Crise económica: Inflação e deflação em simultâneo
por Ismael Hossein-Zadeh
[*]
Enquanto o sector financeiro das economias capitalistas centrais desfruta uma
escalada inflacionária no preço dos activos, o sector real das
mrsmas, especialmente aquelas da Europa e do Japão, está a sofrer
deflação, isto é, estagnação e alto
desemprego.
E apesar desta ocorrência simultânea de inflação e
deflação parecer paradoxal, isso é assim apenas
superficialmente. Na realidade trata-se simplesmente do resultado lógico
das políticas monetárias neoliberais seguidas nestes
países: como estas políticas de economia austeritária
desde o colapso financeiro de 2008 têm drenado sistematicamente os
recursos materiais da esmagadora maioria dos cidadãos e canalizado estes
recursos para o sector financeiro, o resultado tem sido a compreensível
contracção do sector real em paralelo com a expansão do
sector financeiro.
Face a estes desenvolvimentos aparentemente contraditórios,
sabichões económicos e "peritos" financeiros ao leme do
aparelho que elabora as directrizes de política monetária fingem
perplexidade acerca de como as evoluções do mercado se têm
tornado cada vez mais "complicadas" e de como em consequência a
sintonia fina económica tornou-se mais desafiante. Contudo, tais
discursos pomposos são pretensões vazias. Na realidade,
não há absolutamente nada de "complicado" ou misterioso
acerca da expansão simultânea do sector financeiro e da
contracção do sector real. Na verdade, é totalmente
axiomático que se você sistematicamente
rouba Pedro para pagar a Paulo,
estará a empobrecer Pedro (os 99%) enquanto enriquece Paulo (os 1%).
O enriquecimento concomitante da plutocracia financeira e o empobrecimento das
massas do povo é análogo ao crescimento de um parasita no corpo
de um organismo vivo a expensas do sangue vital ou da nutrição
daquele organismo. O que é desconhecido para o público é
que a transferência parasitária do sangue económico de
baixo para cima não é simplesmente o resultado espontâneo
das operações da mão invisível do mecanismo de
mercado, ou das forças cegas da competição. Ainda mais
importante, a transferência é o resultado lógico de
políticas monetárias deliberadas que são carpinteiradas
pelas elites financeiras e seus mandatários ao leme da
elaboração da política económica da maior parte dos
países capitalistas. Como afirmou recentemente o economista
político Mike Whitney:
"Como grande parte das pessoas agora percebe, as acções
não triplicaram nos últimos cinco anos porque a economia
está em expansão. Com todos os demónios, não. A
economia ainda está de quatro e toda a gente sabe isso. A razão
porque as acções têm estado em grandes alturas é
porque o Fed acrescentou uns substanciais US$4 milhões de milhões
de tinta vermelha no seu balanço. Naturalmente, quando alguém
compra US$4 milhões de milhões em activos financeiros, o
preço dos activos financeiros tem de subir" (
fonte
).
A pretensa lógica por trás da incessante concessão de
dinheiro quase sem juros a instituições financeiras é que
quando estas instituições recebem dinheiro barato das
máquinas de impressão do governo elas, por sua vez, ofereceriam
crédito a baixo custo a industriais, estimulando com isso o investimento
e a criação de emprego no sector real da economia.
A política monetária tradicional/New Deal funcionou razoavelmente
bem enquanto constrangimentos regulamentares especialmente o
Glass-Steagall Act que foi imposto de 1933 a 1998 estipulava
estritamente os tipos e quantidades de investimentos que bancos e outros
intermediários financeiros podiam comprometer-se. Como aquelas
exigências regulamentares proibiam os bancos de se envolverem em
investimentos especulativos ou arriscados eles tinham pouco ou nenhuma
opção senão comportarem-se ou fazerem negócios
principalmente como bancos, ou intermediários financeiros, isto
é, canalizarem poupanças de depositantes e/ou dinheiro gerado
pelo governo para o sector real da economia.
Contudo, com a remoção sistemática dos constrangimentos
regulamentares, os bancos foram progressivamente abandonando ou marginalizando
seu papel tradicional como intermediários financeiros. Eles, ao
invés, agora investem principalmente na compra e venda de activos e
outras actividades especulativas, pois estes são muito mais lucrativos
do que simplesmente aceitar depósitos a certas taxas de juro e
então emprestá-las a taxas ligeiramente mais altas.
