A sombra escura da insolvência paira sobre a Wall Street. Um jogador
importante, o Bear Stearns, já afundou, e aparentemente um outro gigante
do investimento pode estar no mesmo caminho. Está a ficar feio fora
dali. O chamado TED spread
[1]
, que mede a relutância dos bancos a emprestarem uns aos outros,
começou a ampliar-se ameaçadoramente, o que sugere que os
mercados de dinheiro pensam que mais um cadáver estará a flutuar
rumo à superfície um dia destes.
A desalavancagem em andamento das instituições financeiras e a
persistente degradação de activos deixa o Fed aturdido. Bernanke
encurralou-se a si próprio ao estender o mandato do Fed de forma a
incluir toda a gente na Wall Street com um endereço email e uma tigela
de mendigo. Agora ele assumiu a tarefa ainda maior de consertar a
canalização que mantém o crédito a fluir entre os
vários bancos de investimento. Boa sorte. Há muito mais
sofrimento pela prefente. O FMI espera que a conta final virá a ser de
US$945 mil milhões, o que significa para os bancos US$3 milhões
de milhões em empréstimos perdidos. Ao melhor ritmo do
próprio Bernanke, esta confusão poderia perdurar durante anos.
O fiasco dos subprime americanos desandou no que o FMI está a denominar
"o maior choque financeiro desde a Grande Depressão". Os
mercados de capital da América estão no congelador. O mercado de
títulos corporativos está congelado, os bancos estão
abalados com as suas perdas, e o mercado habitacional está em
ruínas. Ninguém está a comprar e ninguém
está a emprestar. Os negócios com acções privados
estão 75 por cento abaixo do ano passado e ninguém tocará
um mortgage-backed security (MBS) nem com uma vara de dez metros. A poderosa
roda das finanças modernas está a ranger até à
paralisação e ninguém sabe como fazê-la girar outra
vez.
Os consumidores americanos também estão a sentir o aperto. Os
cartões de crédito atingiram o limite máximo,
empréstimos a estudantes vencidos, pagamentos de carros com atrasos, e
hipotecas a entrarem em fase de arresto. Além disso, os salários
não mantiveram o ritmo da produção e o saldo
líquido dos empréstimos habitacionais foi encerrado. Agora que a
torneira do crédito foi fechada, o trabalhador americano está a
sofrer, mas ninguém está a oferecer-lhe uma
salvação ou mesmo uma ajuda, apenas umas poucas migalhas do
"pacote excedente" de Bush. Quinhentos dólares mal dá
para encher o tanque de um SUV de tamanho normal. Um novo inquérito do
Pew Reasearch Center, "Dentro da classe média Maus tempos
golpeiam a boa vida", mostra que as famílias trabalhadoras
estão endividadas até às orelhas e que menos americanos
"acreditam que estão a avançar" do que em qualquer
momento no último meio século. O estudo mostra também que
a maior parte das pessoas acredita que "é mais difícil
manter um estilo de vida classe média" e que "desde 1999, eles
não tiveram ganhos económicos". As famílias
médias estão a lutar apenas para pagar as contas.
É porque muitas pessoas compraram casas quando deveriam ter aberto
contas de poupança. Elas foram ludibriadas com a
especulação habitacional a fim de obter algum dinheiro.
Parecia um bom meio para ultrapassar salários estagnados e horas extras
mal pagas. Os sábios animadores da TV garantiam que "os
preços das casas nunca cairão". Era tudo conversa fiada.
Agora 15 milhões de proprietários de casas estão de
cabeça para baixo com as suas hipotecas e exactamente os mesmo peritos
estão a censurar os trabalhadores por falsificar os factos nos seus
formulários de rendimentos.
Não é de admirar que a confiança do consumidor tenha
caído para récordes de baixa. Os trabalhadores não
precisam lições sobre poupança de dinheiro, eles precisam
de um aumento. As pessoas importantes no Bear Stearns ainda estão a
jantar lagostas no Four Seasons enquanto os trabalhadores estão
simplesmente a tentar encontrar um caminho no meio do Inverno nuclear de
Greenspan. Onde está a justiça?
