O sistema financeiro dos EUA, a bolha da dívida e o cancro da
desregulamentação excessiva
por Rodrigue Tremblay
[*]
|
|
"É justiça poética que as pessoas que fermentaram
esta mixórdia tóxica porfim acabaram por beber um bocado
dela".
Warren Buffett, investidor americano
"Através de um contínuo processo de inflação o
governo pode confiscar, secreta e anonimamente, uma parte importante da riqueza
dos seus cidadãos".
John Maynard Keynes (1883-1946)
"O novo dinheiro que entra na economia não afecta todos os actores
económicos por igual nem influencia todos os actores e económicos
ao mesmo tempo. O dinheiro recém criado deve entrar na economia num
ponto específico. Geralmente esta injecção
monetária chega através da expansão do crédito pelo
sector bancário. Aqueles que recebem este novo dinheiro em primeiro
lugar beneficiam-se a expensas daqueles que o recebem só depois de ele
ter serpenteado através da economia e de os preços terem tido
oportunidade de ajustar-se".
Friedrich A. Hayek (1899-1992), economista austríaco
|
Quando o presidente do Fed,
Ben Bernanke
, diz que a situação
económica está a pior, é melhor que acredite nele. De
facto, os mercados de crédito nos EUA estão a entrar em colapso
debaixo dos nossos olhos, e não se vê quando
isto acabará, muito menos de quando reverterá.
1- Os
principais indicadores económicos
da economia dos EUA estão em queda;
2- O sentimento de
confiança do consumidor
está em queda quando as retiradas sobre hipotecas estão a secar;
3- Os números do
emprego
estão em queda;
4- O relatório de Janeiro de 2008 sobre a
economia de serviços
dos EUA indica que a mesma contraiu-se no princípio do ano pela primeira
vez em 58 meses;
5- O número de novos
desempregados
ainda é perigosamente elevado;
6- A
crise habitacional
está a ganhar vapor; os banco têm de
colocar nos seus balanços perdas cada vez mais elevadas devido às
subprimes, minando portanto as suas bases de capital e conduzindo muitos deles
à beira da insolvência;
7- As
agências de classificação de crédito
estão sob sítio;
8- Os títulos de companhias de garantia de seguros estão em vias
de perderem as suas classificações triplo A e algumas
estão à beira da bancarrota;
9- O
mercado de títulos municipais
, com US$2,6 milhões de milhões
(trillion)
está prestes a mergulhar, se e quando os seguradores de títulos
não os arrastarem;
10- O
mercado corporativo dos empréstimos alavancados
(leveraged)
está desbaratado;
11- O mercado de mais de um milhão de milhões de dólares
de
hipotecas e títulos apoiados em dívidas
pode entrar em colapso completo se os maiores segurados de hipotecas
estado-unidenses
continuarem a sofrer perdas lancinantes;
12- Grandes
hedge funds
estão a perder dinheiro numa escala elevada e
estão a sofrer uma corrida sobre os seus activos;
13- Nos EUA, a
dívida total em percentagem do PIB
é superior a 300 por cento, um nível récorde (N.B.: em
1980 era 125 por cento!);
14- E, finalmente, o mercado à escala mundial de centenas de
milhões de milhões (trillion) de dólares em
derivativos
poderia implodir a qualquer momento, se demasiadas instituições
financeiras forem abaixo durante os próximos meses, pois a maior parte
destas transacções são negócios
inter-instituição.
Há uns poucos positivos desgarrados, tal como o facto de que o
produto manufactureiro
parecer estar a levantar-se muito bem, pois o dólar
desvalorizado estimula as exportações, mas o quadro
económico global permanece negro. Isto é uma homenagem à
capacidade de resistência da economia dos EUA.
Toda esta confusão começou no princípio dos anos 2000, e
mesmo muito antes no principio dos anos 1980 quando Fed e a SEC adoptaram uma
abordagem de não tocar nos mercados financeiros, guiados pela nova
religião económica de que "os mercados não podem
errar". O que estamos a testemunhar é o fracasso de
aproximadamente trinta anos das chamadas políticas económicas
conservadoras a cavaleiro da dívida e da desregulamentação.
Deve-se entender que o recente
problema da subprimes
começou
realmente em 2000, quando a agência de classificação de
crédito Standard & Poors emitiu um pronunciamento a dizer que o
financiamento hipotecário de casas "montado nas costas"
("piggyback"),
quando uma segunda hipoteca é tomada para pagar a entrada de uma
primeira hipoteca, provavelmente não conduziria a mais incumprimentos do
que mais hipotecas padrão. Isto encorajou instituições de
empréstimos hipotecários a relaxarem as suas práticas de
empréstimos, indo tão longe como emprestar sobre hipotecas com
nenhum pagamento inicial de qualquer espécie, e até mesmo adiar
pagamentos de capital e juros por algum tempo. E com o Fed e a SEC a olharem
para o outro lado, foi dado um passo fatal. Os bancos e as suas
subsidiárias decidiram seguir novas regras tóxicas e arriscadas
de operação bancária.