Esta mudança no comportamento ou função do sistema
bancário não só restringiu drasticamente o fluxo de
capital do sector financeiro para o real como de facto reverteu o fluxo de
capital entre estes dois sectores: há agora uma alarmante fuga de
capital do sector real para o financeiro em busca de taxas de lucro mais altas,
especulativas. A evidência mostra que (nos últimos anos)
administradores corporativos do sector real estão cada vez mais a
desviar seus lucros, bem como o dinheiro barato que tomam emprestado dos
governos (habitualmente através de bancos centrais de propriedade
privada), para a especulação ao invés da
produção. Como observei num artigo anterior a respeito,
"eles parece que chegaram a pensar:
"por que incomodar-me com o complicado negócio da
produção quando retornos mais elevados podem ser arrecadados
simplesmente a comprar e vender títulos?"
Esta constante transferência de dinheiro do sector real para o financeiro
é exactamente o oposto do que os decisores da política
monetária e na verdade toda a teoria económica
neoclássica/principal afirmam ou retratam acontecer: fluxo de
dinheiro do sector financeiro para o real.
Alguém imaginaria que estas mudanças drásticas nos
mercados do mundo real, as quais mostram quão gravemente economistas
convencionais (mainstream) falharam ao aferrarem-se às suas teorias
abstractas e em grande medida obsoletas, deveriam ter sacudido um pouco a
fé destes economistas na sua ortodoxia económica e levado a que
revissem ou ajustassem suas teorias tradicionais da oferta monetária, da
criação de crédito, da finança e do investimento.
Infelizmente, a fé no mecanismo de mercado e na ortodoxia
económica parece ser tão forte quanto a fé em qualquer
religião sobrenatural. Enquanto professores universitários ou
conselheiros de decisores políticos os economistas convencionais eles
continuam a ensinar as mesmas coisas e a repetir as mesmas teorias apesar das
economias fortemente financiarizadas, tal como o fizeram ao longo dos tempos,
ou seja, na era dos mercados relativamente competitivos e das estruturas
económicas industriais/manufactureiras de outrora.
Sob a dominação do capital financeiro, a política
monetária tem-se transformado cada vez mais num instrumento de
inflação do preço de activos, isto é, de
acumulação de ainda mais capital fictício nos bolsos
fundos da oligarquia financeira. Apesar de não ser reconhecida
abertamente, a lógica por trás da injecção sem fim
de dinheiro barato para dentro do sector financeiro tal como bombear ar
quente para dentro de um balão é uma tentativa desesperada
ou uma vã esperanças da parte de decisores da política
económica de que os chamados efeitos gotejamento
(trickle-down)
das bolhas de preços dos activos possam levar à
recuperação económica.
Reconhecidamente, os presumidos efeitos do gotejamento sobre a procura agregada
podem ter tido alguma validade nas etapas anteriores (industriais ou
manufactureiras) do capitalismo, em que a ascensão na riqueza das
nações também significava expandir a
produção (real) e aumentar o emprego. Contudo, na era das
economias fortemente financiarizadas, onde a forma dominante de riqueza
capitalista provém não tanto da produção real de
bens e serviços mas das bolhas de preços de activos, a teoria do
gotejamento perdeu qualquer validade mínima que possa ter tido em fases
anteriores do capitalismo.
Tristemente, decisores de política monetária, os quais frequentemente
são os mandatários das elites financeiras ao leme de bancos
centrais de propriedade privada (ao contrário das
percepções generalizadas, o US Federal Reserve Bank
também é de propriedade privada, seus accionistas são
bancos comerciais), não são afectados pelos desenvolvimentos
económicos do mundo real que tendem a contradizer suas teorias
para-religiosas. A sua lealdade é em primeiro lugar e acima de tudo para
com os interesses e as agendas dos seus patrões e benfeitores por
trás do palco aqueles que os alimentam, que os promovem e os
colocam no assento dos decisores monetários/económicos. Tendo
abandonado as políticas orçamentais e monetárias
tradionais/New Deal da gestão da procura, a inflação do
preço de activos tornou-se a política preferencial de
recuperação económica se não da
recuperação, então da prevenção de um
colapso económico.