Já foram escritos volumes acerca da crise actual, subprime-isto,
subprime-aquilo. Tudo o que podia ser dito acerca de collateralized debt
obligations (CDOs) credit default swaps (CDS) e mortgage-backed securities
(MBS) já foi dito. Sim, eles são exóticas
"inovações financeiras" e, não, eles não
são regulados. Mas que diferença faz isso? Aquilo sempre foi
banha da cobra e sempre houve vendedores de banha da cobra. Greenspan
simplesmente elevou a barra um ponto, mas ele não é o primeiro
bufarinheiro e nem será o último. O que realmente importa
é a ideologia subjacente, que é a razão de fundo para a
libertação desta hidra que salta sobre a economia. Trinta anos
de gotejamento (trickle down), 30 anos de tagarelice sobre o lado da oferta
(supply-side), 30 anos de culto ao ídolo reaccionário Ronald
Reagan, 30 anos de implacável política anti-trabalho, mercado
livre, ortodoxia desregulamentada, que inchou o maior Zeppelin de saldo
líquido da história.
Agora a bolha está a assobiar no furo do dirigível e a fuga do
gás lança a devastação por todo o
planeta. Há tumultos por alimentos no Haiti, no Egipto e no Kuwait.
Onde quer que a divisa local esteja ligada ao dólar em queda, a
inflação está a levantar voo e as
perturbações a fermentarem. Os bancos europeus também
estão a listar o lixo apoiado por hipotecas que compraram de correctores
nos EUA e precisam de planos de salvação dos bancos centrais para
continuarem a flutuar. São mais partículas radioactivas
decorrentes da vigarice das subprime. Ministros das Finanças em todas
as capitais de todos os países estão a preparar-se para um
furacão tipo década de 1930 que poderia remeter as
acções para o crash e disparar os preços dos alimentos e
da energia para a estratosfera. E tudo isto pode ser rastreado às
doutrinas loucas do neoliberalismo. Estas são as teorias que guiam as
políticas monetárias "esprema-o-teu-vizinho" da
América e espalham a perturbação financeira em todas as
cidades e aldeias do mundo.
Os actuais comissários de bordo do sistema são incapazes de
consertar o problema porque eles representam os interesses das pessoas que mais
se beneficiaram com as rupturas. O mais recente "plano" de Paulson
para os mercados financeiros é um bom exemplo; nunca um esquema mais
pró-negócios e em causa própria foi colocado sobre o
papel. Gary North resume isto no seu artigo "Really Stupid Loans":
"Com a mais recente proposta do Federal Reserve System, apresentada ao
público pelo secretário do Tesouro Henry "Goldman
Sachs" Paulson, o Fed está a pedir ao governo dos Estados Unidos
para torná-lo o Grande Protector do Capital... As novas propostas
centralizarão o poder sobre as finanças nas mãos de uma
agência que é oficialmente dirigida pelo governo mas de facto
é dirigida pelos agentes dos maiores bancos de reserva fraccional. ...A
regulação por equipes de economistas do quadro permanente
não tornarão o sistema menos frágil. Ela o tornará
mais pesado no topo e menos flexível.
"Alguma versão deste plano provavelmente será aprovada no
próximo Congresso. Não importa se sim ou não, a
direcção é a mesma: rumo a uma economia controlada pelo
governo federal junto com os proprietários privados titulares dos meios
de produção, isto é, rumo ao fascismo".
(Gary North,
Really Stupid loans
)
Toda a questão é colocar os mercados sob o controle do Fed de
modo a que, quando surgir a próxima crise financeira (a próxima
vigarice), o Fed possa salvar os banqueiros e administradores de hedge funds sem
consultar o Congresso.
O plano de Paulson é um jogo de poder, nada mais. A máfia do
investimento quer tomar o comando de todo o sistema financeiro na sua
perfeição. Eles querem liquidar a SEC (Securities and Exchange
Comission) e qualquer outro cão de guarda do governo e colocar os bancos
de investimento, hedge funds e correctores no sistema de honra. É o fim
da transparência e responsabilidade as quais, naturalmente, já
são escassas.
