Estados Unidos: uma crise de ordem estrutural
por José C. Valenzuela Feijóo
[*]
I Uma crise cíclica e do padrão de acumulação
II O padrão neoliberal, traços básicos. O problema de realização que emerge
III Breve parêntesis: o modelo de Tugan e o seu contraste com o neoliberal
IV Como o neoliberalismo aborda o problema da realização
V Observação final
Notas
I Uma crise cíclica e do padrão de acumulação
A grande crise que se vem desdobrando desde 2008 certamente cobrirá todo
o ano de 2008 e, muito provavelmente, também todo o de 2010. A sua
profundidade e extensão começam já a recordar,
ominosamente, a grande crise de 29-33. Quanto às formas
geométricas que por vezes se usam para descrever a curva cíclica,
já ninguém pensa num vê maiúsculo (V), uma leve
maioria espera uma vogal como a última do alfabeto (U) bem suavizada e
uma parte crescente começa a temer um possível ele (L). E
além de profunda e longa, trata-se de uma crise que afecta o mundo
inteiro; ou seja, é também uma crise globalmente
sincronizada.
Mas há mais: a crise actual, inicialmente financeira e a seguir real,
tem toda a aparência de ser uma crise terminal, a do padrão
neoliberal que tem imperado nas últimas décadas. Qual é o
critério que permite sustentar que além de cíclica se
trata de uma crise do padrão de acumulação
neoliberal que tem imperado nos Estados Unidos e em boa parte do resto
do mundo desenvolvido e subdesenvolvido? Neste caso, sustenta-se que um "
ciclo perverso"
ou
"mal comportado"
é o sintoma mais claro de uma crise do padrão de
acumulação vigente. E o que se entende por um
"ciclo perverso"
? Habitualmente, em condições normais, quando o ponto de crise
inaugura a recessão, abre-se uma etapa em que além dos
traços conhecidos (quedo do investimento, do PIB, do emprego, etc),
também se começam a corrigir, gradualmente, os problemas que na
fase do auge desembocaram no ponto de crise. Por exemplo: se o problema crucial
foi uma queda da taxa de lucro provocada por um aumento dos salários
superior ao da produtividade, quando a recessão começa a operar o
desemprego estende-se cada vez mais. Com isso, debilitam-se as
organizações sindicais e o poder de regateio dos assalariados
enfraquece profundamente. No fim, o salário real desce e a
relação salário-produtividade vai-se reduzindo cada vez
mais. Dessa forma, a taxa de mais-valia eleva-se e, por fim, a taxa de lucro
recompõe-se, dando lugar à recuperação e ao
consequente novo auge. Em suma, temos que o ciclo capitalista assenta em causa
internas: o auge provoca problemas que desembocam na crise e na
recessão. Por sua vez, a recessão engendra processos que
recompõem a rentabilidade do capital e a consequente actividade
investidora. Através disso, termina por engendrar um novo auge. Isto
é o que se costuma qualificar como trajectória "normal"
ou "bem comportada" do sistema.
Contudo, a cada certo tempo, a recessão deixa de cumprir com
eficácia os seus trabalhos de limpeza e sanidade. Ou o que ela pode
cumprir já não basta para voltar a reanimar o sistema. Em tais
casos, fala-se de um "ciclo perverso". E o que este fenómeno
passa a mostrar é que o sistema está a reclamar uma
mudança maior, de ordem estrutural, para voltar a assumir uma conduta
dinâmica. Nestes casos, podemos suspeitar que se abre um período
de transição, a partir do padrão de
acumulação em vigor para outro padrão de
acumulação, um que seja capaz de resolver as
contradições que precipitam a crise final do padrão em
vigor.
O que implica uma mudança no padrão de acumulação?
Apontando as dimensões básicas do fenómeno teríamos:
a) mudança nos modos de produção,
distribuição e utilização do excedente
económico (no capitalismo, da mais-valia);
b) mudanças nos modos de relacionamento externo da economia. No caso de
potências imperiais como os EUA, redefinição dos nexos
tanto com as outras grandes potências como com a periferia (ou
pólo subdesenvolvido) do sistema;
c) mudanças na esfera política: no interior do bloco de poder,
deslocamento da fracção dirigente (hegemónica) por outra
capaz de encabeçar um novo estilo e mudanças nos mecanismos de
dominação. Ou seja, na relação bloco dominante
versus classes dominadas.