Reféns dos banksters
Isto ajuda a explicar porque as economias da maior parte dos países do
núcleo capitalista tornaram-se reféns dos banksters, do seu
apetite insaciável por cada vez mais dinheiro barato. Estas
práticas de injecções continuadas de cash para dentro do
sector financeiro são obviamente o equivalente a pagamentos de resgate
aos banksters "demasiado grandes para cair", além de um medo
exagerado de que o fracasso deles levasse a um "colapso económico
cataclísmico". Isto também ajuda a explicar as
múltiplas renovações ou extensões
infindáveis da política da facilidade quantitativa
(quantitative easing, QE),
pois o término desta política está destinado a levar a
uma outra implosão financeira.
Como indicação deste vício destrutivo dos mercados
financeiros às generosas injecções de cash do Tio Sam,
recordemos como estes mercados entraram em queda livre nos meados de Outubro
diante da perspectiva de que a QE pudesse não ser estendida para
além de Outubro e de como imediatamente saltou outra vez diante da
notícias que o Fed na verdade continuaria as injecções de
cash para além daquela data isto, a QE3 seria continuada como
QE4. Eis como Mike Whitney descreveu aqueles dias turbulentos dos mercados
financeiros:
"Ao meio-dia [de 15/Outubro/2014], o Dow baixara 460 pontos antes de
arrastar-se para trás menos 173 pontos. Parecia que o mercado estava
pronto para mais uma chicotada de três dígitos na quinta-feira
[16/Outubro] quando o Fed interveio e começou a falar uma
extensão da QE3. Foi tudo o que foi preciso para apaziguar o nervosismo
dos investidores, cessar o colapso e remeter acções como foguetes
para o espaço. No fim da sessão de sexta-feira, todos os mercados
estavam outra vez no verde com o Dow registando uns impressionantes 263 pontos
naquele dia" (
fonte
).
Apesar de a política de extensão indefinida do QE (juntamente com
taxas de juro próximas do zero) poder temporariamente impedir os
mercados financeiros de implodirem, esta política simplesmente adia o
dia do ajuste de contas
mais ou menos como manter um paciente vivo em estado terminal
através de aparelhos artificiais
(life support).
E nisto jaz o aspecto fútil, na verdade trágico,
desta política: a obrigação de os decisores
monetários injectarem cash constantemente para dentro do sistema
financeiro a fim de impedir o sistema de entrar em colapso é
análoga à lógica do ciclista proverbial que tinha de se
manter a pedalar em frente ou então cairia.
Decisores monetários à testa de bancos centrais de departamentos
do tesouro, representando os interesses poderosos da grande finança,
fariam tudo o que pudessem para evitar cair no precipício, ou atrasar a
aproximação ao precipício. Ao assim fazer, contudo, eles
drenam os recursos económicos/financeiros da maioria esmagadora dos
cidadãos pela transferência daqueles recursos
(através de medidas de austeridade) para a oligarquia financeira. Andre
Damon (do World Socialist Web Site) resume os efeitos redistributivos desta
política monetária neoliberal:
"Os um por cento mais ricos da população mundial agora
controlam 48,2 por cento da riqueza global, mais do que os 46 por cento do ano
passado), segundo o mais recente relatório da riqueza global emitido
pelo Credit Suisse, a companhia de serviços financeiros com sede na
Suíça.
"Hipoteticamente, se o crescimento da desigualdade prosseguisse à
taxa do ano passado, os um por cento mais ricos para todos os fins
práticos controlariam toda a riqueza do planeta dentro de 23 anos.
"O relatório descobriu que o crescimento da desigualdade global
acelerou-se drasticamente desde a crise financeira de 2008, pois os valores dos
activos financeiros ascenderam ao passo que os salários estagnaram e
declinaram. ... Emma Seery, responsável pela Desigualdade na Oxfam, a
entidade beneficente anti-pobreza britânica, comentou: 'Este
relatório mostra que aqueles menos capazes em termos de recursos
têem de pagar o preço da crise financeira ao passo que a riqueza
inundou os cofres dos já muito ricos'.
"O estudo revelou que os 8,6 por cento mais ricos da
população mundial aqueles com um valor líquido de
mais de US$100 mil controlam 85 por cento da riqueza do mundo. Enquanto
isso, os 70 por cento da base da população mundial aqueles
com menos de US$10 mil em valor líquido possuem uns meros 2,9 por
cento da riqueza global.
