Manifesto dos economistas aterrorizados
Aparentemente, o autismo dos economistas da corrente dominante começa a
ser abalado pela presente crise do capitalismo. Este manifesto da
Associação Francesa de Economia Política é um
indício de uma inquietação que começa a aflorar.
Entretanto, os signatários ainda estão longe de uma ruptura
radical com o pensamento dominante e, menos ainda, de preconizar uma ruptura
com o capitalismo pretendem apenas consertá-lo e parecem
acreditar que isso seria possível. O que os aterroriza são os
piores excessos do neoliberalismo e não o capitalismo. As reformas que
preconizam estão longe de serem uma panaceia e a sua exequibilidade
parece duvidosa sob a actual correlação de forças, ou
seja, sob a quase absoluta ditadura do capital financeiro. A presente
publicação neste sítio destina-se a documentar uma
incomodidade (louvável) que agora começa a afectar
economistas não marxistas.
resistir.info
Associação Francesa de Economia Política (AEFP)
Manifesto dos economistas aterrorizados
Crise e Dívida na Europa:
10 falsas evidências, 22 medidas em debate para sair do impasse
Philippe Askenazy
(CNRS, Ecole d'économie de Paris),
Thomas Coutrot
(Conselho Científico da Attac),
André Orléan
(CNRS, EHESS, Presidente da AFEP),
Henri Sterdyniak
(OFCE)
Introdução
A retoma económica mundial, que foi possível graças a uma
injecção colossal de fundos públicos no circuito
económico (desde os Estados Unidos à China) é
frágil, mas real. Apenas um continente continua em
retracção, a Europa. Reencontrar o caminho do crescimento
económico deixou de ser a sua prioridade política. A Europa
decidiu enveredar por outra via, a da luta contra os défices
públicos.
"Na União Europeia, estes défices são de facto
elevados 7% em média em 2010 mas muito inferiores aos 11%
dos Estados Unidos. Enquanto alguns estados norte-americanos com um peso
económico mais relevante do que a Grécia (como a
Califórnia, por exemplo), se encontram numa situação de
quase falência, os mercados financeiros decidiram especular com as
dívidas soberanas de países europeus, particularmente do Sul. A
Europa, de facto, encontra-se aprisionada na sua própria armadilha
institucional: os Estados são obrigados a endividar-se nas
instituições financeiras privadas que obtêm
injecções de liquidez, a baixo custo, do Banco Central Europeu
(BCE). Por conseguinte, os mercados têm em seu poder a chave do
financiamento dos Estados. Neste contexto, a ausência de solidariedade
europeia incentiva a especulação, ao mesmo tempo que as
agências de notação apostam na acentuação da
desconfiança.
Foi necessário que a agência Moody baixasse a
notação da Grécia, a 15 de Junho, para que os dirigentes
europeus redescobrissem o termo "irracionalidade", a que tanto
recorreram no início da crise do
subprime.
Da mesma forma que agora se descobre que a Espanha está muito mais
ameaçada pela fragilidade do seu modelo de crescimento e do seu sistema
bancário do que pela sua dívida pública."
Para "tranquilizar os mercados" foi improvisado um Fundo de
Estabilização do euro e lançados, por toda a Europa,
planos drásticos e em regra cegos de redução
das despesas públicas. As primeiras vítimas são os
funcionários públicos, como sucede em França, onde a
subida dos descontos para as suas pensões corresponderá a uma
redução escondida dos seus salários, encontrando-se o seu
número a diminuir um pouco por toda a parte, pondo em causa os
serviços públicos. Da Holanda a Portugal, passando pela
França com a actual reforma das pensões, as
prestações sociais estão em vias de ser severamente
amputadas. Nos próximos anos, o desemprego e a precariedade do emprego
vão seguramente aumentar. Estas medidas são irresponsáveis
de um ponto de vista político e social, mas também num plano
estritamente económico.
Esta política, que apenas muito provisoriamente acalmou a
especulação, teve já consequências extremamente
negativas em muitos países europeus, afectando de modo particular a
juventude, o mundo do trabalho e as pessoas em situação de maior
fragilidade. A longo prazo, esta política reactivará as
tensões na Europa e ameaçará por isso a própria
construção europeia, que é muito mais do que um projecto
económico. Supõe-se que a economia esteja ao serviço da
construção de um continente democrático, pacífico e
unido. Mas em vez disso, uma espécie de ditadura dos mercados é
hoje imposta por toda a parte, particularmente em Portugal, Espanha e
Grécia, três países que eram ditaduras no início da
década de setenta, ou seja, há apenas quarenta anos.
Quer se interprete como um desejo de "tranquilizar os mercados", por
parte de governantes assustados, quer se interprete como um pretexto para impor
opções ditadas pela ideologia, a submissão a esta ditadura
não é aceitável, uma vez que já demonstrou a sua
ineficácia económica e o seu potencial destrutivo no plano
político e social. Um verdadeiro debate democrático sobre as
escolhas de política económica deve pois ser aberto, em
França e na Europa. A maior parte dos economistas que intervém no
debate público, fazem-no para justificar ou racionalizar a
submissão das políticas às exigências dos mercados
financeiros. É certo que, um pouco por toda a parte, os poderes
públicos tiveram que improvisar planos keynesianos de
relançamento da economia e, por vezes, chegaram inclusive a nacionalizar
temporariamente os bancos. Mas eles querem fechar, o mais rapidamente
possível, este parêntese. A lógica neoliberal é
sempre a única que se reconhece como legítima, apesar dos seus
evidentes fracassos. Fundada na hipótese da eficiência dos
mercados financeiros, preconiza a redução da despesa
pública, a privatização dos serviços
públicos, a flexibilização do mercado de trabalho, a
liberalização do comércio, dos serviços financeiros
e dos mercados de capital, por forma a aumentar a concorrência em todos
os domínios e em toda a parte
Enquanto economistas, aterroriza-nos constatar que estas políticas
continuam a estar na ordem do dia e que os seus fundamentos teóricos
não sejam postos em causa. Mas os factos trataram de questionar os
argumentos utilizados desde há trinta anos para orientar as
opções das políticas económicas europeias. A crise
pôs a nu o carácter dogmático e infundado da maioria das
supostas evidências, repetidas até à saciedade por aqueles
que decidem e pelos seus conselheiros. Quer se trate da eficiência e da
racionalidade dos mercados financeiros, da necessidade de cortar nas despesas
para reduzir a dívida pública, quer se trate de reforçar o
"pacto de estabilidade", é imperioso questionar estas falsas
evidências e mostrar a pluralidade de opções
possíveis em matéria de política económica. Outras
escolhas são possíveis e desejáveis, com a
condição de libertar, desde já, o garrote imposto pela
indústria financeira às políticas públicas.