Tais mudanças, ainda que preservem a matriz básica do sistema,
são de ordem maior e costumam implicar turbulências
políticas maiores. E convém sublinhar:
i) a mudança não é casual nem responde aos impulsos
puramente voluntários. A mudança, na sua maior parte, vem
definida pelos problemas estruturais que o padrão posto em perigo
não foi capaz de resolver. Por exemplo: se um problema grave do velho
padrão era uma péssima distribuição do rendimento
(tanto que acaba por ser disfuncional ao próprio capitalismo), o
padrão de substituição, para poder funcionar e
consolidar-se, deve ser capaz de resolver tal problema;
ii) a classe ou fracção de classe capaz de encabeçar e
dirigir a mudança tão pouco é fruto do azar. Trata-se de
existir uma fracção de classe que, por sua
posição objectiva
na ordem económica vigente, opere com
interesses objectivos
que a levem a impulsionar a política exigida pela
implantação do novo padrão de acumulação.
Algo análogo vale para definir o bloco social que vai promover a
mudança.
Não é demais insistir: a mudança
sócio-económica também está submetida a leis
objectivas. O que de forma alguma implica negar o papel decisivo que deve jogar
o factor subjectivo, o das condições ideológicas e
políticas que exige a materialização da mudança.
II O padrão neoliberal, traços básicos. O problema
de realização que emerge.
A crise estrutural, sendo de ordem estrutural, exige liquidar o padrão
neoliberal.
Este padrão de acumulação caracteriza-se por alguns
traços centrais que convém recordar:
a) domínio, nas alturas do poder, do capital financeiro-especulativo;
b) grande aumento da taxa de exploração (ou taxa de mais-valia),
processo que, além disso, se apoia no alto grau de estancamento ou queda
dos salários reais. No último período, a taxa de
mais-valia chegou a uma magnitude de 3,63, cifra que é quase
"imprópria" e que, por ser demasiado elevada, pode-se bem
qualificar como economicamente "difuncional";
c) a partir do aumento na taxa de mais-valia, notável aumento do
excedente e, em especial, do potencial de reprodução ampliada (ou
relação excedente ao rendimento nacional). De facto, temos que
mais de três quartas partes do Rendimento Nacional (78%) passaram a
funcionar como excedente (ver Diagrama I);
d) um processo de investimento que se torna anémico, sobretudo para o
investimento aplicado nos sectores produtivos. Ou seja, muito ao
contrário do que coloca a teoria neoclássica dominante, a pior
distribuição do rendimento não incentivou nem a
poupança nem o investimento;
e) a conjunção do elevado excedente com os baixos níveis
de investimento origina um eventual problema de realização que
pode ser muito agudo;
f) no caso dos Estados Unidos, o gasto público não resolve o
problema: apesar de não o ter descido, o mesmo dogma neoliberal reprime
o seu eventual crescimento (salvo em períodos de crise maior como a que
começou a processar-se);
g) ao contrário do que costuma suceder com as grandes potências
imperiais, nos EUA o saldo externo é negativo. Isto quer dizer que os
mercados externos não operam como factor de realização e
sim, ao contrário, agravam o problema.
[1]
Os últimos dois pontos, o f) e o g), indicam-nos que os por vezes
denominados "mercados artificiais" (o público e o externo),
não resolvem o problema de realização provocado pelo dado
mais estrutural. Como mostra o Diagrama I, ou, se a tais mercados
acrescentarmos o gasto em investimento, apenas chegamos a uma quarta parte da
mais-valia que gera o sistema. Se não houvessem outros mecanismos, o
sistema ruiria estrepitosamente.
III Breve parêntesis: o modelo de Tugan e o seu contraste com o
neoliberal
Antes de continuar, convém introduzir um breve parêntesis. No
modelo neoliberal, combina-se uma taxa de exploração muito
elevada com um mirrado investimento real e produtivo. Por isso, emerge a
espiral da especulação financeira. Poderia verificar-se outra
combinação? À margem do modelo neoliberal é
possível, sim, outra articulação. Por exemplo: no que
podemos denominar "modelo à Tugan-Baranovsky" teríamos
também uma elevada taxa de exploração, mas unido a
processo de investimento muito forte.
