A economia do dinheiro em troca de lixo
O sr. Bernanke propaga o fogo
Em 15 de Março, no show "60 Minutes" da CBS, o presidente do
Federal Reserve, Ben Bernanke, utilizou uma falsa analogia já
popularizada pelo presidente Obama no seu discurso do quase-Estado da
União. Ele comparou o sector financeiro a uma casa incendiada
bastante justo, pois o incêndio está a destruir imóveis, o
que leva a arrestos, abandonos, pilhagens (do fio de cobre e de qualquer outra
coisa recuperável) e certamente a uma devastação do valor.
O
problema com esta analogia está apenas no lugar em que o edifício
está situado, e o seu relacionamento com as "outras casas"
(isto é, o resto da economia).
O sr. Bernanke perguntou o que as pessoas deveriam fazer se um fumador
irresponsável ateasse fogo à sua cama de modo a incendiar a casa.
Será que os vizinhos deveriam dizer: "a culpa é dele, deixe
a casa queimar"? Isso ameaçaria toda a vizinhança com o
fogo, explicou o sr. Bernanke. A dedução, explicou ele, era que a
recuperação económica exigia um forte sistema
bancário e financeiro. E foi exactamente isto o que ele disse: A
economia não pode recuperar sem ainda mais crédito e
dívida. E isto por sua vez exige milhões de milhões
(trillions)
de dólares dados pelos "vizinhos" ao homem
irresponsável que deitou fogo à sua própria casa. É
aqui que a analogia descarrila.
Mas ao assistir "60 Minutes" a minha esposa comentou: "Isso
é só o que o sr. Obama disse na noite passada. Será que se
reunem para combinar a metáfora a popularizar?" Eles parecem querer
uma imagem que prenda os americanos no
apoio a uma política mesmo que não gostem dela e muitos tenham
vontade de deixar que a casa financeira (AIG, Citibank e Bank of
America/Countrywide) se incendeie.
O que há de falso nesta analogia? Para começar, casas
bancárias não estão na mesma vizinhança onde vive
a maior parte do povo. Elas são o castelo sobre a colina, a olhar a
cidade de cima para baixo. Elas podem incendiar-se e deixar o topo da colina
retornar "à natureza" ao invés de manter os de
baixo a fitá-la como um templo do dinheiro que os mantêm em
dívida.
Mais precisamente, é falsa a analogia com a política dos EUA. Com
efeito, Tesouro e o Fed não estão "a extinguir um
incêndio". Eles estão a tomar casas que não se
incendiaram, expulsando os seus proprietários e ocupantes, e
transferindo a propriedade para os acusados de "incendiarem a sua
própria casa". O governo não está a actuar no papel
de bombeiro. "Extinguir o fogo" seria cancelar as dívidas da
economia as dívidas que estão a
"incendiá-la".
Para o sr. Bernanke a "solução" para o problema da
dívida é conseguir que os bancos emprestem outra vez. Ele
está a
propagar
o fogo da dívida. O governo está a emprestar à
"vizinhança ameaçada" bastante dinheiro de modo a que
os clientes de créditos da "casa sobre colina" financeira
possam pagar os encargos estipulados dos juros devidos. Ela não
está de modo algum a incendiar-se; o dinheiro da vizinhança
(neste caso, dinheiro de impostos) é que está a ser queimado.
O sr. Bernanke explicou na audição de domingo à noite que
a sua política se destinava a ajudar a economia a retornar à
"normalidade". Completamente alinhado com aquilo que o sr. Paulson
estava a dizer no último Verão: a "normalidade"
é definida como um novo crescimento exponencial no volume de
dívida. Ele falava acerca da recuperação
"sustentável". Mas "a mágica do juro composto
" não é sustentável. Isto tudo é uma falsa
metáfora.
O sr. Bernanke deixou a seguir o âmbito da metáfora para dar uma
explicação absolutamente falsa da balança de pagamentos e
das próximas reuniões da Gang dos 20 na Europa. Na sexta-feira, o
primeiro-ministro da China exprimiu preocupação quanto à
saúde da economia americana, na qual a China reciclou aproximadamente
US$2 milhões de milhões dos seus influxos de dólares a fim
de impedir o yuan de subir de preço em relação ao
dólar. O receio é que apesar desta forte reciclagem de
dólares por parte de bancos centrais estrangeiros, a taxa de
câmbio dos EUA enfraqueça pois o défice da balança
comercial continua a aumentar e, igualmente grave, os gastos militares
estado-unidenses continuam a bombear dólares para dentro da economia
mundial quando a guerra se alastra rumo ao Leste, do
Iraque para o Afeganistão e o Paquistão.
Do modo como presidente do Federal Reserve explicou o problema na CBS, os EUA
têm de manter os seus mercados atraentes para os "poupadores
chineses". A imagem mais uma vez invocada é que há um mundo
com "excedente de poupança". Supõe-se que este tenha
inundado os grandes bancos e a Wall Street com tanto dinheiro que eles foram
obrigados a moverem-se para investimentos cada vez mais arriscados. "Eles
obrigaram-nos a fazer isto" era a mensagem não completamente
explicitada.
