"O Capital no Século XXI"
Leitura crítica da obra de Thomas Piketty
Introdução
Apresentação geral da obra
Rendimento e Capital (primeira parte)
A dinâmica da relação capital/rendimento (segunda parte)
A estrutura das desigualdades (terceira parte)
Regular o capital no século XXI (quarta parte)
Porquê o livro de Piketty, quais os interesses que serve?
Conclusão
Introdução
O título do livro de Thomas Piketty,
O Capital no século XXI,
soa
como uma réplica de
O capital
de K. Marx. Este livro chamou a
atenção do
CUEM
na medida em que bate recordes de venda, vários milhões de
exemplares, e porque o seu autor foi largamente solicitado para comentar as
suas obras. Nos Estados Unidos esse livro suscitou um vivo debate mesmo nos
meios progressistas. O
New York Times
saudou Piketty como o economista rock-star e o
Financial Times
baptizou o livro como extraordinariamente importante enquanto os
prémios Nobel de Economia J. Stiglitz e K. Krugman acharam que se trata
da obra mais significativa do ano, "apta" a transformar o nosso
discurso económico". Na França, o autor foi muito solicitado
pelos media para comentar os acontecimentos económicos e mais
recentemente a situação na Grécia. Desse ponto de vista
recomendo a entrevista de Piketty por Iglésias, o líder do
Podemos, entrevista disponível na Internet e que aclara as
posições de Piketty e as do Podemos.
Daí a afirmar-se que Piketty renovou a ciência económica e
que ele é o Marx do Século XXI, não vai mais que um passo,
que alguns se apressaram a dar. Por exemplo, o jornal
The Economist
coloca-o acima de Marx: "Maior que Marx" declara.
A proximidade do título do livro com a da obra maior de Marx teve
provavelmente um papel nos comentários mais que elogiosos que acabo de
citar e numa miríade de outros ainda. O título é
evidentemente importante numa obra e chama a nossa atenção. Para
o leitor, no contexto da crise sistémica do capitalismo, é
evidente o interesse de compreender o que é o capitalismo hoje, quais
são as suas evoluções desde que este modo de
produção começou a desenvolver-se e evidentemente quais
seriam as soluções possíveis para sair de uma crise que
agita o mundo inteiro.
Digamos que a notoriedade assim adquirida, o sucesso popular da
edição, nos levou a interrogarmo-nos sobre o conteúdo da
obra, as teses que defende e as propostas que apresenta para a economia.
Mais uma razão para ir ao fundo das coisas e fazer uma leitura
crítica desta obra.
Apresentação geral da obra
Vou começar por uma apresentação rápida do livro
sem focar os pormenores e tentando mostrar a sua lógica interna. O livro
que comporta 950 páginas divide-se em quatro partes:
Rendimento e capital
A dinâmica da relação capital/receita
A estrutura das desigualdades
Regular o capital no século XXI
Se as três primeiras partes não parecem deixar aparecer um pendor
político muito forte, que é apenas aparente, a ultima é
claramente orientada para o que Piketty chama a "a retomada do controlo do
capitalismo". Na quarta parte, regular o capital no século XXI,
pág. 751 passa a mensagem central do seu pensamento: Podemos imaginar
para o século XXI, uma ultrapassagem do capitalismo que seja mais
pacífica e mais durável, ou devemos simplesmente aguardar as
próximas crises ou as próximas guerras, desta vez verdadeiramente
mundiais? Tudo está dito ou quase tudo, quem escolherá o
apocalipse guerreiro! O autor escolheu assim claramente o que ele chama a
ultrapassagem do capitalismo.
A escolha dos termos nada deixando ao acaso, tem de ser examinada. Para
já o conceito de "ultrapassagem do capitalismo", que
não é uma ideia nova, foi largamente utilizado no seu tempo por
R. Hue para justificar o abandono pelo PCF de uma orientação
revolucionária. O conteúdo é claro, as forças da
ciência e da técnica levam naturalmente a uma
transformação do capitalismo, que já não seria o
capitalismo conservando as suas características centrais em particular
as do mercado. Mas esta última profissão de fé reformadora
aponta o receio de que as forças sociais passem a reger de outra forma o
problema, ou seja por uma modificação profunda das
relações sociais. Sente-se aqui um certo receio de que o
reformismo não possa encontrar os meios políticos que permitam
manter o sistema capitalista.
Na sua introdução Piketty apresenta uma grande parte das
orientações que vão estruturar o seu discurso. De imediato
nota que: "a repartição das riquezas é uma das
questões mais vivas e mais debatidas hoje. Vejamos bem que se trata da
repartição das riquezas e não do sistema de
extorsão capitalista da mais-valia.
Lembremos que a riqueza não é o valor. O sistema capitalista
cria o valor a partir da riqueza que constituem o trabalho e os recursos
naturais.
Este conceito de repartição das riquezas não aparece por
acaso. É a chávena de chá quotidiana de todos os que
colocam deliberadamente o capitalismo como um universo inultrapassável
cuja reorganização - precisamente através desta outra
repartição das riquezas - bastará para lhe assegurar a
perenidade. Aliás todas as forças que querem manter o
domínio do capital ou julgam que não há outra
solução senão o seu desenvolvimento procuram focalizar o
seu discurso sobre esta famosa repartição das riquezas. A
própria Igreja, na sua doutrina social, faz dela a pedra angular da sua
marcha reformadora sem evidentemente pôr em causa o mundo de
exploração do trabalho assalariado pelos detentores do capital.