Quais seriam os requisitos a serem exigidos por este padrão de
funcionamento? De acordo com o que mostra a experiência histórica
(além da lógica económica) tal estilo torna-se
viável se forem cumpridas duas condições básicas.
Primeiro, a existência de um pacote de
inovações tecnológicas maiores,
capazes de gerar efeitos de arrastamento muito fortes e que se estendam pela
maior parte da economia. Digamos, neste âmbito, que ao contrário
do que inicialmente se acreditava, a revolução tecnológica
no plano da indústria cibernética não chegou a ter os
efeitos de arrastamento que inicialmente eram supostos. E uma vez que estes se
enfraqueceram, a magnitude do problema de realização já
mencionado agravou-se consideravelmente: a economia caiu no esquema do
parasitismo acentuado em que se combina uma péssima
distribuição do rendimento, baixos ritmos de investimento real e
hipertrofia crescente do sector financeiro.
Segundo, uma
intervenção estatal activa.
Não se trata de intervenção genérica e sim de uma
muito precisa: a favor do desenvolvimento tecnológico e da
indústria pesada (de bens de capital, em especial). A
intervenção deve concretizar-se em termos de
criação de empresas estatais ou mistas e, no mínimo, de um
vasto apoio (por meio de subsídios, tarifas protectoras,
políticas de compras preferenciais, políticas de
qualificação da força de trabalho, etc) às empresas
que encabecem o processo. As quais, pela própria natureza das coisas,
devem ser grandes corporações de carácter monopolista.
Como que a regulação estatal, ao mesmo tempo que as favorece,
deve praticamente
obrigá-las
a uma agressiva política de investimento e crescimento.
Não é preciso assinalar, em tal contexto, que o desenvolvimento
deve orientar-se para os mercados internos, Departamento I (meios de
produção) da economia. E também para os mercados externos.
Pode-se ver de imediato o contraste entre este estilo e o neoliberal. Neste
também está presente uma alta taxa de mais-valia. Mas em vez de
investimento e crescimento, o que se consegue é desperdício,
especulação financeira e estancamento.
IV Como o neoliberalismo aborda o problema da realização.
No padrão neoliberal estado-unidense o excedente atinge níveis
elevadíssimos. Entretanto, o investimento privado, o saldo externo e os
gastos do governo só chegam a realizar uma escassa quarta parte do
excedente gerado. O qual, na ausência de outros gastos de
realização, poderia provocar um derrube estrepitoso da economia.
Algo que durante algum tempo não aconteceu.
Daí a pergunta: quais foram as saídas ou mecanismos que se
puseram em acção?
[2]
Primeiro, temos um crescimento brutal dos gastos improdutivos. Se somarmos o
consumo capitalista aos salários improdutivos, atingimos os 64% de
mais-valia total. E recordemos um dado básico: do ponto de vista dos
problemas de realização da mais-valia, os gastos improdutivos
possuem uma característica "virtuosa": tal como por exemplo o
investimento, operam como factores de procura, mas ao contrário do
investimento não funcionam aumentando a oferta de produtos.
Um segundo factor de ajuste tem a ver com o grau de utilização
das capacidades produtivas. Ou seja, com a taxa de operação. Os
problemas que emergem pelo lado das vendas reflectem-se, pelo menos num
primeiro momento, na queda da taxa de operação. Poderia
esperar-se que a descida cíclica desta taxa provoque uma descida do
investimento (ninguém se lembra de aumentar a capacidade instalada
quando há problemas de vendas), com o que, depois de algum tempo, seriam
recuperados os níveis de utilização normal. Mas o que se
observa, juntamente com a oscilação cíclica
previsível, é uma tendência
secular
para a descida no grau de utilização das capacidades produtivas.
Entrar num exame pormenorizado deste fenómeno é algo que
não cabe aqui. Por isso, limitamo-nos a indicar que parece estar
associado ao peso crescente das estruturas oligopolistas e à maior
instabilidade do crescimento.