NACIONALIZAÇÃO DA HIPOTECA
Actualmente, Paulson e Bernanke estão a expandir os balanços das
Empresas Patrocinadas pelo Governo (Government Sponsored Enterprises, GSEs) de
modo a que a Fannie Mae e o Freddire Mac subscrevam 85 por cento de
todas as hipotecas enquanto a FHA (Federal Housing Administration)
cobrirá mais 10 por cento. A
indústria da hipoteca está a ser nacionalizada para salvar os
compadres da banca enquanto o contribuinte é preso com outros US$4,4
milhões de milhões de empréstimos dúbios. Paulson
não se importa se o contribuinte será provisionado para a conta.
O que o incomoda é a perspectiva de que, em algum momento, os
trabalhadores exigirão salários mais altos para acompanhar a
inflação. Então irromperá todo o inferno. Paulson
and Co. prefeririam ver a economia perecer num holocausto deflacionário
do que acrescentar outra migalha ao salário dos trabalhadores. Ele e os
da sua laia travam a guerra de classe com muita seriedade; eis porque
estão a vencer. Mas a sua estratégia também cria
problemas. Quando os salários não acompanham a
produção, a procura diminui e a economia vacila. É o que
está a acontecer agora e Paulson sabe isso. Os trabalhadores
estão super-tensos e não podem comprar as coisas que fabricam.
Eles mal têm o suficiente para alimentar as crianças e encher o
tanque para o trabalho. Os gastos do consumidor (os quais representam 72 por
cento do PIB) estão em queda livre ao mesmo tempo que a bolha do saldo
líquido do Fed está a explodir.
O neoliberalismo tem um registo de vinte anos de produção de
exactamente as mesmas calamidades. Por que esta crise será diferente?
Por que deveriam os EUA ser poupados do mesmo tratamento predatório
aplicado a muitas outras vítimas da oligarquia corporativa global?
Após a explosão da bolha do saldo líquido do Fed, os
abutres corporativos atacarão e comprarão recursos vitais e
industriais por tostões.
O economista Michael Hudson antecipou muitos dos desenvolvimentos actuais nos
mercados financeiros numa entrevista admiravelmente presciente em CounterPunch,
em 2003, chamada
The Coming Financial Reality
:
Michael Hudson: "A livre empresa sob as condições
financeiras de hoje ameaça provocar uma centralização sem
precedentes de planeamento, não nas mãos do governo mas sim de
conglomerados financeiros e administradores do dinheiro. Quando o poder de
planeamento do governo é destruído ele fica disponível
para ser tomado, com um monte de exorbitâncias deixadas para os
políticos cujas campanhas eles apoiaram e que "descerão do
céu" para empregos muito bem pagos no sector privado, estilo
japonês, depois de terem efectuado o seu serviço para o novo
regime.
Pergunta: O regime financeiro não é constituído
senão por parasitas?
Michael Hudson: "O problema com parasitas não é apenas o
facto de eles sugarem o alimento e nutrição do seu hospedeiro,
enfraquecendo o seu poder reprodutivo, mas sim de que eles se apossam
também do cérebro do hospedeiro. O parasita engana o hospedeiro
levando-o a pensar que está a alimentar-se a si próprio.
"Algo assim está a acontecer hoje quando o sector financeiro
devora o sector industrial. O capital financeiro pretende que o
seu crescimento é formação de capital
industrial. Eis porque a bolha financeira é chamada
"criação de riqueza", como se ela fosse o que
reformadores económicos progressistas imaginaram um século
atrás. Eles condenaram a renda e o lucro de monopólio, mas nunca
sonharam que os financeiros acabariam por devorar os proprietários da
terra e os industriais. Os Imperadores da Finança venceram os
Barões da Propriedade e os Capitães da Indústria".
(Michael Hudson, "The Coming Financial Reality", Counterpunch,
entrevistado por Standard Schaefer.)
Bingo. Hudson não só explica como o capitalismo financeiro
está a inserir-se dentro da estrutura de poder governamental como
também prevê que a "formação do capital
industrial" que é a produção de coisas que as
pessoas realmente podem usar para melhorar as suas vidas será
substituído com complexos instrumentos de dívida e derivativos
que não acrescentam valor tangível às vidas das pessoas e
servem meramente para expandir a riqueza de uma bem estabelecida e cada vez
mais poderosa classe de investidores.