Lembremos também que Sarkozy queria uma nova partilha do valor
acrescentado entre o capital e o trabalho, desejo que rapidamente caiu no
esquecimento.
Nestas condições Piketty deve relegar Marx para a
situação de visionário cujas predições
não se realizaram. Partindo da ideia de que o capitalismo gera
desigualdades, matiza imediatamente esta evidência incontornável,
pelas contra-tendências que, segundo ele, estão em
acção no sentido de permitir que o capitalismo se desenvolva,
escrevendo na pág. 16 "o crescimento moderno e a difusão dos
conhecimentos permitiram evitar o apocalipse marxista, mas não
modificaram as estruturas profundas do capitalismo e as suas
desigualdades
Mas existem meios para que a democracia e o interesse geral
venham retomar o controlo do capitalismo e dos interesses privados, recusando
os recuos proteccionistas e nacionalistas." De que meios se trata? Vamos
apresentá-los na quarta parte e demonstrar os seus limites.
Nesta citação breve podemos notar uma grande
aproximação científica, ou seja a do interesse geral
utilizada a contrario da luta de classes, uma vez que acima do seu antagonismo
existiria uma finalidade que poderia reuni-los. Tendo estado alguns anos no
CESER Ilha de França
, posso testemunhar que este conceito de interesse geral não é
mais que a folha de parra dos interesses do patronato e dos que os servem. O
interesse geral é apenas o das classes dominantes e o dos seus
interesses próprios. Serve para arrastar as classes dominadas no que
é preciso chamar pelo nome a colaboração de classe. Claro
que a classe dominante deve levar em conta as relações de
força e é por vezes forçada a fazer concessões,
como em 1936, 1945 e 68, perante lutas populares poderosas mas sem nunca se
colocar fundamentalmente em perigo. De facto como retomar o controlo sobre o
capital se pela sua mobilidade ele puder escapar-se aos constrangimentos que
Piketty gostaria de impor-lhe.
Aquilo a que Piketty chama "a visão apocalíptica de
Marx" é a lei fundamental que este último demonstrou:
"a baixa tendencial da taxa de lucro". Segundo Piketty esta baixa
mataria a acumulação e levaria à revolta dos
trabalhadores. Mas, esse destino negro previsto por Marx não se
realizou! Como é necessária uma explicação para
esta não realização do apocalipse, Piketty atribui a Marx
uma falta profunda de lucidez sobre a realidade do movimento de
acumulação do capital pág. 28: "Marx negligenciou
totalmente a possibilidade de um progresso técnico e de um crescimento
contínuo da produtividade, força que permite equilibrar o
processo de acumulação e de concentração crescente
do capital privado".
É bastante divertido ler esta frase quando pelo contrário Marx
consagrou muita energia a mostrar o papel do desenvolvimento científico
e técnico na produção e no processo de
acumulação do capital. Ao contrário do que afirma Piketty,
a Tecnologia e a ciência desempenharam um papel importante no pensamento
de Marx. Ele escreveu muito a propósito das grandes descobertas
científicas da sua época. As matemáticas, a
termodinâmica, as descobertas de Darwin inspiram frequentemente as suas
propostas. Um exemplo, nos seus artigos consagrados à Ásia e
publicados em 1853, Marx analisa o papel da ciência e da tecnologia
inglesa no processo de destruição da sociedade indiana
tradicional e também no desenvolvimento do capitalismo têxtil em
Inglaterra.
Para terminar com a introdução notemos que Piketty envia
piscadelas de olho daqui e dali para mostrar que apesar da
reputação de homem de "esquerda" que entende
atribuir-se, não está fora da confraria dos economistas
ortodoxos, clássicos e neoclássicos, e digamos burgueses.
Afirma-nos: "A desigualdade não é necessariamente má
em si: "a questão das desigualdades depende das
representações dos actores".
Vejamos agora o desenvolvimento das quatro partes do livro.
Rendimento e Capital (primeira parte)
Nesta primeira parte Piketty coloca os parâmetros da sua
demonstração. Num primeiro tempo apresenta algumas
definições e as suas indicações são
interessantes pois dão um sentido à via política do seu
autor. Primeiro sublinha de novo o carácter conflitual da partilha de
produção entre salários e lucros depois entre rendimento
do trabalho e rendimento do capital. Nota que o capitalismo exacerbou esse
conflito mas não dá qualquer explicação para este
agravamento e não se interroga sobre o porquê da perenidade desse
conflito.
Nas linhas que se seguem após as suas constatações
bastante banais apresenta-se um deslize significativo já que da
análise capital/trabalho, segue para o do capital/rendimento, o que
é totalmente diferente uma vez que o capital/trabalho remete para o
cerne do sistema de exploração capitalista enquanto o
capital/rendimento remete para considerações de tipo
estatístico e coloca no mesmo plano os rendimentos retirados do trabalho
e aqueles retirados da especulação. Não toma portanto em
conta o processo de extracção da mais-valia baseada no trabalho
assalariado.
Lembremos que para Marx:
O capital é acima de tudo um tipo de relações sociais na
medida em que os capitalistas só podem possuir e acumular capital
graças à relação social que mantém com os
trabalhadores. Marx parte da análise da escola clássica para a
qual o capital é constituído por todos os meios de
produção avançados pelos capitalistas durante o ciclo de
produção, ou seja, bens que o capitalista adquire a fim de
produzir (máquinas, matérias-primas, edifícios
) o
que Marx chama "capital constante", assim como a força de
trabalho assalariada que Marx chama "o capital variável".