Terceiro: a menor taxa de operação, ainda que seja como
fenómeno latente,
provoca um claro impacto negativo nos níveis de investimento. Por essa
razão, salvo se emergirem inovações tecnológicas
maiores e com grandes efeitos de arrastamento
[3]
, o investimento acaba por ir no compasso de uma procura muito pouco
dinâmica. E vale a pena sublinhar: o lento crescimento do investimento
está a assinalar que as capacidades de produção tendem a
acompanhar os mercados de venda. Por isso, a taxa de operação
apresenta-se-nos como recuperada, com níveis muito baixos. Mas isto
não significa que se esteja em tempos de bonanças e a prova disso
são justamente os anémicos ritmos do investimento.
A seguir, temos que os baixos ritmos do investimento traduzem-se
inevitavelmente em baixos ritmos de crescimento. Isto, não só em
relação a períodos anteriores como, muito especialmente,
em relação ao potencial de crescimento da economia. Além
disso, vale a pena insistir num aspecto decisivo:
se uma elevada taxa de mais-valia for combinada com um baixo nível de
investimento real e produtivo, a eclosão do capital financeiro
especulativo (com suas bolhas e tudo o mais) torna-se inevitável.
É a saída por enganosa e temporal que seja que o
sistema encontra perante tais circunstâncias. E que só pode ser
evitada se a elevada taxa de mais-valia se associar a uma onda de grandes e
importantes
inovações tecnológicos (com grandes efeitos de
arrastamento), unida a uma intervenção estatal forte e
desenvolvimentista.
Neste âmbito, convém recordar: no estilo neoliberal, é o
capital financeiro-especulativo que tende a impor a sua lógica ao
comportamento do conjunto da economia. E como o sector financeiro é
muito instável, o seu predomínio arrasta o conjunto da economia a
uma trajectória mais oscilante.
[4]
Esta crescente instabilidade é provável que esteja na base da
tendência descendente da taxa de operação. E com toda
certeza, também afecta negativamente a taxa de investimento.
Um quarto factor, muito importante, também ter a ver com o capital
financeiro e refere-se aos fortes processos de endividamento em que incorrem
empresas e famílias. No caso das empresas, temos um duplo e perigoso
movimento: do lado dos activos, cresce exponencialmente o peso dos activos
financeiros. Além disso, a relação passivos / capital
próprio vai para cima do que se considera normal e seguro. Por isso, o
nível dos passivos aproxima-se do nível dos activos. E se houver
um crack bursátil, os activos despenham-se (pelo peso dos valores
financeiros que detêm as empresas) e a quebra técnica torna-se
iminente. Para o problema da realização, o consumo adicional das
famílias, que era financiado pelo crédito, tem desempenhado um
papel fundamental. Algo semelhante vale para a construção
habitacional. E pode-se sustentar que sem este mecanismo da dívida a
economia já haveria ruído. Mas não é menos certo
que se trata de um mecanismo com limites claros e que, a partir de certo
nível, torna-se
extremamente perigoso e insustentável.
Estes limites já foram atingidos na crise actual. Por isso, temos que a
dívida funcionou como uma ajuda importante mas temporalmente limitada.
Mais ainda, na medida em que veio crescendo, veio-se incubando uma
explosão inevitável e de consequências muito graves.
Em suma, encontramo-nos com um remédio temporal que termina por ajudar
o paciente a morrer.
Um quinto factor é um "factor mentiroso" e refere-se à
especulação bursátil. Ou seja, ao investimento financeiro,
o que supõe operações com esses títulos de papel
que Marx denominou
capital fictício.
As operações circulatórias que têm lugar no
espaço financeiro costumam dissociar-se da economia real. Sobretudo,
quando o dominante é a busca de lucros de capital. Precisemos isto.
O que acontece quando algum agente económico compra um título
financeiro? Primeiro, essa compra não implica a venda de nenhum bem
intermédio, de investimento ou de consumo. Ou seja, não colhe
como factor de realização de nenhum componente do produto gerado
(não são produtos que se compram e vendem). Neste caso, o
dinheiro não se gasta para comprar meios de produção
(isto é, como investimento real) nem para comprar bens de consumo.
Segundo: o que busca o vendedor do título? O óbvio é que
ao desprender-se do título obtém dinheiro sonante. Ao mesmo
tempo, perde o fluxo de rendimentos futuros que esse título
(bónus, acção, etc) lhe permitiria. Por que o dinheiro
pode interessar-lhe? Em geral, podemos distinguir dois motivos
possíveis: a) necessidades de liquidez imediata por parte do vendedor;
ii) a possibilidade de ter lucros de capital.