Procedemos de seguida a uma apresentação crítica de dez
postulados que continuam a inspirar, dia após dia, as decisões
dos poderes públicos em toda a Europa, apesar dos lancinantes
desmentidos que a crise financeira e as suas consequências nos revelam.
Trata-se de falsas evidências, que inspiram medidas injustas e
ineficazes, perante as quais expomos vinte e duas contrapropostas para debate.
Cada uma delas não reúne necessariamente a concordância
unânime dos signatários deste manifesto, mas deverão ser
levadas a sério, caso se pretenda resgatar a Europa do impasse em que
neste momento se encontra.
Falsa evidência n.º 1:
OS MERCADOS FINANCEIROS SÃO EFICIENTES
Existe hoje um facto que se impõe a todos os observadores: o papel
primordial que desempenham os mercados financeiros no funcionamento da
economia. Trata-se do resultado de uma longa evolução, que
começou nos finais da década de setenta. Independentemente da
forma como a possamos medir, esta evolução assinala uma clara
ruptura, tanto quantitativa como qualitativa, em relação
às décadas precedentes. Sob a pressão dos mercados
financeiros, a regulação do capitalismo transformou-se
profundamente, dando origem a uma forma inédita de capitalismo, que
alguns designaram por "capitalismo patrimonial", por
"capitalismo financeiro" ou, ainda, por "capitalismo
neoliberal".
Estas mudanças encontraram na hipótese da eficiência
informacional dos mercados financeiros a sua justificação
teórica. Com efeito, segundo esta hipótese, torna-se crucial
desenvolver os mercados financeiros e fazer com que eles possam funcionar o
mais livremente possível, dado constituírem o único
mecanismo de afectação eficaz do capital. As políticas
obstinadamente levadas a cabo nos últimos trinta anos seguem esta
recomendação. Trata-se de construir um mercado financeiro
mundialmente integrado, no qual todos os actores (empresas, famílias,
Estados, instituições financeiras) possam trocar toda a
espécie de títulos (acções,
obrigações, dívidas, derivados, divisas), em qualquer
prazo (longo, médio e curto). Os mercados financeiros assemelharam-se
cada vez mais ao mercado "sem fricção", de que falam os
manuais: o discurso económico convertera-se em realidade. Como os
mercados se tornaram cada vez mais "perfeitos", no sentido da teoria
económica dominante, os analistas acreditaram que doravante o sistema
financeiro passaria a ser muito mais estável que no passado. A
"grande moderação" o período de
crescimento económico sem subida dos salários, que os Estados
Unidos conheceram entre 1990 e 2007 parecia confirmá-lo.
Apesar de tudo o que aconteceu, o G20 persiste ainda hoje na ideia de que os
mercados financeiros constituem o melhor mecanismo de afectação
do capital. A primazia e integridade dos mercados financeiros continuam por
isso a ser os objectivos finais da nova regulação financeira. A
crise é interpretada não como o resultado inevitável da
lógica dos mercados desregulados, mas sim como um efeito da
desonestidade e irresponsabilidade de certos actores financeiros, mal vigiados
pelos poderes públicos.
A crise, porém, encarregou-se de demonstrar que os mercados não
são eficientes e que não asseguram uma afectação
eficaz do capital. As consequências deste facto em matéria de
regulação e de política económica são
imensas. A teoria da eficiência assenta na ideia de que os investidores
procuram (e encontram) a informação mais fiável
possível quanto ao valor dos projectos que competem entre si por
financiamento. Segundo esta teoria, o preço que se forma num mercado
reflecte a avaliação dos investidores e sintetiza o conjunto da
informação disponível: constitui, portanto, um bom
cálculo do verdadeiro valor dos activos. Ou seja, supõe-se que
esse valor resume toda a informação necessária para
orientar a actividade económica e, desse modo, a vida social. O capital
é, portanto, investido nos projectos mais rentáveis, deixando de
lado os projectos menos eficazes. Esta é a ideia central da teoria: a
concorrência financeira estabelece preços justos, que constituem
sinais fiáveis para os investidores, orientando eficazmente o
crescimento económico.
Mas a crise veio justamente confirmar o resultado de diversos trabalhos
científicos que puseram esta proposição em causa. A
concorrência financeira não estabelece, necessariamente,
preços justos. Pior: a concorrência financeira é,
frequentemente, destabilizadora e conduz a evoluções de
preços excessivas e irracionais, as chamadas bolhas financeiras.
O principal erro da teoria da eficiência dos mercados financeiros
consiste em transpor, para os produtos financeiros, a teoria usualmente
aplicada aos mercados de bens correntes. Nestes últimos, a
concorrência é em parte auto-regulada, em virtude do que se chama
a "lei" da oferta e da procura: quando o preço de um bem
aumenta, os produtores aumentam a sua oferta e os compradores reduzem a
procura; o preço baixa e regressa, portanto, ao seu nível de
equilíbrio. Por outras palavras, quando o preço de um bem
aumenta, existem forças de retracção que tendem a inverter
essa subida. A concorrência produz aquilo a que se chama "feedbacks
negativos", forças de retracção que vão em
sentido contrário ao da dinâmica inicial. A ideia da
eficiência nasce de uma transposição directa deste
mecanismo para o mercado financeiro.
Mas neste último caso a situação é muito diferente.
Quando o preço aumenta é frequente constatar não uma
descida mas sim um aumento da procura! De facto, a subida de preço
significa uma rentabilidade maior para aqueles que possuem o título, em
virtude das mais-valias que auferem. A subida de preço atrai portanto
novos compradores, o que reforça ainda mais a subida inicial. As
promessas de bónus incentivam os que efectuam as
transacções a ampliar ainda mais o movimento. Até ao
acidente, imprevisível mas inevitável, que provoca a
inversão das expectativas e o colapso. Este fenómeno, digno da
miopia dos "borregos de Panurge"
[1]
, é um processo de "feedbacks positivos" que agrava os
desequilíbrios. É a bolha especulativa: uma subida acumulada dos
preços que se alimenta a si própria. Deste tipo de processo
não resultam preços justos mas sim, pelo contrário,
preços inadequados.
O lugar preponderante que os mercados financeiros ocupam não pode,
portanto, conduzir a eficácia alguma. Mais do que isso, é uma
fonte permanente de instabilidade, como demonstra de forma clara a série
ininterrupta de bolhas que temos vindo a conhecer desde há vinte anos:
Japão, Sudeste Asiático, Internet, mercados emergentes, sector
imobiliário, titularização. A instabilidade financeira
traduz-se assim em fortes flutuações das taxas de câmbio e
da Bolsa, que manifestamente não têm qualquer
relação com os fundamentos da economia. Esta instabilidade,
nascida no sector financeiro, propaga-se a toda a economia real através
de múltiplos mecanismos.
