A crise capitalista numa perspectiva marxista
Em termos marxistas, a crise actual emergiu do funcionamento da
estrutura de classe capitalista. A história do capitalismo revela
repetidos booms, quebras e bolhas pontuais. Os ciclos do capitalismo variam de
forma imprevisível desde o local e superficial até ao profundo,
longo e global. Manter o capitalismo é sofrer a sua instabilidade
crónica. Lidar efectivamente com as crises
recorrentes
do capitalismo implica a mudança para uma estrutura de classe
não-capitalista.
Desde meados dos anos 70 os
salários médios reais
dos trabalhadores [nos EUA] cessaram de subir. Isto deveu-se em parte à
deslocação de trabalhadores pela computadorização
da produção capitalista. Os capitalistas também decidiram
mudar mais produção para países estrangeiros a fim de
obterem maiores lucros. Como os empregadores passaram então a precisar
de menos trabalhadores nos EUA, puderam e concretizaram o fim da subida
histórica (1820-1970) dos salários americanos.
Contudo, a
produtividade dos trabalhadores
continuou a subir (mais máquinas, mais pressão e mais
técnica). Produziram sempre mais para os seus empregadores venderem,
ainda que os empregadores não lhes pagassem mais por isso. A
mais-valia
extraída (explorada) pelos empregadores capitalistas o valor em
excesso produzido por cada trabalhador sobre o valor pago a esse mesmo
trabalhador subiu. Os últimos 30 anos foram a
realização dos mais altos sonhos capitalistas. Contudo,
salários estagnados e mais-valias crescentes também mergulharam o
capitalismo americano na grave crise de hoje.
Os principais capitalistas de hoje os membros dos conselhos de
administração corporativos receberam a maior parte desse
rápido aumento de mais-valias. A forma como as distribuíram
molda a nossa história.
Uma enorme porção foi para
pagamentos a executivos de topo
. Outra porção aumentou dividendos
dos accionistas das corporações (que, afinal de contas elegeram
as administrações). Outras porções ainda,
financiaram a transferência de produção para fora do
país, o avanço da computadorização para reduzir
folhas de pagamentos e ainda lobbys para apoiar acções estatais
favoráveis (ex: redução dos impostos para a empresas e
permissão do aumento da imigração para baixar
salários).
As corporações depositaram mais-valias crescentes nos bancos. Os
bancos cresceram e
inventaram novos instrumentos financeiros para lucrar ainda mais com essas
mais-valias. Novos instrumentos incluíram títulos como
"obrigações de dívida colateralizada"
(dívidas relativas a hipotecas, cartões de crédito,
corporativas e empréstimos para estudantes); "credit default
swaps" (seguros desses novos produtos); e outros "derivados"
para distribuir os riscos da rápida multiplicação de novos
instrumentos de crédito entre aqueles com mais-valias para investir.
Devido a estes novos instrumentos operarem completamente fora das
regulações existentes, num
"sistema de crédito sombra"
, cada vez maiores riscos foram assumidos para a obtenção de
lucros cada vez maiores. Empresas especializadas como os hedge funds, surgiram
para investir os crescentes mais-valias corporativos e fazer explodir os
rendimentos de executivos nas sombras nebulosas da alta finança.
Fizeram-se enormes lucros nos últimos 20 anos, mas a exuberância
capitalista daí resultante, mais uma vez superou os seus limites.
Os lucros financeiros dependiam da subida do aumento das mais-valias, que
dependiam de salários estagnados. Os lucros financeiros também
dependiam do reverso da medalha dos salários estagnados, nomeadamente
dos
maciços empréstimos contraídos pelos trabalhadores
. Como o aumento do consumo tornou-se a medida do êxito pessoal na vida,
a estagnação dos salários desde os anos 70 tornou a
maioria dos trabalhadores americanos extraordinariamente vulneráveis
às novas ofertas de crédito para consumo. Entram aí os
bancos, implacavelmente, a oferecerem cartões de crédito,
empréstimos sobre a situação líquida das casas
hipotecadas, empréstimos a estudantes e muito mais. Os trabalhadores
endividaram-se numa soma recorde. Os bancos empacotaram essas dívidas em
novos títulos (os agora infames produtos MBS e CDO) e venderam-nos a
todos os que procuravam investir seu mais-valias crescentes.
Efectivamente, o capitalismo americano substituiu assim o aumento dos
salários pelo aumento dos empréstimos aos trabalhadores.
