Imagine um mundo devastado por uma praga e suponha que o Prémio Nobel de
Medicina é concedido a investigadores cuja carreira foi baseada na
suposição de que pragas são impossíveis. O mundo
teria sido ultrajado. É precisamente assim que nos deveríamos
sentir com o anúncio de ontem daqueles que receberam o Prémio
Nobel
2010.
Os três economistas académicos, aos quais foi concedido o
Prémio Nobel
2010 de Ciências Económicas, são sem dúvida
tecnicamente exímios, inovativos no modo como constroem os seus modelos
e, de facto, pessoas requintadas. Mas antes de lhes darmos um abraço e
aderirmos às suas celebrações, deixem-nos dar uma olhadela
à descrição oficial das suas contribuições
para a sociedade. Foi assim que o
Financial Times
(11/Outubro/2010) apresentou o acervo dos trabalhos dos três homens:
Peter Diamond, Dale Mortenson e Chris Pissarides:
[Eles] deram contribuições fundamentais para o entendimento de
como a oferta e a procura são atingidas quando há custos de
transacção ou de investigação envolvidos. ... As
teorias "busca e atinge"
("search and matching")
dos laureados mostram que não é suficiente ter compradores e
vendedores que possam em princípio concordar sobre um preço;
aqueles compradores e vendedores também devem encontrar um com o outro e
decidir efectuar uma transacção ao invés de procurar uma
combinação melhor. As transacções não
acontecem por si próprias mas sim após um processo de busca que
pode ser custoso e consumidor de tempo, descobriu a investigação.
Isto torna possível que os resultados dos mercados atendam a oferta e
procura bem, ineficientemente ou não atendam de todo. As
percepções dos laureados foram aplicadas, por eles
próprios e muitos outros investigadores, a um vasto conjunto de
mercados, incluindo o mercado habitacional, o de produtos financeiros e mesmo o
de escolhas de casamento. Mas a aplicação mais importante foram
mercados de trabalho. Fricções no emparelhamento de trabalhadores
e empregos significam que os mercados de trabalho podem ser ineficientes. O
mercado pode, em particular, produzir resultados nos quais o desemprego
persiste mesmo que haja trabalhadores que estariam dispostos a trabalhar pelo
salário que os patrões estariam dispostos a pagar.
E agora a tradução. Os três laureados passaram a maior
parte das suas carreiras a estudar o que acontece quando há empregos mas
os trabalhadores que os querem não podem encontrar os patrões que
gostariam de empregá-los; e vice-versa. Eles narraram casos, utilizando
elegantes descrições matemáticas, de como um patrão
Jack teria desejado contratar a trabalhadora Jill se ele tivesse sabido que
Jill é, de facto, bastante produtiva mas não a contratou porque a
pobre Jill não conseguiu convencê-lo de que é pela
razão de que está tão desesperada que trabalharia por um
salário tão baixo que "assinalaria" a Jack que, por
estar naquele desespero, ela possivelmente não poderia ser tão
produtiva como trabalhadora tal como afirma! Finalmente, um deles (Mortenson)
mostra os seus dentes mostrando que trabalhadores podem racionalmente optar por
se tornarem desempregados como uma "estratégia de
investimento": isto é, abandonarem um mau emprego em busca de um
melhor (uma actividade que pode necessitar ser um esforço a tempo
inteiro).
É interessante que estes três refinados economistas
matemáticos tenham uma coisa em comum, além do seu trabalho sobre
mercados de trabalho: na sua volumosa produção teórica
sobre desemprego e assuntos afins, não há nem a mais
mínima alusão ou menção a uma crise
económica, a qual pode disparar o desemprego em todos os sectores e para
todos os tipos de trabalhadores. Nem uma!
Daí, o paralelo da praga acima. Em 2008, pela primeira vez desde 1929, o
capitalismo entrou num paroxismo em grande escala. Milhões de pessoas
perderam os seus lares, ainda mais milhões perderam os seus empregos,
casas permanecem por vender e trabalhadores sobrevivem na terra de
ninguém do desemprego. Num momento em que mesmo o Sr. Bernanke
está preocupado acerca do impacto generalizado e da dinâmica
inexorável do desemprego, desde a indústria da
construção ao sector da alta tecnologia, estes três
economistas são premiados pelo trabalho sobre desemprego baseado em
modelos nos quais o desemprego em massa é simplesmente impossível.
Como pode ser isto? Minha simples afirmação é esta: A
teoria económica da corrente principal é o mais peculiar de todos
os fracassos teóricos. Ao contrário da astrologia ou da
frenologia, a teoria económica torna-se mais alternativamente poderosa
quanto maior a sua incapacidade para nos informar sobre o capitalismo realmente
existente. Como esta nota não é o lugar próprio para
explicar o mecanismo evolutivo preciso pelo qual os fracassos da teoria
económica alimentam o seu poder social sempre em expansão, basta
dizer, de forma pertinente, que a teoria económica retira o seu imenso
poder narrativo da:
a) Sua demonstrável ambição de explicar todo
fenómeno social (incluindo resultados fora do mercado) com a ajuda de
modelos que estão enraizados numa defesa ética de toda actividade
capitalista, se bem que negando estarem ali enraizados; e
b) Um processo audaciosamente circular de reforço mútuo:
fé nas suas suposições constitutivas, as quais
economistas manipulam continuamente de modo a esconder as
implicações dos seus modelos (e, muitas vezes, a sua
incoerência lógica) eles regem-se sem compromissos
com a lógica do capitalismo realmente existente. Ao tornarem-se
irrelevantes para o capitalismo, eles descobrem-se premiados com poder
institucional (e Prémios Nobel), o que ajuda (um cada vez mais
invisível) capitalismo a manter um embargo estrito a quaisquer
investigações sérias do seu próprio efeito sobre
pessoas e sociedades reais.
Neste ponto, sinto uma forte premência de enfatizar algo que a
Monthly Review
já sabe: se este mecanismo de retro-alimentação (entre os
fracassos dos economistas, a aptidão do capitalismo e o poder de
divagação dos economistas) permanecer opaco e não
examinado pelos dissidentes progressistas, o capitalismo e a teoria
económica da corrente principal continuarão a reforçar a
dominação um do outro na medida em que:
a) A teoria económica permanece inocente da lógica do
capitalismo, graças à cortesia de puras formas matemáticas
(como aquelas que os laureados do Nobel 2010 produziram), e
b) A lógica do capitalismo contemporâneo difunde-se mais depressa
e mais profundamente quando a teoria económica ajuda a que
permaneça invisível.
Muito possivelmente, nunca antes a história intelectual moldou um
triunfo ideológico desta magnitude a partir de uma sequência de
lamentáveis, mas poderosamente motivados, fracassos teóricos.
12/Outubro/2010
[*]
Professor de Teoria Económica e Director do Departamento de Economia
Política na Faculdade de Ciências Económicas da
Universidade de Atenas; autor de
The Global Minotaur: The True Origins of the Financial Crisis and the Future
of the World Economy
(a publicar);
Modern Political Economics: Making Sense of the Post-2008 World
(com J. Halevi e N. Theocarakis);
Game Theory: A Critical Text
;
Foundations of Economics: A Beginner's Companion
; e
Rational Conflict
.
O original encontra-se em
http://mrzine.monthlyreview.org/2010/varoufakis121010.html
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.