Para reduzir a ineficiência e instabilidade dos mercados financeiros,
avançamos com quatro medidas:
Medida n.º 1:
Limitar, de forma muito estrita, os mercados financeiros e as actividades dos
actores financeiros, proibindo os bancos de especular por conta própria,
evitando assim a propagação das bolhas e dos colapsos;
Medida n.º 2:
Reduzir a liquidez e a especulação destabilizadora
através do controle dos movimentos de capitais e através de taxas
sobre as transacções financeiras;
Medida n.º 3:
Limitar as transacções financeiras às necessidades da
economia real (por exemplo, CDS unicamente para quem possua títulos
segurados, etc.);
Medida n.º 4:
Estabelecer tectos para
as remunerações dos operadores de transacções
financeiras.
Falsa evidência n.º 2:
OS MERCADOS FINANCEIROS FAVORECEM O CRESCIMENTO ECONÓMICO
A integração financeira conduziu o poder da finança ao seu
zénite, na medida em que ela unifica e centraliza a propriedade
capitalista à escala mundial. Daí em diante, é ela quem
determina as normas de rentabilidade exigidas ao conjunto dos capitais. O
projecto consistia em substituir o financiamento bancário dos
investidores pelo financiamento através dos mercados de capitais.
Projecto que fracassou porque hoje, globalmente, são as empresas quem
financia os accionistas, em vez de suceder o contrário.
Consequentemente, a governação das empresas transformou-se
profundamente para atingir as normas de rentabilidade exigidas pelos mercados
financeiros. Com o aumento exponencial do valor das acções,
impôs-se uma nova concepção da empresa e da sua
gestão, pensadas como estando ao serviço exclusivo dos
accionistas. E desapareceu assim a ideia de um interesse comum inerente
às diferentes partes, vinculadas à empresa. Os dirigentes das
empresas cotadas em Bolsa passaram a ter como missão primordial
satisfazer o desejo de enriquecimento dos accionistas. Por isso, eles mesmos
deixaram de ser assalariados, como denota o galopante aumento das suas
remunerações. De acordo com a teoria da
"agência", trata-se de proceder de modo a que os interesses dos
dirigentes estejam alinhados com os interesses dos accionistas.
Um ROE (
Return on Equity
ou rendimento dos capitais próprios) de 15% a 25% passa a constituir a
norma que impõe o poder da finança às empresas e aos
assalariados e a liquidez é doravante o seu instrumento, permitindo aos
capitais não satisfeitos, a qualquer momento, ir procurar rendimentos
noutro lugar. Face a este poder, tanto os assalariados como a soberania
política ficam, pelo seu fraccionamento, em condição de
inferioridade. Esta situação desequilibrada conduz a
exigências de lucros irrazoáveis, na medida em que reprimem o
crescimento económico e conduzem a um aumento contínuo das
desigualdades salariais. Por um lado, as exigências de lucro inibem
fortemente o investimento: quanto mais elevada for a rentabilidade exigida,
mais difícil se torna encontrar projectos com uma performance
suficientemente eficiente para a satisfazer. As taxas de investimento fixam-se
assim em níveis historicamente débeis, na Europa e nos Estados
Unidos. Por outro lado, estas exigências provocam uma constante
pressão para a redução dos salários e do poder de
compra, o que não favorece a procura. A desaceleração
simultânea do investimento e do consumo conduz a um crescimento
débil e a um desemprego endémico. Nos países
anglo-saxónicos, esta tendência foi contrariada através do
aumento do endividamento das famílias e através das bolhas
financeiras, que geram uma riqueza assente num crescimento do consumo sem
salários, mas que desemboca no colapso.
Para superar os efeitos negativos dos mercados financeiros sobre a actividade
económica, colocamos em debate três medidas:
Medida n.º 5:
Reforçar significativamente os contra-poderes nas empresas, de modo a
obrigar os dirigentes a ter em conta os interesses do conjunto das partes
envolvidas;
Medida n.º 6:
Aumentar fortemente os impostos sobre os salários muito elevados, de
modo a dissuadir a corrida a rendimentos insustentáveis;
Medida n.º 7:
Reduzir a dependência das empresas em relação aos mercados
financeiros, incrementando uma política pública de crédito
(com taxas preferenciais para as actividades prioritárias no plano
social e ambiental).
Falsa evidência n.º 3:
OS MERCADOS SÃO BONS JUIZES DO GRAU DE SOLVÊNCIA DOS ESTADOS
Segundo os defensores da eficiência dos mercados financeiros, os
operadores de mercado teriam em conta a situação objectiva das
finanças públicas para avaliar o risco de subscrever um
empréstimo ao Estado. Tomemos o exemplo da dívida grega: os
operadores financeiros, e todos quantos tomam as decisões, recorreram
unicamente às avaliações financeiras para ajuizar sobre a
situação. Assim, quando a taxa exigida à Grécia
ascendeu a mais de 10%, cada um deduziu que o risco de incumprimento de
pagamento estaria próximo: se os investidores exigem tamanho
prémio de risco é porque o perigo é extremo.
Mas há nisto um profundo erro, quando compreendemos a verdadeira
natureza das avaliações feitas pelos mercados financeiros. Como
não é eficiente, o mais provável é que apresente
preços completamente desconectados dos fundamentos económicos.
Nessas condições, é irrazoável entregar unicamente
às avaliações financeiras a análise de uma dada
situação. Atribuir um valor a um título financeiro
não é uma operação comparável a medir uma
proporção objectiva, como por exemplo calcular o peso de um
objecto. Um título financeiro é um direito sobre rendimentos
futuros: para o avaliar é necessário prever o que será o
futuro. É uma questão de valoração, não uma
tarefa objectiva, porque no instante
t
o futuro não se encontra de nenhum modo predeterminado. Nas salas de
mercado, as coisas são o que os operadores imaginam que venham a ser. O
preço de um activo financeiro resulta de uma avaliação, de
uma crença, de uma aposta no futuro: nada assegura que a
avaliação dos mercados tenha alguma espécie de
superioridade sobre as outras formas de avaliação.