O primeiro motivo (liquidez) pode corresponder ao manejo normal do capital de
trabalho; trata-se de créditos circulantes e de muito curto prazo. Por
isso, a venda do título implica uma compra muito recente e assim
sucessivamente. Trata-se simplesmente de tirar algum proveito de fundos
líquidos temporariamente disponíveis e de um processo
estritamente normal. Mas em outras ocasiões a liquidez procura-se porque
o processo de reprodução atolou e surgiu a crise. Fenómeno
ao qual já aludimos.
O segundo motivo é o que nos interessa e implica a conversão do
título financeiro em dinheiro pelos lucros que isto pode trazer. Ou
seja, o vendedor compara o preço de compra desse activo com o seu
preço de venda, percebe que a diferença é atraente e trata
de vender. Isto implica que o preço dos títulos está a
subir a certa velocidade e que os possíveis lucros de capital
obteníveis superam os lucros "normas" que proporcione o
título (juros, dividendos, etc). E o que vê o vendedor
também passa a perceber o comprador: este compra os títulos por
pura ânsia especulativa, para vender no futuro e conseguir os lucros de
capital. Gera-se assim uma espiral especulativa que pode atingir
dimensões insuspeitadas. Neste contexto,
o que manda é a especulação.
Além disso, a possibilidade desses lucros de capital está
associada à existência de uma bolha especulativa e, por esta via,
o dinheiro inicialmente investido (D) transforma-se num dinheiro incrementado
(D'), em que = lucros de capital. Aqui, o dinheiro
não é procurado como simples meio de compra e sim como
equivalente geral, como expressão concreta da riqueza universal.
[5]
Neste contexto, o especulador irmana-se ao capitalista industrial ambos
a perseguirem o valor incrementado, ou mais-valor , ainda que o
façam por caminhos muito diferentes. Um, dirigindo o processo de
criação do valor e do mais-valor; o outro, simplesmente
apropriando-se de um valor já existente.
Neste quadro, tratemos de situar-nos nas motivações dos
capitalistas, o industrial e o financeiro. Ambos buscam acrescentar seu
capital, obter os maiores lucros possíveis. O industrial consegue-o ao
vender as mercadorias que produziu, ao transformá-las em dinheiro.
[6]
Ao fazê-lo, sente-se satisfeito, com a sensação do dever
cumprido. Ou seja, ao realizar o valor das suas mercadorias e obter os lucros
do caso, também se "realiza" como pessoa, como capitalista:
cumpriu o seu papel. Que de passagem isto signifique também satisfazer
as exigências da reprodução macroeconómica do
sistema é algo do qual não está consciente e muito
provavelmente nem lhe interessa.
[7]
Quando ao capitalista financeiro, a sua missão na vida consiste em
"fazer dinheiro com dinheiro". Por isso, se tiver êxito nos
seus propósitos sente-se tão realizado como o capitalista
industrial: também cumpriu o seu papel. Neste sentido, podemos
considerar que
no plano microeconómico
as coisas são essencialmente semelhantes. Em suma, se o investimento
financeiro ou produtivo resultar rentável, os agentes do
caso estarão felizes (sem maus humores nem fígados decompostos,
Keynes dixit) e tenderão a continuar investindo, inclusive a escala
ampliada.
Pode também verificar-se uma situação diferente: que a
nível microeconómico as empresas industriais encontrem
dificuldades (vendas insuficientes, baixa rentabilidade, etc), ao passo que as
financeiras gozem de grande prosperidade. Marx assinalava que "pode
verificar-se uma acumulação, uma superprodução de
capital de empréstimo que só mantém conexão com a
acumulação produtiva no sentido de que se encontra em
relação inversa a ela".
[8]
No mesmo sentido, Sweezy escrevia que "o sector financeiro pode prosperar
ao passo que o sector produtivo continua estagnado".
[9]
Neste caso, temos uma situação macroeconómica que
apresenta dificuldades, eventualmente crescentes, o que prejudica a
dinâmica do sector produtivo. Ao mesmo tempo, um sector financeiro que
gera altos lucros atrai capitais expande-se cada vez mais: "o capital
emprestável, como qualquer outra mercadoria, vai para onde melhor
partido se tira dele".