Lembremos que a força de trabalho é: a mercadoria que os
trabalhadores assalariados, para viver, devem vender aos seus empregadores
capitalistas. Eles vendem não apenas o seu trabalho, mas a sua
capacidade de trabalho: a sua força de trabalho. Marx descreve um
processo de produção organizado de modo a que os capitalistas
invistam dinheiro (A) a fim de conseguir os meios de produção (M)
e uma força de trabalho (T) para produzir as mercadorias (M) que
vão vender por uma soma de dinheiro (A') com A' superior a A. A
diferença positiva procurada entre A e A' constitui a mais-valia.
Para Marx A' é superior a A pois os capitalistas exploram os
trabalhadores não lhes pagando a totalidade do valor que eles produzem
pelo seu trabalho. O capitalista compra a força de trabalho cujo valor
de utilização cria o valor de troca. Paga-a ao preço da
reprodução desta força, preço inferior ao valor de
troca criada.
Esta parte não lançada é utilizada pelo capitalista na
sua qualidade de proprietário dos meios de produção.
Assim, para Marx, é graças a este sobre-trabalho que os
capitalistas obtêm um lucro, que lhes permite acumular capital. Ou por
outras palavras, os meios de produção materiais não
produzem por natureza do valor, eles só o produzem quando são
accionados pelos trabalhadores assalariados e permitem conseguir a mais-valia e
assim o lucro. Consequentemente, para Marx, em vez de ser uma coisa, o capital
é uma relação social entre as pessoas. Essa
relação social corresponde ao que Marx chama
"relação de classe".
Para Piketty a compra e a venda da força de trabalho não
existem. Mais ainda, ele assimila totalmente o capital ao património,
ele chama-lhes na pág. 84 "sinónimos perfeitos" e
utiliza-os de modo intercambiável. Para ele, o capital ou
património representa o conjunto dos activos não-humanos que
podem ser possuídos ou trocados num mercado. Divide depois esse capital
global em capital público e privado. Esta confusão entre capital
e património não é inocente. Constatamos ao ler a obra que
o autor joga astuciosamente com esta confusão património/capital
utilizando um ou outro dos dois termos (que ele acha permutáveis) para
dar um sentido particular à sua demonstração.
Voltarei aqui mas para já queria lembrar como a língua francesa
trata deste assunto.
Segundo o Tesouro da Língua Francesa (TLF) a definição do
património é a seguinte:
"Conjunto de bens herdados dos antepassados ou reunidos e conservados para
serem transmitidos aos descendentes.
Conjunto dos bens e obrigações de uma pessoa (física ou
moral) ou de um grupo de pessoas, apreciável em dinheiro e no qual
entram os activos (valores, créditos) desse.
Segundo o TLF a definição do capital é a seguinte:
1. Bens monetários possuídos ou emprestados, por
oposição aos lucros que podem produzir.
2. Conjunto dos meios de produção (bens financeiros e materiais)
possuídos e investidos por um indivíduo ou um grupo de
indivíduos no circuito económico. Por extensão conjunto
dos meios de produção incluindo o trabalho humano"
Vemos assim que o próprio TLF faz uma diferença entre
património (o que se possui) e capital) (o que se investe). Com efeito
esta assimilação não é inocente
capital/património, já que nessas condições o
operário ou o assalariado que possui a sua casa está na mesma
condição do capitalista como detentor de capital e será
globalmente levado em conta na parte capital ou património das
estatísticas. Nesse passe de prestidigitação Piketty apaga
mais uma vez a realidade de classe entre os que possuem os meios de
produção e os que apenas têm a sua força de
trabalho. Para citar Marx e Engels no manifesto do Partido Comunista: "Ser
capitalista, é ocupar não apenas uma posição
puramente pessoal, mas ainda uma posição social na
produção. O capital é um produto colectivo. Só
pode ser posto em movimento pela actividade em comum de muitos
indivíduos, e mesmo em última análise pela actividade em
comum de todos os indivíduos, de toda a sociedade. O capital não
é assim uma potência pessoal, é uma potência social.
Voltando à relação capital/rendimento Piketty anuncia que
o que ele chama a primeira lei fundamental do capitalismo (segundo a sua
definição evidentemente).
Alfa = r x beta
r = relação capital/rendimento
Beta = relação capital/rendimento.
Alfa = parte do capital no orçamento nacional
De facto esta igualdade é uma identidade, sempre verdadeira por
construção.
Notemos que aqui Piketty utiliza o termo capital e não património.
Mesmo que do meu ponto de vista de cientista esta fórmula não
constitua uma lei ela vai servir ao autor para descrever a
evolução do capital através dos tempos e do espaço.
Nota ainda assim que constitui uma tautologia mas isso não o impede de
fazer dela bom uso, que é apenas a relação que estes
valores mantêm entre si sem identificar as linhas de força que
decorreriam dessa "lei". De passagem, nota que r (taxa de rendimento
médio do capital) é a base da análise marxista, juntamente
com a baixa tendencial das taxas de lucro, que acrescenta constituir uma
predição histórica errónea. Na verdade essas duas
afirmações são falsas. O r piketiano não é
taxa de lucro, engloba todos os rendimentos do património, qualquer que
seja a sua forma jurídica englobando mesmo as cadernetas de
poupança! Por outro lado Marx indica que a baixa tendencial das taxas de
lucro é precisamente tendencial, o que está longe da visão
dada por Piketty que faz crer que para Marx esta baixa não teria nem
contra-tendências nem "acidentes", e segundo uma curva regular
levaria à morte "térmica" do capitalismo. Vamos ao
livro III do Capital onde Marx desenvolve longamente entre outros, estas
contra-tendências e acidentes.