A avaliação financeira não é, sobretudo, neutra:
ela afecta o objecto que é medido, compromete e constrói um
futuro que imagina. Deste modo, as agências de notação
financeira contribuem largamente para determinar as taxas de juro nos mercados
obrigacionistas, atribuindo classificações carregadas de grande
subjectividade, contaminadas pela vontade de alimentar a instabilidade, fonte
de lucros especulativos. Quando baixam a notação de um Estado, as
agências de notação aumentam a taxa de juro exigida pelos
actores financeiros para adquirir os títulos da dívida
pública desse Estado e ampliam assim o risco de colapso, que elas mesmas
tinham anunciado.
Para reduzir a influência da psicologia dos mercados no financiamento dos
Estados, colocamos em debate duas medidas:
Medida n.º 8:
As agências de notação financeira não devem estar
autorizadas a influenciar, de forma arbitrária as taxas de juro dos
mercados de dívida pública, baixando a notação de
um Estado: a sua actividade deve ser regulamentada, exigindo-se que essa
classificação resulte de um cálculo económico
transparente;
Medida n.º 8 (b):
Libertar os Estados da ameaça dos mercados financeiros, garantindo a
compra de títulos da dívida pública pelo BCE.
Falsa evidência n.º 4:
A SUBIDA ESPECTACULAR DAS DÍVIDAS PÚBLICAS É O RESULTADO
DE UM EXCESSO DE DESPESAS
Michel Pébereau, um dos "padrinhos" da banca francesa,
descrevia em 2005, num dos seus relatórios oficiais
ad hoc,
uma França asfixiada pela dívida pública e que
sacrificava as suas gerações futuras ao entregar-se a gastos
sociais irreflectidos. O Estado endividava-se como um pai de família
alcoólico, que bebe acima das suas posses: é esta a visão
que a maioria dos editorialistas costuma propagar. A explosão recente da
dívida pública na Europa e no mundo deve-se porém a outra
coisa: aos planos de salvamento do sector financeiro e, sobretudo, à
recessão provocada pela crise bancária e financeira que
começou em 2008: o défice público médio na zona
euro era apenas de 0,6% do PIB em 2007, mas a crise fez com que passasse para
7%, em 2010. Ao mesmo tempo, a dívida pública passou de 66% para
84% do PIB.
O aumento da dívida pública, contudo, tanto em França como
em muitos outros países europeus, foi inicialmente moderado e antecedeu
esta recessão: provém, em larga medida, não de uma
tendência para a subida das despesas públicas dado que,
pelo contrário, desde o início da década de noventa estas
se encontravam estáveis ou em declínio na União Europeia,
em proporção do PIB mas sim à quebra das receitas
públicas, decorrente da debilidade do crescimento económico nesse
período e da contra-revolução fiscal que a maioria dos
governos levou a cabo nos últimos vinte e cinco anos. A longo prazo, a
contra-revolução fiscal alimentou continuamente a
dilatação da dívida, de recessão em
recessão. Em França, um recente estudo parlamentar situa em
100.000 milhões de euros, em 2010, o custo das descidas de impostos,
aprovadas entre 2000 e 2010, sem que neste valor estejam sequer
incluídas as exonerações relativas a
contribuições para a segurança social (30.000
milhões) e outros "encargos fiscais". Perante a ausência
de uma harmonização fiscal, os Estados europeus dedicaram-se
livremente à concorrência fiscal, baixando os impostos sobre as
empresas, os salários mais elevados e o património. Mesmo que o
peso relativo dos factores determinantes varie de país para país,
a subida quase generalizada dos défices públicos e dos
rácios de dívida pública na Europa, ao longo dos
últimos trinta anos, não resulta fundamentalmente de uma deriva
danosa das despesas públicas. Um diagnóstico que abre,
evidentemente, outras pistas para além da eterna exigência de
redução da despesa pública.
Para instaurar um debate público informado acerca da origem da
dívida e dos meios de a superar, colocamos em debate uma proposta:
Medida n.º 9:
Efectuar uma auditoria pública das dívidas soberanas, de modo a
determinar a sua origem e a conhecer a identidade dos principais detentores de
títulos de dívida e os respectivos montantes que possuem.
Falsa evidência n.º 5:
É PRECISO REDUZIR AS DESPESAS PARA DIMINUIR A DÍVIDA
PÚBLICA
Mesmo que o aumento da dívida pública tivesse resultado, em
parte, de um aumento das despesas públicas, o corte destas despesas
não contribuiria necessariamente para a solução, porque a
dinâmica da dívida pública não tem muito que ver com
a de uma casa: a macroeconomia não é redutível à
economia doméstica. A dinâmica da dívida depende de
vários factores: do nível dos défices primários,
mas também da diferença entre a taxa de juro e a taxa de
crescimento nominal da economia.
Ora, se o crescimento da economia for mais débil do que a taxa de juro,
a dívida cresce mecanicamente devido ao "efeito de bola de
neve": o montante dos juros dispara, o mesmo sucedendo com o défice
total (que inclui os juros da dívida). Foi assim que, no início
da década de noventa, a política do franco forte levada a cabo
por Bérégovoy e que se manteve apesar da recessão
de 1993/94 se traduziu numa taxa de juro durante muito tempo mais
elevada do que a taxa de crescimento, o que explica a subida abrupta da
dívida pública em França neste período. Trata-se do
mesmo mecanismo que permite compreender o aumento da dívida durante a
primeira metade da década de oitenta, sob o impacto da
revolução neoliberal e da política de taxas de juro
elevadas, conduzidas por Ronald Reagan e Margaret Thatcher.
Mas a própria taxa de crescimento da economia não é
independente da despesa pública: no curto prazo, a existência de
despesas públicas estáveis limita a magnitude das
recessões ("estabilizadores automáticos"); no longo
prazo, os investimentos e as despesas públicas (educação,
saúde, investigação, infra-estruturas
) estimulam o
crescimento. É falso afirmar que todo o défice público
aumenta necessariamente a dívida pública, ou que qualquer
redução do défice permite reduzir a dívida. Se a
redução dos défices compromete a actividade
económica, a dívida aumentará ainda mais. Os comentadores
liberais sublinham que alguns países (Canadá, Suécia,
Israel) efectuaram ajustes brutais nas suas contas públicas nos anos
noventa e conheceram, de imediato, um forte salto no crescimento. Mas isso
só é possível se o ajustamento se aplicar a um país
isolado, que adquire novamente competitividade face aos seus concorrentes.
Evidentemente, os partidários do ajustamento estrutural europeu
esquecem-se que os países têm como principais clientes e
concorrentes os outros países europeus, já que a União
Europeia está globalmente pouco aberta ao exterior. Uma
redução simultânea e maciça das despesas
públicas, no conjunto dos países da União Europeia, apenas
pode ter como consequência uma recessão agravada e, portanto, uma
nova subida da dívida pública.