[10]
Aqui, impera a euforia e quando na Wall Street há festa, os media
revivem o pobre Dr. Pangloss e encarregam-se dar a impressão de que tudo
anda bem para o melhor dos mundos possíveis. Mas isto não
é mais do que uma máscara que engana e que não se pode
eternizar, esta situação a longo prazo é
insustentável. Mas pode existir e até prolongar-se por um
período curto. Este é um primeiro ponto a sublinhar: a euforia
financeira provoca um efeito de
ocultamento
dos problemas enfrentados pelo sector real.
Num contexto como o descrito, o que denominámos satisfação
microeconómica (agora válida só para o sector financeiro)
combina-se com sérios problemas macroeconómicos, os que surgem no
espaço da realização. Mais precisamente, no espaço
financeiro os propósitos do lucro satisfazem-se, o sector não
atrai apenas os vultuosos recursos líquidos que não encontram
aplicação no espaço da produção.
[11]
Juntamente com isso cria-se uma
grande ilusão:
a de um capitalismo que gera lucros e não sofre problemas de
realização. Por outras palavras, ao efeito de ocultamento
segue-se, como se fosse a sua sombra, o efeito da ilusão. A ocultar-se o
aspecto problemático do sector real, só se visualiza a euforia do
financeiro e passa-se a acreditar que toda a economia vai bem. É como o
espelho da madrasta da Cinderela: apresenta como belo o que está
gangrenado. Esta ilusão, além disso, possui certa
força inercial.
Quer dizer, os problemas da economia real podem-se agravar sem que cheguem a
afectar, instantaneamente, o sector financeiro.
[12]
Enquanto dura a ilusão, a euforia prolonga-se e os problemas reais
parecem silenciados e mascarados. Opera aqui um
desfasamento temporal
cuja extensão está muito conectada à
duração da bolha especulativa. Por isso, neste período
pode-se gerar a impressão de que "as coisas estão bem".
Ou seja, opera a ilusão já mencionada e por isso falamos de um
"factor mentiroso":
não resolve os problemas mas parece fazê-lo.
E enquanto durar esta aparência, maior será a
mistificação que envolve a opinião pública. Ao
mesmo tempo, maior será o tamanho da explosão e da crise.
V Observação final
Em termos históricos, o capitalismo foi o que é porque soube
conjugar a obtenção de lucros (mais precisamente, a
apropriação
do excedente), com a
produção
desse excedente: "o capital é a tendência permanente a criar
mais-valia", dizia Marx.
[13]
Quase do seu próprio início, o sistema assinalou aos
capitalistas que os seus lucros eram determinados em alto grau pela mais-valia
que eram capazes de produzir nos seus estabelecimentos fabris. Além
disso, aprenderam que esta mais-valia estava muito associada aos níveis
de produtividade que podiam alcançar. Por outras palavras, os agentes do
capital tomaram consciência que alcançar os maiores níveis
de produtividade era um requisito chave para aceder a lucros altos e
crescentes. Em simultâneo, que a maior produtividade do trabalho estava
altamente dependente da "densidade de capital" (activos fixos em
relação à população ocupada) e que esta se
elevava tal como a absorção do progresso técnico
na medida que a acumulação de capital era maior.
Não foram assim as coisas nos antigos modos de produção,
como o escravocrata e o feudal, nos quais a apropriação
desligava-se da produção do excedente. Em geral, nestes sistemas,
os titulares do excedente tinham pouco ou nada a ver com a sua
produção. Inclusive, em termos dos valores morais que a classe
alta manejava nesses tempos, a vinculação ou contacto com o
espaço da produção era algo desonroso, impróprio de
gente com linhagem. Por isso, deparamo-nos com os baixos ritmos de crescimento
da produtividade e do produto típicos de tais sistemas. Algo que
contrasta muito com o alto dinamismo histórico do capitalismo.
Contudo, a história parece apresentar novidades. Quando emerge a
hegemonia do capital financeiro (que é o caso no modelo neoliberal), a
apropriação e a produção dissociam-se em grau muito
elevado e o sistema tende estagnar, a abdicar do que foi a sua tremenda
força histórica. É o que temos examinado e que nos mostra
o crescente parasitismo e a decadência histórica deste modo de
produção.
