Algumas verdades sobre a crise financeira

por Gérard Duménil [*]
entrevistado por Thierry Brun

. A recente crise do crédito e da bolsa sublinha, mais uma vez, a amplitude das desregulamentações financeiras próprias do neoliberalismo. De que se trata?

Gérard Duménil: A queda das bolsas, brutal mas rapidamente corrigida por enquanto, é de facto um efeito secundário de uma crise do crédito. Mais precisamente, de uma crise de um tipo particular de crédito. A criatividade das instituições financeiras neoliberais parece sem limites. Desde que o lucro esteja ao alcance da mão, novos procedimentos são postos em acção. E o mais extraordinário, no caso, é a capacidade destas instituições de transferir uma grande parte destes riscos a outros agentes. É bem sabido que o crescimento da economia dos Estados Unidos repousa amplamente na despesas das famílias, num consumo louco dos mais ricos e numa extensão sem precedentes nem comparação do crédito hipotecário às famílias, ou seja, um stock crescente de créditos a muito longo prazo à habitação (mas que, naquele país, servem igualmente para outras compras). As taxas de juro sobre estes créditos permanecem relativamente baixas (são as taxas de juros a curto prazo que sobem).

Como podem os bancos sustentar este endividamento crescente? Há que sublinhar a importância histórica das agências federais cuja função é "recomprar" aos bancos prestamistas seus créditos sobre seus clientes. Eles ostentam nome simpáticos: Fannie Mae e Freddy Mac [1] . Seu papel esteve em crescimento até 2001, detendo então estas agência 38% de todos os créditos hipotecários do país. Públicas na sua origem, elas estão de facto privatizadas, ou em vias de sê-lo. Mas a sua imagem ainda é aquela de instituições "garantidas" pelo governo: numerosos agentes, nomeadamente estrangeiros, não notaram que estas agências já eram (o Japão está longe).

"Um grave erro!", declarava Alan Greenspan, presidente cessante do banco central dos Estados Unidos, numa declaração trovejante de 2004. E a recomendar, além disso, a limitação e o controle da actividades destas agências, supostamente a enviesar a "disciplina do mercado". Trata-se do concentrado da ideologia neoliberal. Tudo vai mal para estes actores tradicionais da política de crédito nos Estados Unidos. Na cavalgada do desengajamento do Estado, estas agências sofrem o ciúme de novas empresas entradas neste nicho lucrativo. A actividade deste novo sector explode desde há alguns anos, ao passo que aquela do Fannie e do Freddy contrai-se. De 38% dos créditos hipotecários em 2001, as agências federais são reduzidas a 30%. A Fannie Mae acaba de perder um processo que lhe custou 400 milhões de dólares.

E por que isto é importante?

Porque são precisamente as empresas que se precipitaram no espaço aberto pelo desengajamento do Estado que estão na origem da crise! Um belo exemplo de privatização e de abertura de um sector à iniciativa privada com consequências desastrosas. Mas ainda nos faltam dois elementos para compreender as molas desta crise. É preciso primeiro saber que estas agências e empresas financiam-se emitindo títulos (comprados por particulares ou instituições financeiras, nacionais ou estrangeiras). Estes títulos são, por uma lado, "endossados" aos credores originais, o que significa que aquele que os adquire compra, de facto, um "cabaz" de tais créditos. Os particulares frequentemente ignoram o conteúdo do cabaz (é pelo mesmo procedimento que os bancos estado-unidenses revenderam a dívida do "Terceiro Mundo", como mostrou o escândalo provocado na Itália pela venda da dívida argentina a famílias, que fizeram tal descoberta quando este país cessou os seus pagamentos). Mas, se o corretor o diz, você pode comprar assim todas as espécies de crédito, por exemplo as dívidas das famílias estado-unidenses com os cartões de crédito. Este negócio de "titularização", como se diz, está florescente. Seus agentes encontram-se em conferências gigantescas, em hotéis cinco estrelas [2] . Eles consideram-se benfeitores da humanidade: "Vossa indústria é a chave que abre os sonhos do nosso país", declarava com cara muito séria o presidente da U.S. Securities and Exchange Comission, numa assembleia de representantes deste sector.

E tudo isso faz uma crise?

A última peça do puzzle é que, face à queda das taxas de juro sobre os créditos hipotecários, estas empresas lançaram-se no financiamento dos "sonhos" de casas de campo daqueles que não têm os meios para realizá-los, tendo em conta a estagnação do poder de compra que o neoliberalismo organiza. Uma actividade tanto mais atraente quanto as taxas de juros sobre estes créditos de risco (subprime) são mais elevadas. Reunamos estes dois elementos. Primeiro ponto: os riscos de emprestar a estas famílias frágeis eram tais que as cessações de pagamentos tomaram proporções inesperadas. Segundo ponto: instituições e famílias imprudentes tornaram-se compradores dos títulos que materializavam estes créditos duvidosos. E eis que estes compradores, afectados pela desvalorização destes títulos, já não demonstram o seu optimismo habitual nos mercados bursáteis! A crise do crédito transforma-se em crise bursátil: as cotações despenham. Conhece-se o desenlace. Tal como Deus ex machina, os bancos centrais reenchem as tesourarias por uma criação monetária ex nihilo.

Pode-se sempre contar com a sorte, através de "reenchimentos" de curto prazo?

Esta crise é de facto interessante pelo que ela revela indirectamente. Sem entrar na análise do conjunto dos desequilíbrios da economia estado-unidense [3] , pode-se dizer que ela mostra que as potencialidades de crescimento da dívida das famílias daquele país atingem certos limites. Para que a festa neoliberal sob hegemonia estado-unidense continuasse, era preciso fazer entrar na dança uma fracção das famílias que realmente incapaz de suportar o ritmo? Era preciso estabelecer taxas de juro mais elevadas, nas fronteiras do razoável?

Diz-se que a despesa das famílias é um factor crucial do crescimento estado-unidense. Bloquear a descolagem dos créditos que lhes são destinados seria, a curto prazo, precipitar a recessão que se anuncia ao invés de a remediar, mas sobretudo, a longo prazo, comprometer a manutenção das taxas de crescimento relativamente elevadas da economia dos Estados Unidos. Que outras alavancas então para sustentar a actividade? As ferramentas das políticas macroeconómicas já estão em acção. O défice público está lá, o dólar fraco já está. As taxas curtas vão muito provavelmente ser diminuídas. Mas os remédios esgotam-se. Na mundialização neoliberal, o crescimento concentra-se nas duas extremidades do leque da riqueza, entre os Estados Unidos e os países cuja mão-de-obra é vendida barato, como a China. Este é um elemento central da propaganda neoliberal. Imagine uma taxa de crescimento "francesa" nos Estados Unidos! Uma perspectiva insuportável para o dono do mundo. Alguma coisa teria então de mudar. Mas o que exactamente? Para o melhor ou para o pior?

Notas :
(1) Um pouco diferentes são os Federal Home Loan Banks.
(2) Última conferência: "Subprime ABS", 18-19 de Setembro, Four Seasons Hotel, Las Vegas.
(3) Consultar o sítio que partilho com Dominique Lévy: http://www.jourdan.ens.fr/levy .


[*] Economista, Director de investigação do CNRS francês, membro do Conselho Científico do ATTAC França.

O original encontra-se na revista Politis , n°965, 30 août 2007.


Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info/ .
11/Set/07