Para evitar que o restabelecimento das finanças públicas provoque
um desastre social e político, lançamos para debate duas medidas:
Medida n.º 10:
Manter os níveis de protecção social e, inclusivamente,
reforçá-los (subsídio de desemprego,
habitação
);
Medida n.º 11:
Aumentar o esforço orçamental em matéria de
educação, de investigação e de investimento na
reconversão ecológica e ambiental
tendo em vista estabelecer
as condições de um crescimento sustentável, capaz de
permitir uma forte descida do desemprego.
Falsa evidência n.º 6:
A DÍVIDA PÚBLICA TRANSFERE O CUSTO DOS NOSSOS EXCESSOS PARA OS
NOSSOS NETOS
A afirmação de que a dívida pública constitui uma
transferência de riqueza que prejudica as gerações futuras
é outra afirmação falaciosa, que confunde economia
doméstica com macroeconomia. A dívida pública é um
mecanismo de transferência de riqueza, mas é-o sobretudo dos
contribuintes comuns para os rentistas.
De facto, baseando-se na crença, raramente comprovada, de que a
redução dos impostos estimula o crescimento e aumenta,
posteriormente, as receitas públicas, os Estados europeus têm
vindo a imitar os Estados Unidos desde 1980, adoptando uma política
sistemática de redução da carga fiscal. Multiplicaram-se
as reduções de impostos e das contribuições para a
segurança social (sobre os lucros das sociedades, sobre os rendimentos
dos particulares mais favorecidos, sobre o património e sobre as
cotizações patronais), mas o seu impacto no crescimento
económico continua a ser muito incerto. As políticas fiscais
anti-redistributivas agravaram, por sua vez, e de forma acumulada, as
desigualdades sociais e os défices públicos.
Estas políticas de redução fiscal obrigaram as
administrações públicas a endividar-se junto dos agregados
familiares favorecidos, através dos mercados financeiros, de modo a
financiar os défices gerados. É o que se poderia chamar de
"efeito
jackpot
": com o dinheiro poupado nos seus impostos, os ricos puderam adquirir
títulos (portadores de juros) da dívida pública, emitida
para financiar os défices públicos provocados pelas
reduções de impostos
Por esta via, o serviço da
dívida pública em França representa 40.000 milhões
de euros, quase tanto como as receitas do imposto sobre o rendimento. Mas esta
jogada é ainda mais brilhante, pelo facto de ter conseguido convencer a
opinião pública de que os culpados da dívida
pública eram os funcionários, os reformados e os doentes.
O aumento da dívida pública na Europa ou nos Estados Unidos
não é portanto o resultado de políticas keynesianas
expansionistas ou de políticas sociais dispendiosas, mas sim o resultado
de uma política que favorece as camadas sociais privilegiadas: as
"despesas fiscais" (descida de impostos e de
contribuições) aumentaram os rendimentos disponíveis
daqueles que menos necessitam, daqueles que desse modo puderam aumentar ainda
mais os seus investimentos, sobretudo em Títulos do Tesouro, remunerados
em juros pelos impostos pagos por todos os contribuintes. Em suma,
estabeleceu-se um mecanismo de redistribuição invertido, das
classes populares para as classes mais favorecidas, através da
dívida pública, cuja contrapartida é sempre o rendimento
privado.
Para corrigir de forma equitativa as finanças públicas na Europa
e em França, colocamos em debate duas medidas:
Medida n.º 12:
Atribuir de novo um carácter fortemente redistributivo à
fiscalidade directa sobre os rendimentos (supressão das
deduções fiscais, criação de novos escalões
de impostos e aumento das taxas sobre os rendimentos
);
Medida n.º 13
: Acabar com as isenções de que beneficiam as empresas que
não tenham um efeito relevante sobre o emprego.
Falsa evidência n.º 7:
É PRECISO ASSEGURAR A ESTABILIDADE DOS MERCADOS FINANCEIROS PARA PODER
FINANCIAR A DÍVIDA PÚBLICA
Deve analisar-se, a nível mundial, a correlação entre a
subida das dívidas públicas e a financeirização da
economia. Nos últimos trinta anos, favoráveis à
liberalização total da circulação de capitais, o
sector financeiro aumentou consideravelmente a sua influência sobre a
economia. As grandes empresas recorrem cada vez menos ao crédito
bancário e cada vez mais aos mercados financeiros. Do mesmo modo, as
famílias vêem uma parte cada vez maior das suas poupanças
ser drenada para o mercado financeiro (como no caso das pensões),
através dos diversos produtos de investimento e, inclusivamente, em
alguns países, através do financiamento da sua
habitação (por crédito hipotecário). Os gestores de
carteiras que tentam diversificar os riscos procuram títulos
públicos como complemento aos títulos privados. E encontram-nos
facilmente nos mercados, em virtude de os governos terem levado a cabo
políticas similares, que conduziram a um relançamento dos
défices: taxas de juro elevadas, descida dos impostos sobre os altos
rendimentos, incentivo maciço à poupança financeira das
famílias para favorecer a capitalização através da
poupança reforma, etc.
Ao nível europeu, a financeirização da dívida
pública encontra-se inscrita nos tratados: com Maastricht, os Bancos
Centrais ficaram proibidos de financiar directamente os Estados, que devem
encontrar quem lhes conceda empréstimos nos mercados financeiros. Esta
"repressão monetária" acompanha a
"liberalização financeira" e gera exactamente o
contrário das políticas adoptadas após a grave crise da
década de 30; politicas de "repressão financeira"
(drásticas restrições à liberdade de movimento dos
capitais) e de "liberalização monetária" (com o
fim do regime do padrão-ouro). Trata-se de submeter os Estados, que se
supõe serem por natureza despesistas, à disciplina dos mercados
financeiros, que se supõe serem, por natureza, eficientes e omniscientes.
Como resultado desta escolha doutrinária, o Banco Central Europeu
não tem por isso legitimidade para subscrever directamente a
emissão de obrigações públicas dos Estados
europeus. Privados da garantia de se poderem financiar junto do BCE, os
países do sul tornaram-se presas fáceis dos ataques
especulativos. De facto, ainda que em nome de uma ortodoxia sem fissuras, o
Banco Central Europeu que sempre se recusou a fazê-lo teve
de comprar, desde há alguns meses a esta parte
obrigações de Estado à taxa de juro do mercado, de modo a
acalmar as tensões nos mercados de obrigações europeu. Mas
nada nos diz que isso seja suficiente, caso a crise da dívida se agrave
e as taxas de juro de mercado disparem. Poderá então ser
difícil manter esta ortodoxia monetária, que carece,
manifestamente, de fundamentos científicos sérios.
