologistas, existe um significativo movimento de
opinião mundial, mobilizando muitos e prestigiados cientistas, que
defendem pontos de vista completamente contrários à propaganda
oficial dos estados europeus e americanos, devido àquilo que eles
demonstram serem as consequências perniciosas para a
produção alimentar, para a gestão sustentável dos
solos e da água, para a desflorestação, designadamente nos
trópicos, e para a contaminação dos solos com nutrientes
poluentes, resultantes das utilizações enviesadas de produtos
agro-alimentares como matéria-prima energética.
Vejamos, porém, de onde no fundo dimana o interesse dos centros de
decisão económica, em fazerem combustíveis para
automóveis a partir de milho, soja, girassol, palma ou colza.
Hoje em dia nenhum especialista ou responsável político duvida
que o zénite da produção mundial do petróleo bruto
está a ser atingido nos tempos que correm. Portanto, está-se a
entrar numa nova era na qual o fundamental vector energético do mundo
actual, embora não acabe nas próximas três ou quatro
décadas, será imediata, perene e gradualmente mais caro, e de
aprovisionamento muitíssimo mais problemático.
Mesmo as previsões mais optimistas, as do Departamento de Energia dos
EUA, apontavam, até há pouco tempo, o início do declive
produtivo do petróleo para 2037. O que não é minimamente
realista, porque não tem em conta que a procura continua a aumentar em
função da actividade económica crescente, designadamente
da Índia e China. É também por isso que diversas vozes
conhecedoras e independentes indicam estimativas muito menos optimistas, como
são os casos de Colin Campbell, geólogo, que aponta para 2010 o
turning point,
ou, ainda, Kennet Deffeyes
[1]
, que sustenta que o Pico do Petróleo ocorreu já em 2005, ou,
como prevê Bakhtiari, especialista iraniano, que indica 2007 como o ano a
partir do qual a produção mundial de petróleo
começará a decair irreversivelmente.
Face a esta realidade incontornável, e mergulhados que estamos num
sistema económico caracterizado pela intrínseca necessidade de
crescer para viver, explorando sempre mais intensamente a natureza e a
humanidade, é compreensível que sintamos diversos sinais de
perturbação e desorientação nos centros de
decisão políticos. Tornou-se vulgar depararmos com
decisões políticas que encerram claras contradições
entre os objectivos anunciados e os conteúdos deliberados. Ora isto
não acontece por incompetência dos governos, mas sim devido
à pressão dos todo-poderosos chefes económicos e
financeiros, que, com grande capacidade de influenciar os governantes, e
mestres que são na arte de sobreviver, vão ditando as suas
receitas para a crise, com as quais conseguem o ouro sobre azul, ou seja,
continuarem com o aumento dos seus lucros.
Além da evidência irrecusável que a época do
petróleo barato tem os dias contados, e, portanto, que um dos pilares do
sistema económico ainda dominante está a desmoronar-se, a
questão ambiental planetária, particularmente relacionada com o
incremento da poluição atmosférica, vem ganhando contornos
preocupantes nos discursos das entidades políticas e na
programação dos media. Porém, também neste caso, se
verifica a existência de muita especulação e pouco cuidado
na fundamentação científica, designadamente em torno da
questão do aumento da temperatura da Terra.
Um dos principais destinos finais dos combustíveis líquidos
derivados do petróleo é os transportes, sejam eles terrestres,
aéreos e marítimos.
Grande parte dos sistemas de transportes das grandes metrópoles
mundiais vive da utilização massiva de veículos
automóveis de transporte de passageiros e de cargas, locomovidos por
motores de combustão, alimentados preponderantemente com gasolina e
gasóleo.
O sistema económico e o estilo de vida dominantes são viciados
no veículo automóvel, designadamente no transporte individual.
Não será, então, de estranhar que se venha instalando
alguma apreensão e, até mesmo alguma ansiedade, entre as
comunidades urbanas dos países ocidentais, tornando-as progressivamente
mais disponíveis para a utilização de novas formas de
locomoção mais amigáveis, desde que, de preferência,
não impliquem grandes rupturas com os hábitos instalados e com os
circuitos comerciais vigentes. Os sinais dados através dos
políticos e dos líderes de opinião, tanto através
das políticas anunciadas, como através do sistema fiscal e de
preços, vão nesse sentido.
