Pontos de viragem históricos são muitas vezes difíceis de
verificar no momento em que acontecem. Normalmente somos capazes de
vê-los mais claramente em retrospetiva. Não obstante, atrevo-me a
argumentar que 2016 foi o ano em que o globalismo estourou. Até agora,
tanto apoiantes como opositores viam o projeto globalista como algo que
avançava inexoravelmente ao longo de seu percurso predeterminado,
deixando toda a oposição de lado. Mas o globalismo não
é apenas uma orientação política. Primeiro e acima
de tudo, é a natureza do capitalismo atual. É global. As
transnacionais conquistam o mundo, submetendo as nações e os
povos sob a sua engrenagem poderosa como um rolo compressor.
Não há nenhum bom funcionamento
Como sempre no passado, o facto de a história nunca ocorrer de forma
suave e regular está novamente a ser confirmado. A tentativa do
capitalismo de subjugar o mundo inteiro é uma tendência objetiva.
Corresponde à necessidade inerente ao capital para uma
acumulação sem limites. E como
Karl Marx
e
Friedrich Engels
escreveram no Manifesto Comunista:
"os preços baixos tornam-se a artilharia pesada que destrói
todas as muralhas da China".
Neste sentido, é irresistível. Como Marx e Engels também
escreviam, a burguesia é uma reminiscência do
"feiticeiro que já não é capaz de controlar os poderes
ocultos que evoca. Desde há décadas, a história da
indústria e do comércio tem sido a história da
rebelião das forças de produção da era moderna
contra as condições de produção da era
moderna."
Assim, o globalismo enfrenta os conflitos criados pelo próprio
capitalismo, e que não é capaz de resolver, levando às
crises e ao caos. A repressão, fortalecendo a luta de classes, é
uma das consequências. Mas o próprio capitalismo não evolui
estavelmente. Alguns Estados capitalistas mantêm-se de pé,
enquanto outros se afundam, e os seus mútuos conflitos já levaram
a duas guerras mundiais e inúmeras outras guerras e conflitos.
Particularmente agora, quando vários dos principais países
capitalistas entraram numa recessão duradoura, até mesmo
depressão, conflitos violentos irão necessariamente a ocorrer.
Quando os tempos estão difíceis, mesmo o melhor dos amigos pode
tornar-se inimigo. Esses conflitos são questões de vida e morte,
nada menos. Não passou muito tempo desde que
Barack Obama
em 2014 fez um discurso onde falou sobre
uma futura nova ordem mundial
:
"(
) parte da preocupação das pessoas é apenas
no sentido de que o mundo não está suportando a velha ordem e
ainda que não estejamos seguros de para onde necessitamos ir em termos
de uma nova ordem baseada num diferente conjunto de princípios, como um
senso de humanidade comum, baseado em economias que funcionem para todas as
pessoas."
Os EUA quase tiveram êxito
Após o colapso da União Soviética, os EUA têm sido
de facto o único poder supremo e esta posição tem sido
explorada nas suas tentativas de dominar o resto do mundo. Isso tem sido feito
através de acordos de comércio assimétricos, favorecendo
os grandes grupos capitalistas dos EUA. E, não menos importante, tem
sido feito através de guerras, golpes de Estado, assassinatos,
ameaças e subornos. Também usaram o seu sobrevalorizado
dólar, como um martelo pilão contra todos os outros. A artilharia
ligeira nesta batalha tem sido os media dominados pelos EUA e o seu objetivo
altamente bem sucedido de controlar a mentalidade dos povos e as formas de
atuação dos políticos.
Os EUA levaram guerras ao Afeganistão, Jugoslávia,
Somália, Iraque, Iêmen, Líbia e Síria, desencadearam
um golpe de Estado na Ucrânia e asseguraram mudanças de regime, em
muitos outros países. Na África, os Estados Unidos realizam
dezenas de operações militares todos os anos garantindo o
controlo para os seus principais grupos capitalistas. Os EUA deram um passo
gigante na destruição e pilhagem da Rússia durante a
presidência de Boris Yeltsin. Os EUA também subjugaram quase
completamente a Europa reduzindo as antigas potências coloniais do velho
mundo, como Alemanha, França e Reino Unido, à
condição de vassalos.
Batendo contra a parede
Sem oficialmente tornar esta questão um grande problema, a China
aproveitou os benefícios da globalização para a construir
uma indústria que se tornou a fábrica do mundo e sistematicamente
desenvolver as suas infraestruturas, a investigação, a
ciência e tecnologia para garantir que a China não permanecesse
uma nação exportadora de segunda classe. Isso aconteceu
parcialmente com elevados investimentos das empresas dos EUA. As
relações de comércio assimétrico entre os EUA e a
China têm surgido devido à necessidade inerente ao capital dos EUA
de bens baratos, mas criou um sistema econômico que implacavelmente
reforça a China à custa dos EUA.
