A deriva ambiental
Ponto de partida
Ter certezas é reconfortante. Ter dúvidas é prova de vida.
É prova de que se está atento às mudanças, que se
está inserido no infinito processo de dúvidas que se tornam
certezas e de certezas que são abaladas por dúvidas. O conforto
das certezas favorece o desenvolvimento da fé; e a fé não
se discute.
Há demasiadas certezas à esquerda, demasiada fé. E quando
a realidade desmente as certezas é a realidade que está errada,
porque não se acha prescrita no receituário de um pensador
político, diminuído ao papel de guru, pelo clero da esquerda.
Pode extrair-se uma amostra de dimensão variável a partir do
enxame de questões que a esquerda das rotinas não sabe ou,
sobranceira, ignora, porque não incluída nos manuais; ou, pior
que tudo, não coloca, por conveniência material dos seus
mandarins. Essa esquerda para gozar do conforto do encosto aos financiamentos
públicos, rodeia-se, empanzina-se de certezas.
De facto, não se pode ter tudo: e essa esquerda prefere, decididamente,
a barriga cheia e a cabeça vazia. Do lado de fora, no mundo, milhares de
milhões trabalham e sofrem, ignorando-a quando não a desprezam.
Para gáudio dos poderes do capitalismo.
Sabemos todos que o capitalismo não é eterno; sobretudo quando as
suas incapacidades o transformam em cataclismo. No seu âmago, o
capitalismo tem a perfeita noção das suas dificuldades e joga
decididamente, tudo na sua sobrevivência, como em medidas para que a
multidão se distraia dessa realidade.
Compete à esquerda criar e acelerar as condições para que
o capitalismo seja visto como dejecto e a multidão decida, sobre ele,
puxar o autoclismo da História.
Entre o acima referido enxame de questões que necessitam de ser
colocadas e discutidas para o reforço da ligação da
esquerda com os movimentos sociais, seleccionaram-se dez questões:
O pensamento único
A grande concentração da produção de
informação e de conteúdos pretende gerar uma forma
única de pensamento, alicerçado na inelutabilidade do
capitalismo, sobretudo na sua versão neoliberal, de endeusamento da
concorrência, do espírito empresarial e do mercado.
Pretende-se um mundo configurado e feliz na adopção daquele
pensamento único, ocultando-se a contestação ou, quando
tal não é possível qualificando-a de terrorismo. A grande
aposta dos media são fait-divers, as desgraças
ocasionais ou a vida cor-de-rosa da beautiful people e debates
políticos semelhantes à discussão das virtudes da
água benta sobre a água comum.
A escola, mormente o ensino universitário, pretende colocar no mercado
produtos reprodutores desse pensamento único e onde
prepondera a ausência de espírito criativo e crítico.
O principal veículo de liberdade informativa e de pensamento está
na internet que, por isso, está a ser objecto de formas engenhosas de
controlo, por parte de uma aliança entre os governos e as
indústrias de conteúdos.
O modelo social europeu
Durante umas décadas o capitalismo deu um tratamento de
excepção aos povos ocidentais, violentando muito mais e matando
alegremente os restantes. Com a globalização e as
deslocalizações, está em curso uma
homogeneização da exclusão e da exploração a
nível global, pelo que o modelo social europeu faz parte da
História.
Propor um modelo especial privilegiado para os europeus, não
extensível aos outros povos é a aceitação das
divisões e da hierarquia promovida pelo capitalismo. É um
comportamento aristocrático, neocolonial, racista.
Porque não um projecto de modelo social mundial, baseado na
extinção do capitalismo?
O fim das nações
O que existe realmente são os povos e as suas culturas, enquadrados
tardiamente em nações para que as burguesias pudessem apossar-se
do trabalho de um vasto conjunto de gente, privatizando-os, separando-os dos do
outro lado da fronteira.
Com as nações vieram os nacionalismos para irmanarem
trabalhadores e capitalistas sob uma mesma bandeira, mas nunca iguais quer no
capítulo dos sacrifícios quer no dos rendimentos.
As esquerdas tradicionais sorveram lentamente o veneno patrioteiro,
reproduzem-no e praticam um internacionalismo folclórico e
hipócrita quando ostentam um proletários de todos os
países, uni-vos. E vão repetindo as práticas
nacionais de contestação, evitando a conjugação e
articulação das lutas nos diversos países, entreabrindo
portas por onde se esgueira o chauvinismo e o racismo.