O facto de Piketty levar em conta a taxa de rendimento do capital está
directamente ligada à sua definição do capital. Mistura
assim a taxa de lucro e as mais-valias bolsistas ou imobiliárias,
mistura o capital que se valoriza na produção e o dinheiro
investido nas operações puramente especulativas. Mas, no fundo,
tudo isto não reflectirá o crescimento dos capitais que procuram
valorizar-se para lá da produção pela
especulação? Notemos que estes capitais enormes que se investem
na especulação não acrescentam sequer um iota em bens
mercantis ou serviços úteis à população.
Pesam sobre o preço da compra das matérias-primas, dos
imóveis
alimentam as bolhas financeiras e a crise.
Para terminar esta parte, gostaria de sublinhar a ligeireza de Piketty quanto
à análise da repartição mundial do rendimento e
factores de convergência que podem aproximá-los. Assim, escreve
ele ao falar da dominação económica dos países mais
ricos sobre os países pobres: "Em princípio, esse mecanismo
pelo qual os países ricos possuem uma parte dos países pobres
pode ter efeitos bons em termos de convergência". Os países
que sofreram o domínio colonial e sofrem o domínio neocolonial
apreciarão esta opinião. Isso opõe-se à realidade
social e económica de numerosos países pobres cuja
libertação do domínio imperialista é mais do que
dolorosa e mortífera.
É certo que para Piketty pág. 144: "A história do
desenvolvimento económico é antes de mais a da
diversificação dos modos de vida e dos tipos de bens e
serviços produzidos e consumidos". Diz isto sem se rir!
A dinâmica da relação capital/rendimento (segunda parte)
Nesta parte, o autor descreve o que ele chama: "as metamorfoses do
capital". Em especial em França e na Inglaterra, sublinha a
propósito, a evolução do capital fundiário para o
capital imobiliário e industrial. As guerras, a
colonização, a escravatura e depois a
descolonização desempenharam um papel importante nesse processo.
Afirma na pág. 190: "O capital tinha desaparecido em grande parte
em meados do Século XX. São as guerras que no século XX
fizeram tábua rasa do passado e deram a ilusão da ultrapassagem
estrutural do capitalismo". Confesso não apanhar o que o autor
pensa através desta afirmação, salvo se ele confunde
(voluntariamente?) rendimento e capital. Mas o rigor não parece ser a
virtude essencial do conteúdo deste livro. Pág. 202.
constatando que o Estado desempenha um papel importante no processo de
acumulação do capital e dos patrimónios e que o essencial
do património é privado o autor faz uma importante descoberta que
resume assim: "A França tal como o Reino Unido sempre foram
países fundados sobre a propriedade privada e nunca experimentaram o
comunismo do tipo soviético".
Segundo ele, a análise do papel da dívida na
acumulação do capital nos séculos XIX e XX atingiu
resultados opostos, tendo no século XIX uma dívida pública
que reforça os patrimónios por uma relação positiva
dos empréstimos enquanto os liquida pela inflação depois
de 1945.
Voltando a esta ideia que o pós-guerra é marcado por uma
França de um capitalismo sem capitalistas, nota que as
nacionalizações de 1945 conduziram a um papel reforçado do
Estado, o que é uma evidência. Mas o autor não se atarda em
analisar o porquê político desta situação e o papel
que os Estados desempenharam e desempenham para permitir a
constituição de monopólios capazes de se inscrever na nova
concorrência mundial nas relações de força
decorrentes da guerra e da derrota do campo socialista. Seria ainda mais
interessante que, ao lado e em concorrência com a tríade USA, UE e
Japão surjam forças estatais capitalistas novas que designamos
pelo acrónimo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e Africa
do Sul).
O exame da situação na Alemanha e na América
dá-lhe ocasião de mostrar as diferenças nos processos de
acumulação, na Alemanha, com as características de um
capitalismo dito renano, detido em parte pelos assalariados, as regiões
e as associações e que asseguraria uma maior estabilidade do
capital. Ora sucede que esta visão das coisas, se está de acordo
com a realidade no domínio das Empresas de Dimensão
Intermédia (ETI), não o está no caso do grande capital
monopolista industrial e financeiro. Assim o papel dos grandes trusts
alemães da química, da metalurgia, da finança
não é evocado por Piketty.
Admite que a concorrência exacerbada entre as potências europeias
está na origem da grande guerra de 1914-18 mas não põe em
causa os monopólios e julga-se obrigado a acrescentar que não
precisa de concordar com Lénine para chegar a uma tal conclusão.
Piketty chega então ao que chama na pág. 262 a segunda lei
fundamental do capitalismo:
Beta = s/g
Beta = capital/rendimento
s = taxas de poupança
g = taxas de crescimento
Pág. 266 esta lei que se torna "uma equivalência
contabilística" deve ser estudada num longo período e
descreve um processo dinâmico da acumulação.