Para resolver o problema da dívida pública, colocamos em debate
duas medidas:
Medida n.º 14
: Autorizar o Banco Central Europeu a financiar directamente os Estados (ou a
impor aos bancos comerciais a subscrição de
obrigações públicas emitidas), a um juro reduzido,
aliviando desse modo o cerco que lhes é imposto pelos mercados
financeiros;
Medida n.º 15
: Caso seja necessário, reestruturar a dívida pública,
limitando por exemplo o seu peso a determinado valor percentual do PIB, e
estabelecendo uma discriminação entre os credores segundo o
volume de títulos que possuam: os grande rentistas (particulares ou
instituições) deverão aceitar uma extensão da
maturidade da dívida, incluindo anulações parciais ou
totais. E é igualmente necessário voltar a negociar as
exorbitantes taxas de juro dos títulos emitidos pelos países que
entraram em dificuldades na sequência da crise.
Falsa evidência n.º 8:
A UNIÃO EUROPEIA DEFENDE O MODELO SOCIAL EUROPEU
A construção europeia constitui uma experiência
ambígua. Nela coexistem duas visões de Europa que não
ousam contudo enfrentar-se abertamente. Para os social-democratas, a Europa
deveria dedicar-se a promover o modelo social europeu, fruto do compromisso
obtido após a Segunda Guerra Mundial, a partir dos princípios que
o mesmo consubstancia: protecção social, serviços
públicos e políticas industriais. A Europa deveria, nesses
termos, ter erguido uma muralha defensiva perante a globalização
liberal, uma forma de proteger, manter vivo e fazer progredir o modelo social
europeu. A Europa deveria ter defendido uma visão específica
sobre a organização da economia mundial e a
regulação da globalização através de
organizações de governação mundial. Como deveria
ter permitido aos seus países membros manter um elevado nível de
despesas públicas e de redistribuição, protegendo a sua
capacidade de as financiar através da harmonização da
fiscalidade sobre as pessoas, as empresas e os rendimentos do capital.
A Europa, contudo, não quis assumir a sua especificidade. A visão
hoje dominante em Bruxelas e no seio da maioria dos governos nacionais
é, pelo contrário, a de uma Europa liberal, cujo objectivo
está centrado em adaptar as sociedades europeias às
exigências da globalização: a construção
europeia constitui nestes termos a oportunidade de colocar em causa o modelo
social europeu e de desregular a economia. A prevalência do direito da
concorrência sobre as regulamentações nacionais e sobre os
direitos sociais no Mercado Único permitiu introduzir mais
concorrência nos mercados de bens e de serviços, diminuir a
importância dos serviços públicos e apostar na
concorrência entre os trabalhadores europeus. A concorrência social
e fiscal permitiu por sua vez reduzir os impostos, sobretudo os que incidem
sobre os rendimentos do capital e das empresas (as "bases
móveis") e exercer pressão sobre as despesas sociais. Os
tratados garantem quatro liberdades fundamentais: a livre
circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capitais.
Mas longe de se restringir ao mercado interno, a liberdade de
circulação de capitais foi alargada aos investidores do mundo
inteiro, submetendo assim o tecido produtivo europeu aos constrangimentos e
imperativos da valorização dos capitais internacionais. A
construção europeia configura-se deste modo como uma forma de
impor aos povos as reformas neoliberais.
A organização da política macroeconómica
(independência do BCE face às estruturas de decisão
política, Pacto de Estabilidade) encontra-se marcada pela
desconfiança relativamente aos governos democraticamente eleitos.
Pretende privar completamente os países da sua autonomia tanto em
matéria de política monetária, como de política
orçamental. O equilíbrio orçamental deve ser
forçosamente atingido, banindo-se qualquer política deliberada de
relançamento económico, pelo que apenas se pode participar no
jogo da "estabilização automática". Ao
nível da zona euro, não se admite nem se concebe nenhuma
política conjuntural comum, como não se define qualquer objectivo
comum em termos de crescimento ou de emprego. As diferenças quanto
à situação em que se encontra cada país não
são tidas em conta, pois o Pacto de Estabilidade não se comove
nem com as taxas de inflação nem com os défices nacionais
externos; os objectivos fixados para as finanças públicas
não contemplam a especificidade da situação
económica de cada país membro.
As instâncias europeias procuraram impulsionar reformas estruturais
(através das Grandes Orientações de Política
Económica, do Método Aberto de Coordenação ou da
Agenda de Lisboa), com um êxito muito desigual. Como o método de
elaboração destas instâncias não é
democrático nem mobilizador, a sua orientação liberal
jamais poderia contemplar as políticas decididas a nível
nacional, atendendo às relações de força existentes
em cada país. Esta orientação não pôde assim
alcançar os sucessos incontestáveis que teria, de outro modo,
legitimado. O movimento de liberalização económica foi
posto em causa (com o fracasso da Directiva Bolkestein); tendo alguns
países tentado nacionalizar as suas políticas industriais, ao
mesmo tempo que a maioria se opôs à europeização das
suas políticas fiscais e sociais. A Europa Social continua a ser um
conceito vazio de conteúdo, apenas se afirmando vigorosamente a Europa
da Concorrência e a Europa da Finança.
Para que a Europa possa promover verdadeiramente o modelo social europeu,
colocamos à discussão duas medidas:
Medida n.º 16
: Pôr em causa a livre circulação de capitais e de
mercadorias entre a União Europeia e o resto do mundo, renegociando se
necessário os acordos multilaterais ou bilaterais actualmente em vigor;
Medida n.º 17
: Substituir a política da concorrência pela
"harmonização e prosperidade", enquanto fio condutor da
construção europeia, estabelecendo objectivos comuns vinculativos
tanto em matéria de progresso social como em matéria de
políticas macroeconómicas (através de GOPS: Grandes
Orientações de Política Social).
Falsa evidência n.º 9:
O EURO É UM ESCUDO DE PROTECÇÃO CONTRA A CRISE
O euro deveria ter funcionado como um factor de protecção contra
a crise financeira mundial, uma vez que a supressão da incerteza quanto
às taxas de câmbio entre as moedas europeias eliminou um factor
relevante de instabilidade. Mas não é isso que tem sucedido: a
Europa é afectada de uma forma mais dura e prolongada pela crise do que
o resto do mundo, por factores que radicam nas opções tomadas no
processo de unificação monetária.