O capitalismo financeiro "devorou proprietários da terra,
industriais e afins" e criou uma galáxia de passivos sedutores os
quais são mascarados como activos. Contratos de derivativos, por
exemplo, representam mais de US$500 milhões de milhões
(trillion)
de transacções não regulamentadas de contrapartes, um
"sistema bancário sombra" completamente desligado da economia
"real" subjacente, mas suficientemente grande para remeter o mundo
para uma depressão cruel durante os próximos anos.
O objectivo deveria ser desmantelar este corrupto sistema Ponzi
[2]
, o qual simplesmente envolve a dívida numa fita, e reconstruir a
economia sobre um sólido fundamento do trabalho produtivo, da
solidariedade de trabalhadores e acima de tudo da redistribuição
do rendimento e portanto do poder de compra que agora foge do sistema e
flúi para os dois ou três por cento do topo.
O poder político tem ser tomado aos mandarins financeiros ou
então a disparidade de riqueza continuará a crescer e a
democracia definhará. Já vimos as nossas principais
instituições os tribunais, o congresso, os media e a
presidência poluídos pelo fluxo constante de
contribuições corporativas, as quais servem apenas os interesses
estreitos das elites.
Henry Liu expande esta ideia no seu excelente artigo
A Panic-stricken Federal Reserve
:
"Na década de 1920, a vasta disparidade de riqueza entre os ricos e
o assalariado médio aumentou a vulnerabilidade da economia. Para uma
economia funcionar com estabilidade numa escala macro, a procura total precisa
equalizar a oferta total. A disparidade de rendimento resultará
finalmente na deficiência da procura, provocando o excesso de oferta. A
extensão de crédito aos consumidores pode prolongar o
desequilíbrio oferta/procura mas se o crédito for estendido para
além da capacidade do rendimento para sustentá-lo, isto
resultará numa bolha de dívida que inevitavelmente
explodirá com sofrimento económico que pode ser aliviado apenas
através da inflação... Mais investimento normalmente
aumenta a produtividade. Contudo, se as recompensas da produtividade acrescida
não forem distribuídos razoavelmente para os trabalhadores, a
produção em breve ultrapassará a procura. A busca por
altos retornos num mercado em baixa procura levará a bolhas de
dívida com especulação generalizada ... Hoje, o
crédito pendente do consumidor excepto hipotecas habitacionais soma
cerca de US$14 milhões de milhões
(trillion),
aproximadamente o mesmo valor do PIB anual.
Voilà. Uma economia forte exige uma força de trabalho forte e
uma distribuição equitativa da riqueza. Quando o dinheiro
está concentrado em muito poucas mãos, o sistema política
atrofia e tornar-se indiferente às necessidades do seu povo. É
nessa altura que as leis e instituições do país são
remoldadas de modo a reflectir as ambições dos ricos e poderosos.
O sistema financeiro está a fazer exactamente o que foi concebido para
fazer, está a esmagar as décadas do experimento do gotejamento
(trickle-down). Programas sociais foram extintos, a infraestrutura civil
está em cacos, as protecções legais foram barbarizadas e
os direitos dos trabalhadores foram golpeados. Será de admirar que
estejamos embrulhados numa guerra invencível e que o sistema financeiro
esteja em bancarrota?
O único meio de romper a opressão da Comissão
Política financeira da Wall Street é nivelar o campo de jogo
através de maior distribuição de riqueza. Este é o
melhor caminho para reacender a democracia e tornar a América a terra da
oportunidade. E tudo isto começa por dar um aumento aos trabalhadores
da América.
12/Abril/2008
[1] Inicialmente, o TED spread era a diferença entre a taxa de juros
para três meses do contrato do U.S. Treasuries e o contrato de três
meses em Eurodólares representado pelo London Inter Bank Offered Rate
(LIBOR). Entretanto, desde que a Bolsa de Mercadorias de Chicago abandonou o
T-bill futures, o TED spread agora é calculado como a diferença
entre a taxa de juros T-bill e o LIBOR. O TED spread é uma medida de
liquidez e mostra o fluxo de dólares dentro e foram dos Estados Unidos
(Wikipedia).
[2] Ponzi: nome do vigarista que nos anos 30 montou um esquema tipo
pirâmide nos EUA, tal como o da D. Branca em Portugal.
[*]
fergiewhitney@msn.com
O original encontra-se em
http://www.counterpunch.org/whitney04122008.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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