É neste contexto que se vêm insinuando os
biocombustíveis, com grande apoio expresso pela UE e pelos EUA, seguidos
de perto por alguns outros estados e organizações da
América do Sul, e da Ásia. Os biocombustíveis aparecem,
assim, apontados como alternativa aos derivados do petróleo, ou, pelo
menos, como complemento para utilização nos veículos
automóveis, permitindo um certo amortecimento do choque
petrolífero a nível dos preços, e, simultaneamente, como
um contributo para o combate ao, omnipresente "aquecimento global".
Este tipo de combustíveis, são apresentados como limpos,
biodegradáveis, renováveis, não poluentes,
"verdes", e "sustentáveis", e visam sobretudo o
mercado automóvel.
Os biodieseis obtêm-se a partir de óleos vegetais,
fundamentalmente de soja, colza, girassol, palma, e a mamona
(designação brasileira, ou higuerilla, termo hispânico,
para a planta de rícino), por reacção química de
transesterificação, que envolve a utilização de
álcoois (fundamentalmente metanol sintético), e tem na glicerina
um sobreproduto. Implica a existência de unidades industriais que, para
além da extracção do óleo contido nas sementes
(comum à industria alimentar), promovem a transformação
química referida, e que podem custar muitas dezenas de milhões
euros.
No caso dos bioalcoois (bioetanol), são obtidos a partir da
fermentação dos açúcares contida em certas
espécies vegetais, principalmente a cana-de-açúcar e a
beterraba sacarina, embora também já se utilize muito milho,
trigo e a cevada em certos países, seguida por uma
destilação para separar o etanol.
Ambas as linhas de produtos envolvem plantações extensas e
intensas das respectivas espécies vegetais de base, implicando a
necessidade de fortes afluxos energéticos devidos ao emprego intenso de
máquinas agrícolas, adubos, pesticidas, sistemas de rega,
máquinas industriais diversas, aporte de calor para os processos de
destilação e reacção química, transporte,
armazenagem e embalagem. Vários estudos científicos certificados
apontam no sentido de que, mesmo nas situações de boa
produtividade agrícola, o balanço energético final
(ERoEI), entre a energia dispendida ao longo de toda a cadeia produtiva, e a
energia calorífica disponível no combustível final (PCI),
aponta geralmente para valores inferiores à unidade
[3]
.
Isto é, gasta-se mais energia durante todo o processo, do que a que se
obtém no líquido combustível finalmente posto nos
veículos automóveis!
E, acrescente-se, a energia gasta é, em grande parte, de
proveniência fóssil (petróleo), já que só
muito parcialmente as necessidades energéticas ao longo do processo
são garantidas com a queima dos subprodutos agrícolas (palhas,
cascas, bagaços etc).
É necessário esclarecer que o output energético
é obtido a partir da energia contida no produto final e nos subprodutos
ou resíduos do processo produtivo, sendo calculado de formas diferentes
consoante o uso final (Alimentação, Adubo, Combustível).
Como alimento, o cálculo é baseado na Energia Metabólica
disponibilizável ao animal ou homem que a desfruta; como adubo, tem em
conta o consumo de Energia Fóssil utilizada na cadeia de
produção; como combustível, tem-se em
consideração o PCI. Alguns estudos publicados, embora normalmente
patrocinados por empresas directamente associadas a este mercado, admitem que,
em certas condições de bom rendimento, se atinja ERoEI da ordem
dos 1,5
[4]
em biodiseis (ésteres etílicos) elaborados a partir de certas
variedades vegetais.
Sem grande margem para dúvidas, a utilização
energética mais racional, e a que permite melhores índices de
aproveitamento destes produtos agrícolas, passa pela sua
utilização como alimento directo ou indirecto
(rações) para o ser humano.
Assim, não podemos deixar de qualificar como um monumental erro,
produzir combustíveis a partir de produtos agro-alimentares, gastando
mais energia fóssil (petróleo) na sua produção do
que aquela que é disponibilizada no produto final!