"O crescimento da desigualdade está associado a uma alta mundial na
riqueza em papel, alimentada pelos milhões de milhões
(trillions)
de dólares bombeados para dentro do sistema financeiro pelos bancos
centrais via taxa de juro zero e polícias de 'facilidade quantitativa'.
...
"Como observou o relatório, 'A economia global na generalidade pode
permanecer letárgica, mas isto não impediu a riqueza pessoal de
aumentar durante o ano passado. Conduzida por ... preços robustos das
acções, a riqueza total cresceu 8,3% em todo o mundo ... a
primeira vez que a riqueza familiar ultrapassou o patamar dos US$250
milhões de milhões'.! (
Fonte
).
O que fazer?
A solução para a corrida do sector financeiro, segundo a maior
parte dos críticos liberais-keynesianos da
financiarização, é regulamentação, ou
re-regulamentação. Se bem que isto seria uma melhoria bem vinda
sobre o comportamento desestabilizador do capital financeiro desenfreado,
representaria apenas uma tentativa de solução a curto ou
médio prazo, não uma solução definitiva a longo
prazo. Pois, enquanto não houvesse controle democrático, as
regulamentações seriam minadas pelos influentes interesses
financeiros que elegem e controlam os decisores políticos e, portanto, a
política. A reversão dramática das extensas
regulamentações das décadas de 1930 e 1940, as quais foram
postas em vigor em resposta à Grande Depressão, para as
igualmente dramáticas desregulamentações de hoje, servem
como uma robusta validação deste juízo.
Outros críticos do capital financeiro descontrolado clamam pela banca
pública. Estes críticos argumentam que, devido à sua
influência económica e política, poderosos interesses
financeiros facilmente subvertem regulamentações do governos, e
assim reproduzindo periodicamente a instabilidade financeira e a
turbulência económica. Em contraste, eles argumentam ainda, bancos
no sector público podem tranquilizar melhor os depositantes quanto
à segurança das suas poupanças, bem como por directamente
aquelas poupanças no rumo da distribuição produtiva do
crédito e das oportunidades de investimento. Acabar as crises
recorrentes dos mercados financeiros exigem portanto colocar os
intermediários financeiros desestabilizadores sob propriedade
pública e controle democrático.
Apesar de a nacionalização de bancos comerciais poder mitigar ou
afastar as turbulências de mercado que se devem a bolhas e estouros
financeiros, ela não impedirá outra crise sistémica do
capitalismo. Isto inclui crises de lucratividade que resultam de níveis
muito altos de capitalização (ou altos níveis da
"composição orgânica do capital", na
expressão de Marx), da procura insuficiente e/ou sub-consumo, da
super-capacidade e/ou super-produção, ou da desproporcionalidade
entre os vários sectores de uma economia de mercado.
Além disso, enquanto o capitalismo prevalecer, e com ele a
distribuição desequilibrada do excedente económico, a
instabilidade financeira não pode ser arrancada pela raiz através
da nacionalização da banca. Pois apesar de a
nacionalização dos bancos tradicionais/comerciais poder abrandar
a fragilidade financeira, outros tipos de intermediários e
instituições financeiras estão prontos a levantarem a fim
de contornar a regulamentação e/ou nacionalização,
precipitando com isso a instabilidade financeira. Isto inclui todas as
espécies de bancos sombra (shadow banks) e empresas especulativas tais
como empresas de participações privadas (private equity firms),
mercados derivativos, hedge funds e outros mais.
Suprimir as crises sistémicas do capitalismo exige, portanto, mais do
que nacionalizar e/ou regulamentar os bancos; exige mudar o próprio
sistema capitalista.
08/Novembro/2014
Professor emérito de Teoria Económica (Drake University). Autor
de
Beyond Mainstream Explanations of the Financial Crisis
(Routledge 2014),
The Political Economy of U.S. Militarism
(PalgraveMacmillan 2007) e
Soviet Non-capitalist Development: The Case of Nasser's Egypt
(Praeger Publishers 1989). Também colaborou em
Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion
(AK Press 2012).
O original encontra-se em
www.globalresearch.ca/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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