Os EUA aprenderam dolorosamente que a competição global
não é
um jogo para apenas um único ganhar.
O lema de Donald Trump "fazer de novo a América grande"
("Make America Great Again")
é uma desesperada admissão que os EUA perderam o seu
próprio jogo.
Além disto, os EUA fracassaram em todas as suas guerras. A guerra do
Afeganistão, para a qual ainda não se vê um fim, é a
mais prolongada na história dos EUA. E o custo é tremendo.
Linda Bilmes, antiga CFO (Chief Financial Officer) do Departamento de Comercio
dos EUA estimou que os custos diretos e indiretos totais das guerras no Iraque
e no Afeganistão acabarão na
faixa dos 4 a 6 milhões de milhões de dólares
. Este cálculo foi publicado em Harvard.
Os EUA têm sido capazes de financiar a sua poderosa máquina de
guerra com vendas de títulos do governo à China. Mas esta fonte
agora seca rapidamente, à medida que a China se encontrar
suficientemente forte e pronta para "desdolarizar" a economia global.
A guerra do Iraque foi um desastre que continua a produzir miséria. Com
a Noruega a apoiar, os EUA destruíram a Líbia, mas a
catástrofe deste país vai continuar a afectar grandemente a
Europa, No final do verão de 2015, parecia que os exércitos de
jihadistas dos EUA ganhariam a guerra na Síria, mas a Rússia
interveio e os mais brilhantes estrategas dos EUA agora encaram a derrota.
Annus horribilis
Em 2015, os cinco presidentes da UE apresentaram
um plano para abolir as democracias nacionais nos Estados-membros da UE em 2025
. Se pudessem seguir a via que traçaram, a partir de 2025 os
parlamentos nacionais dos Estados membros já não poderiam decidir
sobre seus próprios orçamentos. Os cinco presidentes são o
líder da Comissão Europeia
Jean-Claude Juncker,
o presidente da Cimeira da UE
Donald Tusk
, o Presidente do Eurogrupo
Jeroen Dijsselbloem
, o Presidente do Banco Central Europeu
Mario Draghi
e presidente do Parlamento Europeu
Martin Schulz
. Nenhum destes cavalheiros tem um mandato democrático, mas eles emitem
diretivas e regulamentos para 500 milhões de pessoas que então
têm de respeitá-los.
Porém, 18 meses depois podemos indiscutivelmente determinar, que isso
não vai ser assim. Como sabemos a UE já não existe. A UE
não é uma "
união cada vez mais unida"
, citando a formulação otimista de tratados. É antes o que
afirma um sarcástico comentário do
The Economist,
"uma união sempre mais distante"
.
E assim os acontecimentos ocorrem uns após outros. Alguns países
revoltam-se contra a política migratória da UE, uma
política que não tem o apoio da maioria dos eleitores em nenhum
país, tendendo assim a estourar mais cedo ou mais tarde.
A mudança mais crucial ocorreu com o Brexit.
A resolução britânica de retirada da UE abriu a
válvula de escape para a saída da UE. Se adicionarmos a derrota
do TPP (Parceria Transpacífica) e TTIP (Parceria de Comércio e de
Investimento Transatlântica), temos a extensão dos problemas que
os globalistas enfrentam justamente em 2016.
Outras tensões sobre a coesão da União têm sido as
políticas de guerra e as sanções contra a Rússia.
São políticas em grande medida contrárias aos interesses
objectivos dos Estados europeus, mas são mantidas apesar de forte
resistência interna devido às imposições dos EUA.
O primeiro-ministro italiano
Matteo Renzi
não foi eleito por ninguém. Alcançou a liderança
do seu próprio partido e ocupa o cargo de primeiro-ministro, porque fez
um acordo com Berlusconi: "
eu coço as suas costas se você coçar as minhas
". Mas ele decidiu assemelhar-se a Cameron, propondo ao seu próprio
povo um voto de confiança para obter a maioria através de emendas
constitucionais. Contudo, colocou-se em risco de se tornar ainda mais parecido
com Cameron do que gostaria de ser. O povo italiano não quer estas
alterações e Renzi está em perigo de ter que engolir um
grande murro no estômago ao pequeno-almoço um murro que o
fará ver cinco estrelas, pois Beppe Grillo e o seu movimento Cinco
Estrelas estão à espera desta oportunidade.