Estudando as variações de beta o autor conclui que, após
uma grande depressão devida à guerra, depois de 1970 os
patrimónios se reconstituíram e ainda se reconstituem. Desde
1970, assistimos segundo o autor à "emergência de um novo
capitalismo patrimonial" e isso na base de um crescimento fraco do
denominador o que matematicamente faz crescer o beta enquanto as taxas de
poupança permanecem elevadas pelo facto da transferência da
riqueza pública para a privada pelas privatizações e a
subida dos preços dos activos imobiliários e bolsistas. Tudo
isto está evidentemente ligado a uma política favorável ao
capital. Uma nota de passagem sobre a expressão "capitalismo
patrimonial". Se capital e património são sinónimos
perfeitos que pode significar esta expressão que poderia também
chamar-se: "capitalismo capitalista ou património patrimonial ou
ainda património capitalista". Medimos bem a confusão que
preside a esta passe de prestidigitação que consiste em confundir
capital e património!
Uma questão emerge na pág. 303 sobre quem possui o
quê, alguns países não se encontram na posse de outros? Na
hora de uma "mundialização" generalizada esta
questão é evidentemente pertinente. Piketty afirma que cada
país está em grande parte na posse dos outros e que : "os
activos e passivos financeiros progrediram ainda com mais força que o
valor limpo dos patrimónios. Isso demonstra o desenvolvimento sem
precedente das participações cruzadas entre sociedades
financeiras e não financeiras de um mesmo país e entre
países, isso está muito marcado para os países europeus.
É uma questão interessante que cobre a realidade do imperialismo
mas que não o analisa.
Piketty debruça-se depois sobre a questão da partilha
capital/trabalho no Século XXI.
Depois de haver constatado as flutuações na partilha
capital/trabalho no decurso do tempo na base da equação alfa = r
x beta, de que deduz a parte do capital e do trabalho no rendimento nacional,
conclui com o aumento do capital desde 1970 e na estabilização a
partir de 1990. Mas esse cálculo coloca uma problema sério pois a
partilha assim efectuada nada diz sobre a realidade da parte dos
salários no valor produzido, nem sobre os lucros capitalistas nem sobre
o preço da força de trabalho e sobre o grau de
exploração do trabalho assalariado.
Piketty introduz duas noções:
A taxa de rendimento médio do capital e a noção de
produtividade marginal do capital (PMC)
A taxa de rendimento médio do capital:
É uma construção abstracta de elementos e de rendimentos
diversos (acções 7%, activos diversos 4%, imobiliário 4%,
conta de poupança 1,5%
) a taxa de rendimento médio assim
calculada agrega colocações diversificadas e dilui os lucros
capitalistas ligados à colocação em movimento do capital
na produção das mercadoras e dos serviços e daqueles
ligados à especulação.
A noção de produtividade marginal do capital (PMC)
Este PMC é definido pelo valor da produção adicional
trazida por uma unidade de capital suplementar. É uma
definição idêntica a que prevalece para a produtividade do
capital marginal do trabalho PML. De facto, estes PMC e PML servem para
calcular a quantidade óptima de capital e o trabalho necessário
à realização de uma mais-valia máxima.
O resultado Produtividade Marginal do Trabalho está na base de todos os
trabalhos explicando o desemprego pelo nível demasiado elevado dos
salários (ver o livro de Laurent Cordonnier "Pas de pitié
pour les gueux!").
PMC e PML ligados à produtividade do trabalho e do capital justificam a
tese dos economistas ortodoxos. Não há conflitos possíveis
na partilha do valor acrescentado entre trabalhadores e detentores do capital
já que o lucro não é mais do que a simples
remuneração da produtividade do capital e do trabalho. Por outras
palavras, PMC e PML justificam que o livre-jogo dos mercados não
faça mais que remunerar trabalhadores e detentores de capital ao seu
"justo nível", o da sua produtividade.
Piketty critica, com razão, estas noções baseadas na
teoria de Cobb-Douglas. Calcula na pág. 344 que a conclusão a que
levam de uma estabilidade na partilha capital/trabalho: "dá uma
visão relativamente serena e harmoniosa da ordem social. Pode
conjugar-se com uma desigualdade extrema da propriedade do capital e da
repartição dos rendimentos". Se não chega a nenhuma
conclusão clara aproveita a ocasião para se demarcar uma vez mais
da análise marxista. Assim, volta a esta noção fundamental
de "baixa tendencial da taxa de lucro" para apontar que na
aproximação de Marx (de quem afirma: "que a sua prosa
não é sempre límpida"! subentendendo-se que a de
Piketty o é), a acumulação infinita que prevê
não leva em conta o progresso da tecnologia que favorece um aumento da
produtividade e assim "equilibra" o processo de
acumulação do capital. Sem isso, afirma o autor, a
predição de Marx leva à guerra e/ou a impor ao trabalho
uma parte mais fraca do rendimento nacional e teria como consequência a
revolução. Fazer dizer a Marx o que ele não disse ou
torcer os seus enunciados é uma necessidade permanente para Piketty!
Veremos que é também uma das motivações
políticas deste trabalho. Além disso Piketty parece ignorar o
mundo real, o dos confrontos inter-imperialistas para a partilha e repartilha
do mundo, a conquista de espaços, de recursos, de novos mercados e de
força de trabalho a explorar. Parece também ignorar as
políticas usadas para fazer baixar o preço da força de
trabalho e aumentar a exploração dos assalariados.