Na verdade, apesar de os bancos tradicionalmente tomarem emprestado a curto
prazo e concederem empréstimos a longo, eles deram um novo passo
gigantesco: começaram a transformar empréstimos a longo prazo,
tais como hipotecas, empréstimos para carros, estudantes, etc em
empréstimos a curto prazo. Realmente, eles caíram no
negócio do alquimista de entrouxar juntos empréstimos a prazos
relativamente longos dentro de pacotes que cortaram às fatias dentro de
instrumentos de crédito mais pequenos que tinham todas as
características de papel comercial a curto prazo, mas estavam a carregar
rendimentos mais elevados. Eles então venderam estes novos
structured investment vehicles
(SIVs), por uma comissão, a
toda espécie de investidores que estavam à procura de rendimentos
mais altos do que as magras taxas que estavam a pagar as alternativas. E, uma
vez que os bancos estavam por trás destes novos activos financeiros, as
agência de créditos deram-lhes uma classificação
AAA, o que permitiu aos fundos de pensão regulados e às
companhias de seguros investirem neles, acreditando que eram tanto seguros como
líquidos. Ficaram prontos para um choque. Quando a bolha
imobiliária explodiu, o valor dos activos reais por trás dos
novos instrumentos financeiros começou a declinar, puxando o tapete
para fora dos
asset-backed paper market
(ABCP) que estavam por baixo, os quais
tornaram-se ilíquidos e tóxicos. Como praticamente não
há qualquer comercialização com os novos instrumentos,
ninguém sabia o verdadeiro valor do papel, e portanto ninguém e
estava desejoso de comprá-lo. Esta crise de confiança agora
permeou outros mercados de crédito e está a ameaçar todo o
sistema financeiro à medida que o contágio se propaga.
Ainda em 2003-04, o então presidente do Fed, Alan Greenspan, não
era o menos preocupado com a bolha da hipoteca imobiliária financiada
pela subprime mas estava ao contrário a encorajar pessoas a sacarem
hipotecas com taxa ajustável, apesar de as taxas de juro estarem numa
baixa de trinta anos e estarem prestes a aumentar. Mesmo no fim de 2006, o
recém nomeado presidente do Fed, Ben Bernanke, manifestou não
estar preocupado com a bolha imobiliária, dizendo que preços
elevados eram apenas um reflexo de uma economia forte. Note bem, isto
aconteceu mais de um ano depois de o mercado imobiliário ter atingido o
pico, no Verão de 2005. A história registará que o Fed e
a SEC nada fizeram para prevenir a pirâmide da dívida de atingir
os níveis perigosos a que chegou e que está agora a esmagar a
economia.
Num espaço de tempo mais longo, quando se olha o
gráfico fornecido pelo Bureau of Economic Analysis (BEA) dos EUA que
mostra a
importância das dívidas pendentes
(corporativas,
financeiras, governamentais e mais as pessoais) em relação
à economia, fica-se impressionado pelo facto de que este rácio
permaneceu em torno dos 1,2 do PIB durante décadas. Então,
alguma coisa grande aconteceu no princípio da década de 1980, e o
rácio começou a ascender, apenas com uma ligeira pausa nos meados
da década de 1990, até atingir o actual nível com falta de
ar de 3,1 vezes do PIB, aproximadamente 200 por cento mais do que costumava ser.
A adopção de
cortes fiscais maciços
a par com
políticas de gastos deficitários do governo, e políticas
de desregulamentação, por parte de
Reagan
e subsequentes
administrações republicanas, culminando tudo num modo grotesco
sob a actual administração, contribuiu maciçamente para
esta
bolha da dívida
sem precedentes. Levou muitos anos para construir
a pirâmide da dívida, e levará muitos anos para
desfazê-la e reduzir esta montanha acumulada de dívida a uma
dimensão mais administrável.
Este é o grande quadro por trás desta crise. Ela é muito
maior do que a crise das caixas económicas (S&L) na década de
1980, a qual parece diminuta em comparação com a actual. Eis
porque penso que esta crise prolongar-se-á pelo menos mais uns poucos
anos, possivelmente até 2010-11.
22/Fevereiro/2008
[*]
Professor emérito de Teoria Económica na Universidade de
Montreal. Autor de
The New American Empire
e de
The Code for Global Ethics
(ainda não lançado). Responsável pelo sítio web
www.thenewamericanempire.com/
e pelo blog
www.thenewamericanempire.com/blog
. Contacto:
rodrigue.tremblay@yahoo.com
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|