Após 1999, a zona euro revelou um crescimento económico
relativamente medíocre e um aumento das divergências entre os seus
Estados membros em termos de crescimento, inflação, desemprego e
desequilíbrios externos. O quadro de política económica da
zona euro, que tende a impor políticas macroeconómicas
semelhantes a países com situações muito distintas ampliou
assim as disparidades de crescimento entre os Estados membros. Na generalidade
dos países, sobretudo nos maiores, a introdução do euro
não suscitou a prometida aceleração do crescimento. Para
outros, o euro trouxe crescimento, mas à custa de desequilíbrios
dificilmente sustentáveis. A rigidez monetária e
orçamental, reforçada pelo euro, concentrou todo o peso do
ajustamento no trabalho, promovendo a flexibilidade e a austeridade salariais,
reduzindo a componente dos salários no rendimento total e aumentando as
desigualdades.
Esta trajectória de degradação social foi ganha pela
Alemanha, que conseguiu gerar importantes excedentes comerciais à custa
dos seus vizinhos e, sobretudo, dos seus próprios assalariados, impondo
uma descida dos custos do trabalho e das prestações sociais que
lhe conferiu uma vantagem comercial face aos outros Estados membros, incapazes
de tratar de forma igualmente violenta os seus trabalhadores. Os excedentes
comerciais alemães limitaram portanto o crescimento de outros
países. Os défices orçamentais e comerciais de uns
não são senão a contrapartida dos excedentes de
outros
O que significa que os Estados membros não foram capazes de
definir uma estratégia coordenada.
A zona euro deveria, de facto, ter sido menos afectada pela crise financeira do
que os Estados Unidos e o Reino Unido, pois as famílias da zona euro
estão nitidamente menos dependentes dos mercados financeiros, que
são menos sofisticados. Por outro lado, as finanças
públicas encontravam-se em melhor situação; o
défice público do conjunto dos países da zona euro era de
0,6% do PIB em 2007, contra os quase 3% dos EUA, do Reino Unido ou do
Japão. Mas a zona euro padecia já então de um agravamento
profundo dos desequilíbrios: os países do Norte (Alemanha,
Áustria, Holanda, países escandinavos), comprimiam a massa
salarial e a procura interna, acumulando excedentes externos, ao passo que os
países do Sul e periféricos (Espanha, Grécia, Irlanda)
revelavam um crescimento vigoroso, impulsionado pelas baixas taxas de juro
(relativamente à taxa de crescimento), acumulando todavia défices
externos.
A crise financeira começou, de facto, nos Estados Unidos, que trataram
imediatamente de accionar uma política efectiva de relançamento
orçamental e monetário, dando início a um movimento de
restauração da regulação financeira. Mas a Europa,
pelo contrário, não soube empenhar-se numa política
suficientemente reactiva. De 2007 a 2010, o impulso orçamental ficou-se
timidamente nos cerca de 1,6% do PIB na zona euro, sendo de 3,2% no Reino Unido
e de 4,2% nos EUA. As perdas na produção causadas pela crise
foram nitidamente mais fortes na zona euro do que nos Estados Unidos. Na zona
euro, a agudização dos défices precedeu portanto qualquer
política activa, comprometendo os seus resultados.
Simultaneamente, a Comissão Europeia continuou a aprovar procedimentos
contra os países em défice excessivo, a ponto de em meados de
2010 praticamente todos os Estados membros da zona euro estarem sujeitos a
esses procedimentos. A Comissão obrigou então os Estados membros
da zona euro a regressar, até 2013 e 2014, a valores percentuais de
défice inferiores a 3%, independentemente da evolução
económica que pudesse verificar-se. As instâncias europeias
continuaram portanto a exigir políticas salariais restritivas e a
regressão sistemática dos sistemas públicos de reforma e
de saúde, com o risco evidente de mergulhar o continente na
depressão e de suscitar tensões entre os diferentes
países. Esta ausência de coordenação e,
fundamentalmente, de um verdadeiro orçamento europeu, capazes de
suportar uma solidariedade efectiva entre os Estados membros, incitaram os
agentes financeiros a afastar-se do euro, preferindo especular abertamente
contra ele.
Para que o euro possa proteger realmente os cidadãos europeus da crise,
colocamos em debate três medidas:
Medida n.º 18
: Assegurar uma verdadeira coordenação das políticas
macroeconómicas e uma redução concertada dos
desequilíbrios comerciais entre os países europeus;
Medida n.º 19
: Compensar os desequilíbrios da balança de pagamentos na Europa
através de um Banco de Pagamentos (que organize os empréstimos
entre países europeus);
Medida n.º 20
: Se a crise do euro conduzir à sua desintegração, e
enquanto se aguarda pelo surgimento de um orçamento europeu (cf. infra),
instituir um regime monetário intra-europeu (com moeda comum do tipo
"bancor"), que seja capaz de reorganizar a absorção dos
desequilíbrios entre balanças comerciais no seio da Europa.
Falsa evidência n.º 10:
A CRISE GREGA PERIMITIU FINALMENTE AVANÇAR PARA UM GOVERNO
ECONÓMICO E UMA VERDADEIRA SOLIDARIEDADE EUROPEIA
A partir de meados de 2009 os mercados financeiros começaram a especular
com as dívidas dos países europeus. Globalmente, a forte subida
das dívidas e dos défices públicos à escala mundial
não provocou (pelo menos ainda) uma subida das taxas de juro de longo
prazo: os operadores financeiros estimam que os bancos centrais
manterão, por muito tempo, as taxas de juro reais a um nível
próximo do zero, e que não existe um risco de
inflação nem de incumprimento de pagamento por parte de um grande
país. Mas os especuladores aperceberam-se das falhas de
organização da zona euro. Enquanto que os governantes de outros
países desenvolvidos podem sempre financiar-se junto do seu Banco
Central, os países da zona euro renunciaram a essa possibilidade,
passando a depender totalmente dos mercados para financiar os seus
défices. Num só golpe, a especulação abateu-se
sobre os países mais frágeis da zona euro: Grécia,
Espanha, Irlanda.
As instâncias europeias e os governos demoraram a reagir, não
querendo dar a ideia de que os países membros tinham direito a dispor de
um apoio ilimitado dos seus parceiros, e pretendendo, ao mesmo tempo, sancionar
a Grécia, culpada por ter mascarado com a ajuda da Goldman Sachs
a amplitude dos seus défices. Porém, em Maio de 2010, o
BCE e os países membros foram forçados a criar com urgência
um Fundo de Estabilização, capaz de indicar aos mercados que
seria dado um apoio sem limites aos países ameaçados. Em
contrapartida, estes deveriam anunciar programas de austeridade
orçamental sem precedentes, que os condenam a um recuo da actividade
económica no curto prazo e a um longo período de recessão.
Sob pressão do FMI e da Comissão Europeia, a Grécia
é forçada a privatizar os seus serviços públicos e
a Espanha obrigada a flexibilizar o seu mercado de trabalho. E mesmo a
França e a Alemanha, que não são vítimas do ataque
especulativo, anunciaram medidas restritivas.