Por outro lado a baixa tendencial da taxa de lucro não diz que os
lucros diminuem em valor absoluto; pelo contrário, aumentam-nos. A luta
de classes do século XXI é alimentada por essas realidades que a
prosa piketiana não saberia enunciar. Não é a concluir
esta parte pela afirmação que "o crescimento moderno
(produtividade e conhecimento) permitiu evitar o apocalipse marxista e
equilibrar o processo de acumulação do capital, mas sem lhe
modificar a estrutura profunda" que Pyketty nos convence do valor da sua
argumentação.
A estrutura das desigualdades (terceira parte)
Esta parte não é falha de interesse quanto à
descrição das desigualdades, quero apenas sublinhar os aspectos
mais marcantes e discutir algumas questões de metodologia.
É sobre a questão da definição do conceito de
classe que Piketty se esforça para explicar o seu ponto de vista.
Trata-se de um problema capital. O autor afirma, justamente, que as
definições neste domínio não são
anódinas. Considerando que toda a representação das
desigualdades fundada num número de categorias limitadas está
votada ao esquematismo já que a realidade social é, segundo ele,
uma repartição contínua, vai elidir a realidade de classe
para se agarrar a uma categorização por déciles e centiles
de rendimento do capital e/ou do trabalho. Trata-se aí de um ponto
fundamental. Com efeito, agarrar-se a uma visão estatística a
partir dos rendimentos apaga o lugar de uns e de outros nas
relações sociais e em particular nas relações de
exploração à base do próprio sistema capitalista.
Negar a divisão da sociedade em classes e em particular em classes
antagónicas, conduz a aceitar essa divisão e a fazer do
capitalismo o horizonte inultrapassável da história das
relações sociais e, no melhor dos casos, a que Piketty se agarra,
preconizar - vê-lo-emos mais tarde - uma humanização do
capitalismo, se tal é possível dada a própria natureza
desse sistema.
Nessas condições, Piketty fica-se por uma visão do
pensamento económico clássico e neoclássico da
emergência de uma "classe média patrimonial" e, por que
não, segundo os seus sinónimos perfeitos que são o capital
e o património, uma "classe media capitalista". Afirma na
pág. 410 que esta inovação maior do século XXI
constitui a principal transformação da repartição
de riquezas no século XX. Acrescenta que esta classe média
permitiu uma transformação profunda da estrutura social e
política. O que constitui uma afirmação audaciosa pois as
camadas que chama médias não têm o poder, que já foi
confiscado pelo grande capital e, como ele próprio afirma, ficam apenas
com as migalhas.
À pergunta "O Século XXI será ainda mais desigual
que o Século XIX?", responde pág. 598: "é
ilusório imaginar que existe na estrutura do crescimento moderno ou nas
leis da economia de mercado forças de convergência que levem
naturalmente a uma redução das desigualdades patrimoniais ou a
uma estabilização harmoniosa". Este reparo após
longos desenvolvimentos sobre o crescimento das desigualdades deveria levar o
autor a inquietar-se com as causas profundas desta situação. Mas
nada disso sucede e o autor nota mesmo na pág. 613: "Por
razões tecnológicas, o capital desempenha hoje um papel central
no processo de produção e portanto na vida social".
Não se pode escolher mais claramente o seu campo! Porquê
referir-se a razões tecnológicas se o capitalismo não
coloca em acção as ciências e as tecnologias a menos que
elas entrem numa estratégia adequada ao seu desenvolvimento. As
razões são com efeito de ordem económica e política.
A partir daí Piketty vai justificar esta escolha. Como justificar as
desigualdades e baseá-las num princípio racional aceitável
pela sociedade. As pág. 671-672 e 674 esclarecem este ponto de vista.
Retoma a racionalização política, a da
declaração dos direitos do homem, que é o fundamento da
emergência do domínio da classe burguesa capitalista. "Em
democracia, para sair da contradição da igualdade proclamada e
das desigualdades reais, é vital que as desigualdades decorram de
princípios racionais e universais. As desigualdades devem ser
então justas e úteis para todos". Depois, para se fazer
entender, acrescenta pág. 674: "A partir do momento em que o
capital desempenha um papel útil no processo de produção,
é natural que tenha um rendimento". Esta tese lembra os
esforços dos neokeynesianos para preconizar um cálculo do custo
de trabalho e um do custo do capital e uma outra partilha das riquezas, sem
tocar evidentemente no próprio sistema capitalista. Esta
concepção alimenta mesmo hoje o pensamento teórico das
confederações sindicais em França e na União
Europeia.
Colocar-se do lado do capital não tolda a lucidez de Piketty, já
que se interroga sobre a evolução da progressão das
desigualdades nos seguintes termos, pág. 685: "Não arriscam
as forças da mundialização financeira a levar, nos
séculos que se abrem, a uma concentração do capital ainda
mais forte do que todas as observadas no passado, se é que o caso
não é já esse?" Seríamos tentados a dizer
esperar 685 páginas para uma tal observação sujeita os
nervos do leitor a rude prova, mas podemos também observar a Piketty que
uma leitura um pouco mais atenta de Marx tê-lo-ia convencido que, longe
de uma visão apocalíptica, Marx tinha claramente previsto este
fenómeno de concentração do capital e que Lénine
juntou uma camada à espessura dessa observação ao
descrever a formação de uma fase imperialista ligada à
fusão do capital financeiro e industrial na constituição
de monopólios. Realidades e fenómenos que inegavelmente
aceleraram nos últimos decénios.