Aliás, os defensores dos biocombustíveis, isto é, do
biodiesel e bioetanol
[5]
, dizem, muitas vezes de uma forma meramente panfletária, que o CO
2
libertado na sua combustão não é "mau", porque
não aumenta as emissões líquidas deste contaminante
atmosférico, dado que as plantas de onde provém o tinham
previamente absorvido da atmosfera ao longo do tempo de crescimento vegetal.
Bom, mas parece esquecerem-se de todo o CO
2
directa e indirectamente produzido no processo de cultivo e
produção industrial do respectivo biocombustível,
proveniente dos combustíveis fósseis utilizados em todo o
processo! Isto, para além de carecer de confirmação
cientifica a premissa simplista de que normalmente partem, porque obviamente
que não é a mesma coisa termos floresta ou soja em cem hectares
de terra! E se já era complicada a devastação florestal
galopante com a finalidade de implantar monoculturas agro-alimentares, o que
dizer de passar às culturas agro-energéticas!
Por exemplo, o Cerrado, com os seus 200 milhões de hectares,
representa 23% do Brasil e é responsável por metade da
produção brasileira de soja. Esta região está
pegada, ao norte, com a selva do Amazonas, que, em cada dia, perde 7000 ha
devido à pressão da desflorestação com vistas
às monoculturas designadamente as energéticas!
A expansão das culturas energéticas requereria a
reconversão, até 2020, de 16 milhões de ha de savanas e 6
milhões de florestas tropicais nos países sul-americanos!
[6]
Meditemos no que isto significaria para a biodiversidade, para o incremento
das monoculturas, para a expulsão das suas terras de milhares de
pequenos camponeses, e, até, para a delapidação de
sugadouros vegetais do dióxido de carbono!
A utilização de milho na produção de bioalcool
nos EUA, com a consequente corrida especulativa a este produto, até aqui
utilizado fundamentalmente na alimentação, está a provocar
a carestia dos tortilhas, o que é dramático para muitos milhares
de mexicanos.
A produção mundial de bioalcool (etanol) situou-se, em 2003, em
cerca de 19 milhões de toneladas (62% Brasil; 43% EUA)
[7, 8]
muito superior, portanto à produção dos biodiseis (EMVH),
que se cifrou nas 1,9 milhões de toneladas (44% Alemanha; 22%
França; 17% Itália). Isto transformado em toneladas equivalentes
de petróleo (tep) é, por enquanto, uma ninharia para o mundo
energético, salvo no caso brasileiro, mas é um grande
negócio para algumas grandes empresas.
Em Portugal, se quiséssemos substituir 5,75% do gasóleo agora
consumido nos veículos por biodiesel, a fim de cumprir a Directiva
2003/30/UE, entretanto adaptada pelo Decreto-Lei 62/2006, de 21 de
Março, com a actual produtividade do girassol, teríamos que
plantar cerca de 500 mil ha. No que diz respeito à eventual
substituição da mesma proporção de gasolina por
etanol elaborado a partir de cereais, teríamos que afectar mais de 50
mil há a esta produção. Os números esclarecem por
si mesmos a dimensão da impossibilidade de tal desígnio. Mesmo
que se afectassem solos de regadio na área de Alqueva, e
optássemos por culturas mais eficazes, afigura-se completamente
desaconselhável tal opção, porque a quantidade relativa e
absoluta de solos produtivos no nosso país é escassa. Ou seja, a
aventura europeia na área dos biocombustíveis, significará
para Portugal, muito provavelmente, mais importações, maior
dependência, e uns tantos negócios energéticos, subsidiados
com dinheiro público.
O preço dos biocombustíveis, em quase todas as
circunstâncias, não consegue competir economicamente com os
combustíveis derivados do petróleo, apesar dos aumentos recentes
do crude. Aliás, a produção do bioalcool e do biodiesel
será sempre afectada pela previsível escalada de preços
petrolíferos, porque, como vimos, incorpora na sua
produção muita energia fóssil! É por este motivo
que a UE e os EUA estão a estimular, através de variadas medidas,
designadamente fiscais, os consumos e as produções destes
combustíveis.