Os problemas que precipitaram a crise actual são de ordem estrutural.
Poderiam abrir caminho a uma solução anti-capitalista, mas as
actuais condições políticas do mundo (sobretudo dos EUA)
não facilitam esse trânsito. Em todo caso, se nos Estados Unidos
não se abre a passagem para um reordenamento estrutural, a crise
não será superada. Em resumo, o grande país do norte deve
remover o estilo neoliberal e avançar para um novo tipo de capitalismo,
para um novo padrão de acumulação que conjugue uma melhor
distribuição do rendimento, o impulso ao sector produtivo e o
controle-restrição do capital financeiro. Além disso,
cuidar da melhoria do seu saldo externo (algo que provocará
sérios diferendos com outras potências e com países
periféricos em ascensão). Tudo isto, no âmbito de uma nova
e forte intervenção estatal e da correspondente mudança ou
deslocação da força dirigente e hegemónica no bloco
de poder.
Os tempos que vêm, sem dúvida serão turbulentos: quando os
grandes gigantes se retesam e procuram modificar o seu modus vivendi, todo o
mundo se vê abalado e arrastado para a mudança. E que saibamos, na
história nenhuma mudança estrutural ou de ordem maior foi feita
com suavidade e bons modos. O conflito e a violência, desde sempre, foi a
"parteiras" do novo na história. E não é coisa
de ignorar, no sonho, esta evidência que mostra o decurso dos nossos
tempos. Do que se trata, como sempre, é que opere a favor do progresso
histórico, tanto no centro como na periferia do sistema.
Ao cabo de várias décadas de conservadorismo, as mudanças
estruturais voltam a colocar-se na ordem do dia. E em vez de temê-las,
devemos assumi-las com o compromisso e a alegria que todo progresso
histórico nos deveria insuflar.
NOTAS
1- Este é um problema muito importante que merece um exame especial que
não faremos aqui. Tem a ver com o parasitismo crescente da economia
estado-unidense, suas debilidades produtivas, a competição
externa e a facilidade com que tem financiado o seu défice. Como
já foi bem dito, aqui não corre nenhum FMI obrigado a ajustes
extremos.
2- Os números, para os EUA, são mostrados no Diagrama I.
3- Hipótese muito sublinhada por Paul Sweezy.
4- Ver Howard J. Sherman y David X. Kolk, Business Cycles and
Forecasting, cap. 14. HarperCollins, N. York, 1996.
5- Só actua como
capitalista,
como capital personificado, dotado de consciência e de vontade, na
medida em que as suas operações não têm mais motivo
propulsor senão a apropriação progressiva de riqueza
abstracta. C. Marx, El Capital, Tomo I, pág. 109.
FCE, México, 1974.
6- Naturalmente, ao vendê-las a um preço superior ao seu
preço de custo capitalista.
7- O capitalista, não se propõe, em geral, a promover o
interesse público, nem sabe até que ponto o promove (...);
só pensa no seu próprio lucro; mas neste como em muitos outros
casos, é conduzido por uma mão invisível a promover um fim
que não entrava nas suas intenções". A. Smith,
La riqueza de las naciones, pág. 402. FCE, México,
1981.
8- C. Marx, El Capital, Tomo III, pág. 464.
Edição FCE citada.
9- P. Sweezy y H. Magdoff, Estancamiento y explosión financiera en
Estados Unidos, pág. 111, Siglo XXI, México, 1987.
10- Walter Bagehot, Lombard Street, ob. cit., pág. 49.
Edição citada.
11- Como vem ocurrendo en Estados Unidos, inclusive atraem-se capitais
líquidos do terceiro mundo.
12- Como diversos autores já sublinharam, ao contrário do que
supõe o corpus neoclássico, os agentes económicos
não reagem instantaneamente à mudança dos parâmetros
em jogo. Na sua conduta há um componente inercial muito importante.
13- C. Marx, Elementos fundamentales para la crítica de la
Economía Política (Gründrisse); Tomo I, pág.
277. Edic. Siglo XXI, México, 1980.
[*]
Do Departamento de Economia da Universidade Autónoma do
México - Iztapalapa.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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