O carácter global da produção de bens e serviços,
segmentada em termos de processo técnico e geograficamente une, como
nunca antes na História, todos os trabalhadores do planeta, tornando
despiciendas as razões iniciais da constituição das
nações. Estas, no entanto vão subsistindo como elementos
essenciais de fragmentação e estratificação dos
trabalhadores, como instrumentos de controlo da multidão; mas,
enquadradas por instituições internacionais, onde se tomas as
decisões estruturantes do capitalismo global.
União Europeia
A UE constitui uma experiência pioneira da globalização,
criando uma hierarquia de povos tendo no vértice
instituições irrelevantes (parlamento europeu) ou profundamente
anti-democráticas (as restantes), sob o alto comando dos capitais
financeiros alemães e franceses (zona euro) e ingleses.
À medida que se vão desenvolvendo áreas comuns mais
aberrante se torna a configuração política e a
gestão económica da UE, baseada nos sacrossantos
princípios da bondade do funcionamento do mercado e da
concorrência. Não admira que nunca tenha havido uma verdadeira
solidariedade geradora de redução das desigualdades regionais ou
sociais; que a crise financeira se tenha articulado com o baixo crescimento
impulsionado pelas deslocalizações, criando dificuldades novas
nas periferias sul e leste; que seja incipiente o sentimento europeu por parte
dos povos integrados na UE.
A saída do euro ou da UE, sendo opções cujos impactos
reais não estão estudados nem discutidos, sobretudo à
esquerda. Na entrada na UE, a esquerda pouco se fez ouvir, apesar dos
princípios anti-democráticos da decisão e vigentes nas
instituições integrantes, também tocada pelo
espírito desenvolvimentista, moderno, adoçado pela
promessa dos milhões de ajudas, rapidamente malbaratadas, por um
patronato culturalmente indigente e um mandarinato tão cúpido
quanto impune.
É estranho agora, num momento particularmente difícil, de
rápido empobrecimento colectivo, que a esquerda não coloque
aquelas questões na agenda.
O Estado
Nada se faz ou acontece sem a presença voraz e autoritária do
Estado e dos seus corruptos e ineptos donos. Como capitalista colectivo sempre
foi o elemento viabilizador da rentabilidade dos grandes negócios do
capitalismo privado, de hierarquização dos capitalistas.
Mesmo num contexto de crise em que o Estado se assume como um carrasco da
multidão, há uma esquerda que piamente defende um virtuoso Estado
de bons, expulsos os maus, como nas histórias infantis.
Essa pretensa separação entre o Estado e os capitalistas, essa
esperança face ao comportamento do Estado gera na multidão uma
tolerância que desarma as lutas contra o capitalismo e de que este
é o único beneficiado.
Entretanto o Estado cresce, rapina, torna-se avaro no cumprimento das suas
obrigações sociais estatuídas solenemente nas leis, sempre
em nome de princípios e prioridades onde os cidadãos não
constam
Uma democracia para consumidores
Os cidadãos, no modelo vigente, dito democrático, não
escolhem alternativas políticas de organização social;
escolhem pacotes de vigaristas que, como coisa mais óbvia e trivial,
lhes pedem um cheque em branco, em troca de promessas que nunca cumprem. Quando
se escolhe um desses pacotes, durante anos a única
intervenção que aos cidadãos é concedida é a
de assistir aos falsificados torneios televisivos, entre dois actos de consumo.
Há uma esquerda que aceita passivamente que se confunda este rodopio de
carrossel com democracia, assumindo também a postura messiânica de
ungidos pelo voto, sabendo-se de antemão, que os parlamentos são
câmaras de ressonância, alimentadas pelos Estados com mordomias e
recursos financeiros. Nessas instituições pastam mandarins de
vários partidos, sóbrios e apartidários (?) zeladores das
leis e corruptus vulgaris para todos os gostos e tonalidades, em
constante rotação de cargos.
Um autoritarismo crescente
À vigência de uma democracia de plástico corresponde um
crescente autoritarismo da parte do Estado e nos locais de trabalho; um tempo
de chumbo que prenuncia um novo fascismo. O empobrecimento, o desemprego em
massa, repressão laboral sob a forma de lei, o encarecimento do acesso
à educação, à saúde e há
habitação, a ausência de segurança na doença
e na velhice, a juntar ao endividamento para toda a vida acentuam a
precariedade da vida, muito para além da inerente à biologia.
As resistências activas ou passivas e as possibilidades
tecnológicas de controlo social (bases de dados, videovigilâncias,
a utilização de cartões diversos em actos triviais)
evidenciam a grande desconfiança e insegurança por parte dos
poderes.