Além disto, ao que parece as eleições presidenciais
francesas vão ser entre dois candidatos ambos defensores da
détente e cooperação com a Rússia. Um desafio
completo à doutrina da NATO.
Perdendo na Síria e na Ucrânia
Os EUA, o Ocidente, a Turquia e os Estados ditatoriais do petróleo
financiam uma guerra de mercenários da Jihad para destruir a
Síria. (o papel da Noruega tem sido financiar a componente mais ou menos
civil da guerra e empenhar-se numa economia de guerra contra a Síria). A
guerra esteve perto de sucesso visado pela NATO em 2015, mas agora verifica-se
que os jihadistas e o Ocidente vão perder. Este é verdadeiramente
um grande revés para os imperialistas neoconservadores e estabelece uma
bifurcação de importância decisiva nas vias da
política internacional.
Desde o verão de 2014 que os neocons dos EUA, tentaram fomentar uma
guerra na Ucrânia. Em fevereiro de 2014, desencadearam o golpe da
praça Maidan em Kiev, prometendo à população
riqueza e sucesso. O que conseguiram foi guerra, pobreza, fascismo e um Estado
falido. Mesmo que oficialmente responsáveis da NATO não se
atrevam ainda a dize-lo, eles sabem que também esta guerra está
perdida. E a bancarrota da Ucrânia será passada para os
contribuintes da UE (e da Noruega).
Hillary Clinton e a derrota do Partido Democrático da guerra
Donald Trump
foi o candidato opositor que a campanha de Clinton desejava para ter certeza
de eleger o seu próprio candidato impopular. Todos os grandes bancos e
financeiros estavam na equipa de Clinton, Wall Street, a indústria de
armamento, todos os meios de comunicação importantes. E todos
eles estavam expectantes sobre Hillary Clinton para uma escalada da guerra na
Síria e talvez atacar aí as forças armadas russas. Mas
então eles perderam. Donald Trump é um demagogo de direita,
reacionário, capitalista, mas aparentemente percebeu que a era dos EUA
como
"A nação indispensável"
acabou.
Isto também é um golpe à lealdade dentro da NATO.
Responsáveis europeus da NATO temem as consequências da perdar da
proteção dos EUA.
Envolveram-se pessoalmente em crimes de guerra, assegurando-se confiadamente
que os EUA sempre os protegeriam e os manteriam longe dos tribunais
internacionais. Agora já não podem ter tanta certeza disso. Se
nada mais sair desta eleição nos Estados Unidos, pelo menos temos
a hipótese de ver que espécie de patéticos vassalos
são realmente os líderes europeus.
E a Turquia, que mantém o segundo maior exército da NATO,
constituindo o vulnerável flanco sul da NATO, namora a ideia de aderir
à Aliança da Eurásia na Organização de
Cooperação de Xangai, em estreita ligação com a
China e a Rússia.
A fábrica chinesa continua a girar sem ser ultrapassada
Deng Xiaoping aconselhou os líderes do seu país a não
serem visíveis na política internacional, para evitar
atenção indesejada. Eles na realidade têm seguido este
conselho. A economia da China é atualmente a fonte mais importante de
crescimento que ainda existe no mundo, o país estabeleceu seu
próprio banco de desenvolvimento, pretende construir uma nova
"estrada da seda"
(One Belt, One Road)
e aí investir centenas de milhares de milhões de dólares.
Se nenhuma grande guerra eclodir, a economia da China será maior do que
a economia dos EUA em valores absolutos daqui até 2020. Nessa altura, a
China também terá ultrapassado largamente os Estados Unidos como
uma nação de pesquisa e desenvolvimento. A China é
já o maior parceiro comercial e o maior investidor em
grande número de países que têm sido tradicionalmente
aliados da América.
Bem antes dos destaques deste ano, podemos já estabelecer 2016 como um
ano memorável. Para os globalistas, é o seu "Annus
horribilis". Podemos constatar como isto terá um significado
histórico em todo o mundo. De que forma permanece ainda desconhecido. Os
EUA conduziram desde há muito uma guerra indireta contra seus
"aliados", agora esses conflitos finalmente poderão romper
à superfície e expor-se à plena luz do dia. Pode
até haver uma situação de "todos contra todos".
Velhas alianças irão desfazer-se e novas surgirão. Estas
coisas raramente ocorrem de forma pacífica. Mas tempos de caos
são também tempos de oportunidades. É mais fácil
para os povos oprimidos lutar contra inimigos que estão divididos, do
que com inimigos que permanecem unidos.
[*]
Escritor, norueguês.
O original encontra-se em
steigan.no
e a versão em inglês em
www.informationclearinghouse.info/article45968.htm
. Tradução de DVC.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.