Alguém pensaria que o sr. Bernanke não sabe nada de nada acerca
de balanças de pagamentos ou de como funciona o sistema monetário
global. Eis o que realmente tem estado a acontecer: A própria economia
dos EUA bomba "poupanças" para dentro de bancos centrais
estrangeiros ao gastar no exterior com bases militares. (60 Minutes mostrava
máquinas empilhadoras robot a moverem cargas de US$40 milhões de
divisas dos EUA através do New York Reserve Bank do mesmo modo como
máquinas semelhantes tem estado a fazer no Iraque a fim de comprar
apoiantes locais e grupos políticos.) Os consumidores dos EUA
além disso compram mais do que o país está a exportar.
Quando estes excedentes de dólares são trocados junto a bancos
estrangeiros por divisas internas, os bancos devolvem-nos ao banco central
o qual fica com um problema.
Recordam-se de quando o antigo secretário John Connolly disse
"É nosso défice, mas seu problema"? Ele queria dizer
que os EUA estavam a gastar fundos (naquele tempo principalmente no Sudeste da
Ásia) que acabavam em bancos centrais estrangeiros, os quais enfrentavam
um dilema: Se deixassem "o mercado" manusear estes dólares, a
sua própria divisa ascenderia. Isso ameaçaria deixar o
preço das suas exportações fora dos mercados mundiais e
portanto provocaria desemprego interno. De modo que governos estrangeiros
optaram por reciclar os seus influxos de dólares mantendo-os em
dólares principalmente títulos do Tesouro dos EUA e
então, quando a oferta começou a esgotar-se, em títulos de
agências federais tais como a Fannie Mae e o Freddie Mac.
De modo que o "fogo" na esfera internacional eram os gastos militares
dos EUA e seu défice comercial. Isto não tem muito a ver com
consumidores chineses a pouparem demasiado. Os bancos centrais estavam a fazer
a quase-poupança, por estarem presos aos excedentes de dólares
dos EUA como a uma batata quente. Mas raramente se ouve responsáveis
públicos mencionarem o défice militar do país. Falam como
se as poupanças estrangeiras viessem primeiro, a seguir uma
decisão "baseada no mercado" para colocá-las na
economia dos EUA, "o motor do crescimento mundial". O que realmente
vem primeiro é o défice da balança de pagamentos dos EUA,
a bombear dólares excedentes para dentro da economia os quais os
bancos centrais estrangeiros veem-se obrigados a reciclar dentro da esfera do
dólar. (Isto é o fenómeno que discuto em Super
Imperialism: The Economic Strategy of American Empire, and Global Fracture.)
Quanto ao excedente de crédito que a Wall Street concede, ele é
criado a partir do ar. Pelo menos o sr. Bernanke foi claro acerca disto, quando
explicou que o Fed "cria depósitos" para os seus bancos
membros assim como estes bancos "criam depósitos" para os seus
próprios clientes com o teclado do computador.
A moral da história é que o público americano está
a ser alimentado com uma mitologia cuidadosamente carpinteirada (sem
dúvida "testada no mercado" com "grupos de resposta"
a fim de verificar quais as imagens que melhor funcionam) para enganá-lo
com mal entendidos acerca da natureza do problema financeiro de hoje
enganá-lo de forma a que as políticas de hoje façam
sentido e ganhem apoio eleitoral.
Mas esta mitologia é baseada em falsas analogias, não na
realidade económica. É concebida para fazer a Wall Street
aparecer como uma salvadora, não uma incendiária e pintar
o Fed e o Tesouro como protectores do bem estar dos cidadãos americanos
ao despejar milhares de milhões de dólares nos bancos cujas
apostas provocaram a crise.
Enquanto a entrevista do sr. Bernanke aos "60 Minutes" estava a ser
difundida, o governo estava a divulgar as contrapartes no lado vencedor do
casino da Wall Street nas apostas perdidas pela AIG. A fim de afastar o
repúdio generalizado dos eleitores a dar US$160 mil milhões
à AIG, o Tesouro finalmente divulgou os nomes das
"contrapartes" que acabaram com os fundos AIG pagos aos vencedores.
Confirmando rumores que tem circulado nos últimos meses, a
própria companhia do sr. Paulson, a Goldman Sachs, está à
testa da lista com US$13 mil milhões! A seguir vem a Merrill Lynch
(US$7 mil milhões), o Bank of America (US$4 mil milhões), o
Citigroup (US$23 mil milhões e o desprezível credor de
hipotecas-lixo Wachovia (US$1,5 mil mihões). Assim, como
secretário do Tesouro, o sr. Paulson revela ter representado não
os interesses dos EUA e sim os da sua própria firma e dos seus vizinhos
na Wall Street.
A estes vizinhos foram dados títulos do Tesouro dos EUA, em
transacções "dinheiro por lixo"
("cash for trash").
O resto da economia ficará a pagar juros sobre esta dívida
durante um século. Isto é o que provoca
"deflação da dívida". O rendimento é
desviado de gastos com bens e serviço a fim de pagar juros e impostos.
De modo que o Tesouro está a atear o fogo, não a extingui-lo.
17/Março/2009
[*]
Ex-economista da Wall Street, professor investigador na University of Missouri,
Kansas City (UMKC), autor de numerosos livros, inclusive
Super Imperialism: The Origin and Fundamentals of U.S. World Dominance
. Email:
mh@michael-hudson.com
O original encontra-se em
http://www.counterpunch.org/hudson03172009.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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