Tirou-lhes duas vezes: em primeiro lugar, o mais-valia que o seu trabalho
produziu; em segundo lugar, o juro sobre as mais-valias emprestadas de volta
aos mesmos. Este duplo esmagamento dos trabalhadores foi o fundamento do boom
americano entre os anos 70 até 2006.
Finalmente, a ascensão dos custos deste duplo esmagamento estrangulou o
boom. O endividamento crescente das famílias significava que
doenças, perdas de emprego e divórcios somavam-se agora,
agravando-a, a tragédia dos incumprimentos de dívidas. A subirem
firme e ameaçadoramente ao longo de 2007, os incumprimentos sobre
cartões de crédito, empréstimos para automóveis,
empréstimos para estudantes e
hipotecas
levantaram voo em 2008. As novas espécies de títulos baseados
nas dívidas dos trabalhadores começaram a perder valor nos
mercados. Bancos, hedge funds, e outros titulares desses produtos enfrentavam
perdas crescentes. As corporações que seguraram estes
títulos através de credit default swaps, etc não puderam
pagar quando o valores de muitos deles entraram em colapso. Os bancos tinham
de usar o dinheiro dos seus depositantes e tomarem emprestado ainda mais para
comprar tais títulos. As perdas dos bancos impediam-nos de reembolsar
aqueles empréstimos ou garantir o dinheiro dos seus depositantes. Os
mercados financeiros congelaram quando prestamistas e prestatários
deixaram de confiar
uns nos outros
e reduziram drasticamente as transacções. A quebra seguiu-se
à bolha após o boom, mais uma vez.
Os conselhos de administração corporativos americanos haviam
tomado três medidas interligadas para produzir esta sequência.
Congelaram o salário real dos trabalhadores, extraíram demasiado
mais-valia da sua produtividade crescente, e distribuíram essas
mais-valias crescentes de formas cumulativamente insustentáveis. A
exuberância capitalista irracional mais uma vez extravasou os seus
limites. O sistema capitalista de produção e
distribuição de mais-valias demonstrou-se mais uma vez
fundamentalmente propenso a crises.
Se este sistema capitalista tivesse sido substituído por outro, um em
que os trabalhadores que produziram a mais-valia em cada empresa também
funcionasse como o apropriador e distribuidor colectivo dessas mesmos
mais-valias, a história dos Estados Unidos desde os anos 70 teria sido
muito diferente. Trabalhadores que se apropriassem da sua própria
mais-valia provavelmente NÃO congelariam os seus salários reais
(consequentemente não haveria explosão da dívida relativa
ao consumo). Trabalhadores que colectivamente se apropriassem da sua
própria mais-valia provavelmente NÃO dariam imensos novos
pagamentos aos administradores de topo. A distribuição do
rendimento pessoal portanto NÃO se tornaria tão desigual ao longo
dos últimos 30 anos. Trabalhadores que se apropriassem da sua
própria mais-valia NÃO aplicariam imensas porções
da mesmo para transferir os seus empregos para o outro lado do oceano. E por
aí afora.
É claro que uma tal estrutura de classe teria suas próprias
contradições e problemas. Iria interagir com
instituições políticas de maneiras diferentes da forma
como o fazem nas estruturas de classe capitalistas. Igualdade de sexo,
sustentabilidade ambiental e muitos outros problemas ainda precisariam de
atenção, mas não seriam agravados, entretanto, pelo duplo
esmagamento acima mencionado.
Assim, as questões urgentes são: Irão as respostas a esta
última crise capitalista continuar a ignorar ou a negar o papel da
estrutura de classe no capitalismo? Será que a causa da crise a
permissão dada aos conselhos de administração capitalistas
para se apropriarem e distribuírem mais-valias permanecerá
não reconhecida? Se assim for, as perdas pessoais, políticas,
económicas e culturais infligidas por esta mais recente crise
capitalista falharão no ensino da lição chave: a
solução genuína exige progresso para além da
estrutura de classe capitalista.
[*]
Professor de Economia na Universidade de Massachusetts
Amherst. Autor de
muitos livros e artigos
, incluíndo
(com Stephen Resnick)
Class Theory and History: Capitalism and Communism in the USSR
(Routledge, 2002) e (com Stephen Resnick)
New Departures in Marxian Theory
(Routledge, 2006). Ver também o vídeo da palestra de Rick Wolff
"Capitalism Hits the Fan: A Marxian View"
:
<vimeo.com/1962208>
O original encontra-se em
http://mrzine.monthlyreview.org/wolff141208.html
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Tradução de
José Magalhães
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Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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