Um ou outro ou ambos?
por Jim Kunstler
O grande debate entre aqueles que velam junto ao leito da Economia Moribunda
é se o desastre que observamos à nossa volta será
resolvido através de um crash ou de uma ruína financeira em
câmara
lenta. Parece-me que em todas as camadas do sistema estamos sujeitos a ambos
os desenlaces em papel comerciável, legitimidade institucional,
solvência individual, actividade produtiva, emprego real, comportamento
do "consumidor" e recursos energéticos. Algumas coisas
estão em vias de crash, tal como já escrevi.
O dólar está a perder cerca de um centavo a cada três
semanas contra outras divisas. Um centavo não parece muito, mas se
mantiver aquele ritmo por mais um ano a "divisa de reserva" do mundo
tornar-se-á o papel higiénico de reserva do planeta. Os
preços do petróleo estão prontos para entrar no reino dos
três dígitos e o efeito psicológico disto pode ser chocante
junto a 200 milhões de infelizes motoristas. O valor das casas de
papelão e vinyl não há dúvida que está a
afundar. Naturalmente, os números do governo quanto ao índice de
preços no consumidor e ao emprego são em geral
descartáveis por falta de credibilidade. Mas qualquer pessoa que
ultimamente tenha comprado um saco de cebolas e um frasco de geleia sabe que os
preços caminham para cima nos corredores dos supermercados, e tantos
migrantes ilegais mexicanos foram empregados no boom habitacional do Sunbelt
[1]
que a sua ausência após o desastre não ficará
registada em qualquer gráfico.
É difícil descrever o que constitui a parte principal do que
está em andamento nos mercados financeiros mundiais pela simples
razão de que tudo foi deliberadamente concebido para ser abstruso e
contingente de modo a que os correctores
(traders)
ficassem demasiado intimidados e não perguntassem o que aquilo
representava e a cada vez mais terrífica suspeição
é de que grande parte sejam papéis sem valor. Com isto refiro-me
ao espectáculo de aberrações globais de derivativos,
"jogos" confeccionados sobre hipotéticas
"posições", credit default swaps, arbitragens em
"diferenciais" imaginados, equações elegantes, hedges,
promessas, algoritmos executados por robots, e contas "fora dos
livros" registadas nas Ilhas Cayman. Provavelmente todas estas
aberrações, de uma forma ou de outra, são apenas
ludíbrios uma vez que não dependem de actividade produtiva.
Num nível mais fundamental, estes "investimentos" mutantes
eram derivados de um comércio muito tangível em
empréstimos e hipotecas feitas com bocados de carne e sangue, mas mesmo
estas são apenas a última numa longa espiral de
"bolhas" em série, ou frenesins de mercado baseados em
expectativas irreais. E isto conduz ao próprio âmago real de
escolhas deficientes, irresponsabilidade fiscal e fiduciária,
políticas deliberadamente enganosas, malfeitorias criminosas e abandono
generalizado de padrões de comportamento aceitável por parte de
pessoas com autoridade. Um bocado de observadores atribui isto ao
espírito Gordon Gecko a descoberta na década de 1980 de
que "a cobiça é boa", o que significava difundir o
espírito primitivo de que a vida é trágica.
Seja como for, o comércio em entidades de investimento mutantes parece
estar a entrar agora em colapso, quando a sua inutilidade em termos de mercado
(em contraposição àquela em termos teóricos) se
torna manifesta. Os maiores possuidores deste lixo estão a perder a
capacidade de esconder as suas perdas, mas agora reina a suspeita de que as
perdas são muito maiores do que os maciços múltiplos
milhares de milhões relatados até então pelos tipos da
Merrill Lynch, Citicorp e outros. Suponho que o que temos estado a ver
ultimamente é uma tentativa desesperada de manter as coisas juntas
apenas o tempo suficiente para sacar aqueles cheques dos bónus de Natal
de modo a que, quando a carta de despedimento finalmente chegar em 2008, pelo
menos alguns Big Boyz passearão para longe com bastante dinheiro para
comprar uma
hacienda
no Uruguai e pagar os salários de meia dúzia de estúpidos
seguranças privados a fim de guardá-la.