Perante esta dinâmica de concentração do capital Piketty
volta na pág. 701 à sua proposição central, a de um
imposto progressivo sobre o capital a nível mundial para permitir
contrariar eficazmente essa dinâmica.
Para atenuar o "choque" desta perspectiva afirma que: "por mais
justificadas (por quem?) que sejam do início, as fortunas multiplicam-se
por vezes para lá de qualquer limite e de toda a
justificação racional possível em termos de utilidade
social". Estamos em plena moralização e a sequência
vai mostrar os limites da audácia piketiana!
Regular o capital no século XXI (quarta parte)
Pág. 751 retoma a ideia da necessidade de uma superação do
capitalismo para o regular antes que chegue uma grande catástrofe.
Piketty coloca a seguinte questão pág. 762: "Que
instituições políticas poderiam permitir regular de modo
simultaneamente justo e eficaz o capitalismo patrimonial mundializado do
século?". Esta questão leva a outra: "que estado social
para o séc. XXI" e mais precisamente "qual o papel do poder
público na produção e na repartição das
riquezas e na construção de um estado social adaptado ao
século XXI." Para lá do que aparecia como o cúmulo
das boas intenções: "modernizar o estado social e não
o desmantelar" encontramos todo o discurso actual sobre a reforma, cujo
conteúdo está claramente orientado no sentido dos interesses do
grande capital. É só ver o conteúdo da lei de
modernização dita lei Mácron que a coberto de modernidade
liquida áreas inteiras de conquistas sociais dos assalariados. Nesta
"modernização" é fácil encontrar os temas
em voga:
Mistura público/privado
Reforma das pensões que admite, como os sucessivos governos, que elas
devem continuar por repartição, mas de que é
necessário prolongar a duração de
contribuição e modificar as base de cálculo. Afinal nada
de original!!!
Mais Europa económica e política
Perante as desregulamentações que julga nefastas para a
manutenção da ordem social Piketty insiste fortemente na
questão da fiscalidade. E retoma a sua ideia de um imposto mundial sobre
o capital. Mas, medindo a dificuldade e a ausência de credibilidade de
uma tal proposta quando sabemos das somas tragadas pelos paraísos
fiscais e da complexidade dos mecanismos bancários que visam poupar
às empresas o pagamento do imposto, Piketty considera a sua
própria proposta como ilusória, como o é de forma
idêntica a famosa taxa Tobin, cara aos reformistas políticos.
Nessas condições, aproveita para incluir no terreno da mais
Europa necessária segundo ele para conseguir regular o capital.
Evidentemente que não se coloca a questão da natureza da
construção europeia, a de uma agregação
imperialista ao serviço dos monopólios da qual os povos sofrem a
dolorosa experiência.
Ainda sobre o imposto, Piketty, pág. 840 atribui-lhe um objectivo de
transparência democrática e financeira. Afirma que esse imposto
mundial será modesto em termos de receita. Não é, segundo
ele, para: "financiar o Estado social mas para regular o
capitalismo". Os capitalistas devem ficar mortos de medo perante uma tal
perspectiva!
A segunda parte é consagrada à questão da dívida.
Uma ocasião para elaborar uma grande explicação sobre a
necessidade de dar um Estado ao Euro, ele que é a única moeda sem
Estado. Trata-se claramente de uma apologia para uma Europa federal criando
"um parlamento orçamental da zona euro". Esta Europa estaria
assim necessariamente totalmente integrada no plano político.
Para acabar verdadeiramente, mas "in cauda venenum", Piketty afirma
que "o mercado e o voto são apenas duas maneiras polares de
organizar as decisões colectivas" e para ter uma boa medida
reformadora acrescenta na pág. 940: "para que a democracia chegue
um dia a retomar o controlo do capitalismo, é preciso primeiro partir do
princípio que as formas concretas da democracia e do capitalismo
estão ainda e sempre a reinventar-se". Podemos medir nesta
afirmação a impossibilidade de conseguir tal coisa mas na verdade
não é esse o objectivo de Piketty nem dos seus
mandatários. Tudo isso coloca a questão: Porquê o livro de
Piketty, que interesses serve?
Porquê o livro de Piketty, quais os interesses que serve?
Na crise profunda do sistema capitalista, na luta encarniçada que o
capital trava para restabelecer as taxas de lucro, os ideólogos
burgueses, conscientes da rejeição das suas medidas
políticas por uma parte crescente da população,
estão à procura de um compromisso social que lhes permita
neutralizar a luta de classes ou desviá-la para que in fine a
dominação do capital permaneça. Nessa luta, é
preciso a todo o custo mostrar que não há outra saída
senão aceitar a lei do capital. Assim, é necessário
sistematicamente desclassificar as análises apoiando-se na
existência das classes sociais e seu carácter antagónico no
sistema capitalista, e substitui-lo por uma análise em termos de grupos
sociais. É também necessário "purificar" a
economia da política e afastá-la de uma análise global da
sociedade e do seu movimento.