Contudo, globalmente, a oferta não é de nenhum modo excessiva na
Europa. A situação das finanças públicas é
melhor do que a dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha, deixando margens
de manobra orçamental. É por isso necessário reabsorver os
desequilíbrios de forma coordenada: os países
excedentários do Norte e do centro da Europa devem encetar
políticas expansionistas (com o aumento dos salários e das
prestações sociais), tendo em vista compensar as políticas
restritivas dos países do Sul. Globalmente, a política
orçamental não deve ser restritiva na zona euro, tanto mais que a
economia europeia não se aproxima do pleno emprego a uma velocidade
satisfatória.
Mas, infelizmente, os defensores das políticas orçamentais
automáticas e restritivas encontram-se hoje em posição
reforçada na Europa. A crise grega fez esquecer as origens da crise
financeira. Aqueles que aceitaram apoiar financeiramente os países do
Sul querem impor, em contrapartida, um endurecimento do Pacto de Estabilidade.
A Comissão e a Alemanha pretendem obrigar todos os países membros
a inscrever o objectivo de equilíbrio orçamental nas suas
constituições e vigiar as suas políticas
orçamentais por comissões de peritos independentes. A
Comissão quer impor aos países uma longa cura de austeridade para
que se regresse a uma dívida pública inferior a 60% do PIB. Se
existe algum avanço em matéria de governo económico
europeu, é um avanço em direcção a um governo que,
em vez de libertar o garrote das finanças, pretende impor a austeridade
e aprofundar as "reformas" estruturais, em detrimento das
solidariedades sociais em cada país e entre os diversos países.
A crise oferece de mão beijada, às elites financeiras e aos
tecnocratas europeus, a tentação de pôr em prática a
"estratégia do choque", tirando proveito da crise para
radicalizar a agenda neoliberal. Mas esta política tem poucas
hipóteses de sucesso, uma vez que:
A diminuição das despesas públicas comprometerá o
esforço necessário, à escala europeia, para assegurar
despesas futuras (investigação, educação,
prestações familiares), apoiar a manutenção da
indústria europeia e para investir nos sectores do futuro (economia
verde);
A crise permitirá impor reduções drásticas nas
despesas sociais, objectivo incansavelmente perseguido pelos paladinos do
neoliberalismo, comprometendo perigosamente a coesão social, reduzindo a
procura efectiva, empurrando as famílias a poupar para as suas reformas
e a sua saúde junto das instituições financeiras,
responsáveis pela crise;
Os governos e as instâncias europeias recusam-se a estruturar a
harmonização fiscal, que permitiria um necessário aumento
de impostos sobre o sector financeiro, sobre o património e sobre os
altos rendimentos;
Os países europeus terão de implementar, por um longo
período, políticas orçamentais restritivas que vão
afectar fortemente o crescimento. As receitas fiscais diminuirão e os
saldos públicos apenas registarão ligeiras melhoras. Os
rácios de dívida irão degradar-se e os mercados não
ficarão tranquilos;
Face à diversidade de culturas políticas e sociais, nem todos
os países europeus se poderão ajustar à disciplina de
ferro imposta pelo Tratado de Maastricht; nem se ajustarão ao seu
reforço, que actualmente se prepara. O risco de activação
de uma dinâmica generalizada de recusa deste reforço é real.
Para avançar no sentido de um verdadeiro governo económico e de
uma verdadeira solidariedade europeia, propomos para discussão duas
medidas:
Medida n.º 21
: Desenvolver uma verdadeira fiscalidade europeia (taxa de carbono, imposto
sobre os lucros, etc.) e um verdadeiro orçamento europeu, que
favoreçam a convergência das economias para uma maior equidade nas
condições de acesso aos serviços públicos e
serviços sociais nos diferentes Estados membros, com base nas melhores
experiências e modelos;
Medida n.º 22
: Lançar um vasto plano europeu, financiado por subscrição
pública a taxas de juro reduzidas mas com garantia, e/ou através
da emissão monetária do BCE, tendo em vista encetar a
reconversão ecológica da economia europeia.
Conclusão
DEBATER A POLÍTICA ECONÓMICA, TRAÇAR CAMINHOS PARA
REFUNDAR A UNIÃO EUROPEIA
A Europa foi construída, durante três décadas, a partir de
uma base tecnocrática que excluiu as populações do debate
de política económica. A doutrina neoliberal, que assenta na
hipótese, hoje indefensável, da eficiência dos mercados
financeiros, deve ser abandonada. É necessário abrir o
espaço das políticas possíveis e colocar em debate
propostas alternativas e coerentes, capazes de limitar o poder financeiro e
preparar a harmonização, no quadro do progresso dos sistemas
económicos e sociais europeus. O que supõe a partilha
mútua de importantes recursos orçamentais, obtidos através
do desenvolvimento de uma fiscalidade europeia fortemente redistributiva. Tal
como é necessário libertar os Estados do cerco dos mercados
financeiros. Somente desta forma o projecto de construção
europeia poderá encontrar uma legitimidade popular e democrática
de que hoje carece.
Não é evidentemente realista supor que os 27 países
europeus decidam, ao mesmo tempo, encetar uma tamanha ruptura face ao
método e aos objectivos da construção europeia. A
Comunidade Económica Europeia (CEE) começou com seis
países: do mesmo modo, a refundação da União
Europeia passará inicialmente por um acordo entre alguns países
que desejem explorar caminhos alternativos. À medida que se tornem
evidentes as consequências desastrosas das políticas actualmente
adoptadas, o debate sobre as alternativas crescerá por toda a Europa. As
lutas sociais e as mudanças políticas surgirão a ritmos
diferentes, consoante os países. Os governos nacionais tomarão
decisões inovadoras. Os que assim o desejem deverão adoptar
formas de cooperação reforçadas para tomar medidas audazes
em matéria de regulação financeira, de política
fiscal e de política social. Através de propostas concretas,
estenderemos as mãos aos outros povos para que se juntem a este
movimento.
É por isso que nos parece importante esboçar e debater, neste
momento, as grandes linhas das políticas económicas alternativas,
que tornarão possível esta refundação da
construção europeia.
NT: [1] Imitar os outros, perdendo todo o sentido crítico.
O original encontra-se em
http://www.assoeconomiepolitique.org/IMG/article_PDF/article_a140.pdf
;
a versão em português em
http://passos-perdidos.blogspot.com/
. Tradução de Nuno Serra; revisão de João Rodrigues.
Este manifesto encontra-se em
http://resistir.info/
.
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