Afigura-se errada esta política, tanto do ponto de vista
energético, como ambiental (no sentido amplo do termo, onde se
deverá incluir também o ordenamento do território), como,
ainda, no plano essencial da economia alimentar mundial. De facto, reservar
partes crescentes das produções mundiais de milho, trigo, cevada,
sorgo e soja, para o aprovisionamento energético das frotas
automóveis, e, por outro lado, estender as áreas agrícolas
férteis para a produção de girassol, beterraba,
cana-de-açúcar com fins igualmente energéticos, não
vai contribuir significativamente para a resolução do grave
problema energético em que estamos metidos, e vai seguramente trazer
mais desequilíbrio, fome e injustiça aos povos mundiais. Esta
política demonstra, em nossa opinião, o desnorte dos
países europeus, dos EUA, e outros que, por arrastamento, estão a
acatar esta orientação.
Este facto está bem patente no Livro Verde - Estratégia
europeia para uma Energia Sustentável, Competitiva e Segura, publicado
em 08-03-2006 pela Comissão das Comunidades
[9]
, com o objectivo de descrever as novas realidades energéticas que
preocupam a Europa e sugerir possíveis acções concretas
para uma resposta integrada da União Europeia.
As energias renováveis e alternativas são, no fundamental,
vistas nos países líder da economia de mercado, como grandes
oportunidades de negócio, cada vez mais duro, aliás. O mercado
comunitário das energias renováveis tem um volume de
negócios anual de 15 mil milhões de euros (metade do mercado
mundial), emprega cerca de 300 mil pessoas e é um grande
exportador. Em grande parte, isto é conseguido à custa de
subsídios cruzados, pagos pelos contribuintes e consumidores. Assim, os
grandes grupos energéticos e financeiros abocanham, num grande frenesim,
esta nova janela de mercado.
O mundo, assim, nem pula, nem avança, como dizia o poeta. Limita-se a
andar aos solavancos, incoerentemente, enquanto os líderes mundiais
insistem no erro e no vício.
10/Março/2007
Notas
1-O Prof. Kenneth S. Deffeyes, da Universidade de Princenton, um dos mais
eminentes geólogos dos EUA, autor de
Beyond Oil
, diz (pg. 98) o que se
segue:
"(...) Em resumo, o carvão é barato, o carvão
é versátil, e as principais economias industriais têm
vastos depósitos de carvão. Face à iminente escassez de
petróleo, um plano de jogo possível é: 1) substituir o
gás natural por carvão para a geração de energia
eléctrica; 2) substituir o combustível dos automóveis e
camiões por gás natural; e 3) preservar o petróleo
remanescente para a aviação. (...)".
Mais adiante o Prof. Deffeyes acrescenta: "Fantasiar acerca de uma frota
de automóveis não poluentes a pilha de combustível
(fuel cell)
para daqui a vinte anos não compensará o declínio da
produção petrolífera nesta década" (sic).
2- 58 Milhões de euros para produzir 112 mil m3/ano; revista
Exame,
Setembro 2005
3- Pimentel,D. e Patzek,T.; Ethanol Production Using Corn, Switchgrass and
Wood; Biodiesel production Using Soybean and Sunflower, Natural Resources
Research, Vol. 14, March 2005
4- Neto, José et alli; I Congresso Brasileiro da Mamona; Novembro 2004
5- Nada temos a objectar à utilização de outros
biocombustíveis, como, por exemplo, os resíduos ou subprodutos da
floresta, ou o biogás (que pode ser transformado em biometano)
proveniente de explorações agropecuárias, ETARs, aterros
sanitários e lixo florestal.
6- WWF
7- Na Europa produziram-se apenas 446 mil t de etanol em 2003, mas
produziram-se 828 mil t de ETBE (derivado químico do etanol)
8- Em 2004 a produção mundial teria sido, segundo F. O. Lichts,
cerca 40 milhões de m3,ou seja, 32 milhões de toneladas (15
milhões Brasil; 13,4 EUA)
9- COM (2006) 105 final
[*]
Engenheiro (IST), Pós-graduado em Planeamento Energético (ISEG) e Ordenamento
do Território (UNL),
deca50@netcabo.pt
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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