Mas devo dizer, com o risco de mais uma vez parecer extremo, que a
doença estrutural e sistémica no âmago das finanças
é agora tão severa que é difícil imaginar que
atravessemos o mês de Dezembro sem algum grande trauma nos mercados. De
facto, chego a prever uma queda de um milhar (ou mais) de pontos no Dow nesta
semana após o Dia da Acção de Graças
[2]
. A riqueza real "fora daqui" está a evaporar-se como um
gelado caído sobre o chão do quinto círculo do inferno.
Está a sair para fora do sistema quer os Big Boyz ou quaisquer outros
gostem ou não, e a sua ausência manifestar-se-á por si
própria.
Com o risco de soar ainda mais extremo, eu dificilmente acreditaria em
quaisquer relatos de que os gastos "dos consumidores" após o
Dia da Acção de Graças cumprirão as
esperanças e vontades dos funcionários económicos. O meu
pressentimento é que os americanos médios estão tão
atolados em dívidas que já não sabem o que fazer. Talvez
muitos deles talvez estejam desejosos de dar o último passo para a
insolvência fatal a fim de colocar um écran em plasma para a TV
debaixo da árvore de Natal e parecerem heróis diante das suas
famílias. Se isto acontecer, apenas implicaria num maior banho de
sangue nos incumprimentos de cartões de crédito que em Fevereiro
de Março assolaram o sistema, o que só estenderia a carnificina
dos instrumentos de dívida colaterizados também à cadeia
alimentar.
Este assunto tem provavelmente um longo caminho a percorrer, mesmo quando o
"comboio" das perdas se choca com o obstáculo imóvel da
realidade e os "vagões" das consequências descarrilam.
A ruína do comboio em andamento lento poderia varrer do seu caminho um
bocado de coisas familiares bancos, companhias, empresas patrocinadas
pelo governo, indústrias inteiras, economias inteiras, países e
mais, incluindo as perspectivas para a existência civilizada, se
dificuldades severas levarem à guerra, o que muitas vezes acontece.
Em certa medida, a velocidade e severidade do desastre do comboio financeiro
ocorrerá numa relação mutuamente reforçadora com
aquilo que acontece nos mercados de petróleo. A elevação
no preço do óleo é apenas o sintoma mais suave da
crescente instabilidade do sistema que determina a distribuição
do recurso mais crítico do mundo. Mesmo em face da
"destruição da procura", mudanças estranhas
estão a verificar-se no modo como os produtores de petróleo fazem
negócios. O declínio nas taxas de exportação e o
novo espírito do "nacionalismo petrolífero"
ocupará agora o centro do palco, mesmo se a economia dos EUA seja
capturada. Este fenómeno representará um novo ciclo nos assuntos
mundiais: a competição global pelos recursos remanescentes de
combustíveis fósseis.
Mais cedo do que tarde, surgirá o sintoma seguinte: pontos de escassez
pelos EUA e comportamento de manada. Será isto finalmente o que
acordará o público americano do seu longo sonambulismo (foi
Matthew Simons que utilizou a expressão pela primeira vez, a
propósito) quando se formarem filas nos postos de gasolina e os
temperamentos aquecerem e as pistolas forem sacadas dos porta-luvas.
Nos mercados financeiros e nas economias do países, não se trata
de um caso de isto ou aquilo. Trata-se de um caso de isto e aquilo.
26/Novembro/2007
[1] Região sul e sudoeste dos EUA
[2] Feriado americano, na quarta quinta-feira do mês de Novembro.
O original encontra-se em
jameshowardkunstler.typepad.com/clusterfuck_nation/2007/11/either-or-1.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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