É preciso distinguir o papel do Estado do do capital, dando a
ilusão de que o Estado é neutro, acima da confusão. Donde
os discursos sobre o Estado estratega. Nessas condições, Marx e
os marxistas devem ser desconsiderados e afastados para as fileiras dos doces
sonhadores, e na pior das hipóteses para as dos teóricos do
"totalitarismo". Expurgar a luta de classes da paisagem é
evidentemente uma tarefa árdua, mas necessária do ponto de vista
do capital. Isto necessita de se apoiar em organizações sociais,
especialmente sindicais e politicas, que pratiquem a colaboração
de classe. É a esta necessidade imperiosa que responde uma demanda de
"teorização" do movimento da sociedade, do ponto de
vista do capital, claro está. É este finalmente o conteúdo
político do livro de Piketty. Ele dá uma visão da
realidade, que é difícil ignorar, a das desigualdades, a da sua
perenidade, uma visão do seu aprofundamento ao mesmo tempo que o capital
se concentra. Simultaneamente, nega toda a realidade de classe e remete para
"soluções" que ignoram a realidade da
exploração capitalista. Nesse sentido o livro de Piketty é
útil para uma variante política visando a justificar a
aceitação da política do capital.
Indo ao fundo da questão, haverá uma via reformista
possível?
Esta parte da minha exposição está destinada a abrir um
debate que se vai centrar na questão mais fundamental da possibilidade
de uma via reformista, que vise transformar e moralizar o capitalismo.
Vou apresentar o meu ponto de vista sem demora e vou responder brutalmente
"Não, não há"! Mas, dizem alguns, sendo a
relação de forças como é, é razoável
a curto prazo uma linha de classe, e que apoio utilizar para reconstruir uma
consciência de classe do lado dos trabalhadores? Vou tentar responder.
Se analisarmos rapidamente o que se passa actualmente na Europa, medimos bem o
impasse que representa a procura de um compromisso político com as
forças do capital. É a experiência que faz o povo grego
quando o seu governo afirma defender simultaneamente os seus interesses e
colocar-se do ponto de vista da NATO e da Europa.
Para manter o poder e manter o sistema de exploração
capitalista, para desarmar ideologicamente os trabalhadores mascarando as
causas da crise, as classes burguesas na Europa recompõem
permanentemente as forças políticas quer de direita quer de
esquerda. É assim cada vez mais necessário que para manter ou
seja restabelecer as taxas de lucro, os capitalistas devam forçar cada
vez mais os recuos sociais e a exploração do trabalho
assalariado. Fazer baixar o preço da força de trabalho e aumentar
a exploração dos povos é o seu grande objectivo, aquele
que jamais perdem de vista. Esta recomposição das forças
políticas visa a aspirar e desviar o descontentamento geral pelas
medidas anti-sociais tomadas pelos governos. Ela toma formas diversas de acordo
com os países. Mas há características comuns a registar.
Assim, a divisão da sociedade em classes antagonistas (o assalariado
explorado e o capital explorador) é substituída pelo conceito dos
que estão em cima e dos que estão em baixo. Esse conceito, que
apaga as diferenças de classe, é utilizado de formas diversas. O
mesmo acontece ao capitalismo que é baptizado de novo como
"neoliberalismo". Esta designação tem a virtude de
poupar o próprio sistema e, se permite fustigar as
"finanças", sobretudo não toca na natureza do
capitalismo. É de bom-tom condenar o "neoliberalismo" e as
finanças e dar assim a entender que a crise é apenas uma
desregulação do capitalismo.
Ao atacar o "capitalismo neoliberal" todas estas forças
omitem qualquer crítica sobre a natureza capitalista e imperialista da
construção europeia. Esse discurso é o de toda a esquerda
europeia, dita radical ou não, que afirma a possibilidade de uma
reorientação da UE para mais "social".
Contudo, a natureza imperialista da UE é clara, os factos mostram-no
bem. Sob a égide da NATO, os países europeus participam em
verdadeiras guerras de conquista e de destruição de
nações: Afeganistão, Jugoslávia, Ucrânia,
Iraque, Líbia, Síria, apoio indefectível ao Estado de
Israel, intervenção em África
Sejamos claros, sem uma análise rigorosa da natureza imperialista da
União Europeia não é evidentemente possível
começar a luta contra o próprio capitalismo. Agarrar-se a
fórmulas gerais como a saída do Euro e da Europa, sem atacar a
natureza capitalista da UE e dos Estados que a compõem será
apenas o espelho da fórmula vazia da transformação da
Europa em Europa social.
Conclusão
Piketty apercebe-se e de certo modo ilustra o grau de parasitismo do
capitalismo.
Esta situação de crise sistémica exacerba os confrontos
inter-imperialistas para a partilha e a repartilha do mundo. Arrasta consigo
conflitos armados conduzidos pelo imperialismo cujo preço é pago
pelos povos. Esta situação é a causa de recuos sociais e
democráticos sem precedentes, e ameaça a paz mundial. Nessas
condições, a impotência de Piketty em propor uma
saída que não seja a do rearranjo do capitalismo pela
fiscalidade, a educação e a investigação, discurso
recorrente dos reformistas de todos os matizes, tem algo de patético.
Este rearranjo do capitalismo releva mais do sonho do que a realidade. É
irrealista e a experiência demonstra-o todos os dias.
O único realismo, na minha opinião, partindo da análise
das condições da luta de classes, é a luta pela
emancipação dos trabalhadores e portanto a
expropriação do capital.
[*]
Investigador do CNRS. Conferência em 5/Março/2015.
O original encontra-se em
www.cuem.info/?page_id=364
e a tradução de Manuela Antunes em
www.odiario.info/?p=3594
Este texto encontra-se em
http://resistir.info/
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