Por outro lado, o crescimento económico anémico que caracteriza o
Ocidente há muito tempo, contribui para a acentuação das
desigualdades e o desenvolvimento de um vasto e diversificado sistema
securitário físico, legal e incorporado psicologicamente, a que
se chama sociedade de controlo.
Os excedentes de vidas humanas
As possibilidades do capitalismo em gerar meios em quantidade e qualidade
evidenciam-se parcas, apesar dos imensos recursos físicos e
tecnológicos existentes. Assim, o volume actual de pessoas e o aumento
da sua longevidade, torna a população humana exagerada para a
satisfação da infinita cobiça do capital.
Há toda uma lógica de redução da
população do planeta, já definida em planos nacionais e na
prospectiva demográfica, sendo instrumentos para o efeito: a
redução da natalidade, a privatização, a
rarefacção e o encarecimento dos cuidados de saúde, o
aumento das jornadas de trabalho e da idade de saída da vida laboral, a
neutralização como seres humanos de aposentados,
desempregados e pobres, objecto de todas as discriminações e
abandonos, o desinteresse por enormes massas urbanas constituídas por
gente expelida dos campos, ou por populações atingidas por
doenças como a sida ou a malária
Está em curso um redimensionamento da população mundial
que, embora de aplicação a longo prazo, tem vertentes que
constituem um verdadeiro genocídio, lento e não mediatizado, que
tem o seu ponto mais visível na Palestina e em Gaza, mais
particularmente.
Militarismo
Onde a UE se vem mostrando activa é no capítulo da
militarização, da interpenetração das
funções militares com as áreas da segurança, todas
sob o chapéu largo, mas roto, da ameaça terrorista, arquitectada
no Pentágono e materializada num produto fora de prazo, a NATO, entre
outras instâncias.
À medida que a supremacia ocidental sobre os recursos mundiais é
contestada pela pujança económica dos chamados BRIC, a
superioridade militar da NATO, onde avulta o domínio dos EUA, torna-se
cada vez mais, o instrumento essencial da procura do controlo dos recursos
energéticos para a manutenção daquela supremacia.
Essa militarização tem subjacente uma elevada
concentração da indústria de armamento, uma
subalternização do aparelho policial e de segurança
interno, um crescimento dos gastos militares e a banalização da
utilização de armas de destruição massiva, mormente
nucleares. Tudo como forma de controlo dos abastecimentos energéticos e
dos corredores de transporte das potências ditas emergentes.
O cerco da China e da Rússia, as ameaças veladas ao Brasil
já lançaram ou poderão lançar novas guerras e
conflitos nas suas proximidades.
A preponderância de uma lógica nacionalista e provinciana torna a
esquerda institucional alheia à ligação entre a crise
económica, a ofensiva anti-laboral e a militarização das
sociedades.
A deriva ambiental
Um sistema económico e social cujos protagonistas são capazes de,
paulatinamente, irem destruindo o habitat humano é irracional e, esses
protagonistas são estúpidos.
Se existe um campo vasto de aplicação de energias
renováveis para a produção de electricidade e aquecimento,
a mesma é retardada pela intervenção dos Estados a favor
das grandes empresas eléctricas e dos bancos, impedindo a
democratização da sua utilização.
A segmentação da produção mundial e o menosprezo
pela utilização dos recursos locais promove enormes gastos
energéticos no transporte, sobretudo de combustíveis
fósseis. De modo idêntico, o primado dos interesses capitalistas
conduz a formas de mobilidade urbana altamente poluentes, consumidoras de
energia, promotoras de um urbanismo caótico e que culmina na
redução da fluidez dessa mesma mobilidade.
Finalmente, a utilização da água, a sua
contaminação, o esgotamento dos solos, a
desflorestação, a desertificação, o degelo, revelam
a incapacidade de um sistema social baseado no lucro de tornar, a longo prazo,
sustentável a vida no planeta.
Não há verdadeiras soluções dentro do capitalismo.
E toda a análise dos problemas actuais, todas as formas de
actuação da multidão e das organizações
políticas e sociais devem ter, como pano de fundo, a existência do
capitalismo e como instrumento de actuação a
ligação dos vários problemas entre si e uma perspectiva
anti-capitalista.
20/Julho/2010
[*]
grazia.tanta@gmail.com
Este e outros textos em:
http://www.scribd.com/group/16730-esquerda-desalinhada
http://www.slideshare.net/durgarrai
www.esquerda_desalinhada.blogs.sapo.pt
http://esquerda2011.blogspot.com/2010/07/pensar-esquerda-sem-vacas-sagradas.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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