Conseguiria Keynes evitar o colapso?
O multiplicador marxista apresenta-se
por Guglielmo Carchedi
[*]
Para Marx, a causa próxima das crises é a queda da taxa
média de lucro (TML).
[1]
Um número cada vez maior de estudos tem demonstrado que esta tese
não apenas é logicamente consistente, como também
está suportada por evidência empírica robusta e crescente.
[2]
Se a queda da TML é a causa do colapso, este terminará apenas
quando a rentabilidade recuperar numa trajetória de crescimento
sustentado. Nesse caso, a questão é: podem as políticas
keynesianas restaurar a rentabilidade da economia? Poderão elas evitar o
colapso?
Antes de mais: o que são políticas keynesianas? Em primeiro
lugar, são políticas económicas públicas, induzidas
pelo Estado. Em segundo lugar, podem ser políticas de
redistribuição ou de investimento. Terceiro, devem ser
financiadas pelo capital e não pelo trabalho: se forem financiadas pelo
trabalho são políticas neoliberais. Quarto, no caso das
políticas públicas de investimento, pode tratar-se de
políticas civis (sobretudo obras públicas tais como autoestradas,
escolas, hospitais, etc., de modo a evitar competição com os
sectores privados já em dificuldades económicas), ou militares.
Não vou ocupar-me do "keynesianismo militar", dado que
presentemente não é isso que os economistas keynesianos
propõem para acabar com a crise. Alguns podem pensar que uma grande
guerra é de facto a única via de saída para a
depressão. Isto constitui, porém, uma aberta admissão da
monstruosidade do sistema. Nesse caso, porquê salvá-lo? O que
segue refere-se, portanto, apenas às políticas keynesianas civis.
Redistribuição induzida pelo Estado
Suponhamos que o Estado produz uma redistribuição do valor
orientada do capital para o trabalho através de legislação
favorável a este último, de tributação progressiva,
etc. Evidentemente, o que importa é o resultado líquido destas
políticas. Se o Estado corta nos impostos sobre o trabalho, mas
também reduz os gastos públicos em serviços como
saúde e educação, ou bem o trabalho paga por estes
serviços, por conseguinte neutralizando o efeito que o crescimento
salarial tem no consumo, ou então o maior consumo é neutralizado
pelos menores gastos públicos em serviços pró-trabalho.
Vamos assumir, portanto, que os salários líquidos (diretos,
indiretos e diferidos) aumentam. Mais bens de consumo são vendidos e os
trabalhadores consomem mais. É por isso que se assume que estas
políticas são pró-trabalho. Supostamente, a venda de bens
de consumo acumulados estimula a produção de meios de consumo.
Isto deveria gerar procura de meios de produção. Um ciclo
ascendente começaria. E é por isso que se supõe que estas
políticas também seriam pró-capital. Quer o trabalho quer
o capital ganhariam. Este é o fundamento do keynesianismo reformista, ou
de colaboração de classes.
Mas será que o maior consumo dos trabalhadores realmente causa uma maior
produção de bens de consumo, e depois também de bens de
produção, gerando portanto maior emprego e crescimento
económico? Suponhamos que alguns bens de consumo permanecem por vender.
Esta é a hipótese subjacente ao intervencionismo keynesiano
(falta de procura). Neste caso, salários mais elevados causam o
escoamento dos bens de consumo até então por vender, não
uma maior produção desses bens. A redistribuição
keynesiana falha nos seus próprios termos, nos termos de
produção induzida pela procura, e portanto emprego e retoma.
O capitalismo, porém, prospera não se a produção
aumenta, mas se rentabilidade aumenta. Uma vez a rentabilidade introduzida no
esquema, tudo muda. Se um capitalista não consegue vender a sua
produção, sofre uma perda. Se mais tarde, devido a
salários mais elevados, estas mercadorias são vendidas, os lucros
até então não realizados são-no. Os lucros e as
perdas compensam-se reciprocamente. Mas a rentabilidade cai. A prova requer
três passos.
a) Consideremos o sector produtor de meios de consumo. Na mais favorável
das hipóteses para o argumento keynesiano, a totalidade do aumento
salarial é gasto (em bens de consumo). Este sector por um lado sofre a
perda devida a salários mais elevados, mas por outro lado consegue
vender meios de consumo até então não escoados, e por um
preço igual. O numerador da taxa de lucro permanece inalterado. Todavia,
o denominador sobe, devido ao investimento mais elevado em capital
variável. O consumo dos trabalhadores aumenta, mas a taxa de lucro cai.
b) Consideremos de seguida o sector produtor de meios de
produção. O seu numerador diminui (por causa de salários
mais elevados e portanto lucros mais reduzidos) e o denominador aumenta (por
causa de maior investimento em força de trabalho). Também neste
sector o consumo dos trabalhadores aumenta, mas a taxa de lucro cai.
c) Finalmente, os salários mais elevados no sector produtor de meios de
produção conduzem a maiores procura e consumo dos trabalhadores
deste sector, e portanto um lucro extraordinário do sector produtor
desses meios de consumo. A perda do sector I [produção de meios
de produção] e o ganho no sector II [produção de
meios de consumo] compensam-se mutuamente.
Os numeradores dos dois sectores regressam ao valor original. Todavia, os
denominadores aumentaram. A taxa média de lucro (TML) para os dois
sectores cai. Seguem-se dois pontos. Primeiro, os salários e portanto o
consumo podem crescer sem que os lucros (mas não a TML) caiam. Segundo,
a produção não aumenta. O que aumenta é a
realização/venda das mercadorias previamente produzidas. Em suma,
o consumo dos trabalhadores aumenta, mas a produção permanece a
mesma e a TML cai. A redistribuição keynesiana falha no seu
próprio terreno, a produção, mas também no terreno
da rentabilidade; o aumento do consumo dos trabalhadores e o agravamento da
crise são os dois lados da mesma moeda.
Suponhamos agora que todos os salários continuam a crescer até ao
ponto em que todos os bens de consumo são vendidos. Dado que existe
procura suficiente, não há necessidade de
intervenção keynesiana. Todavia, não é verdade que
um crescimento subsequente dos salários estimularia uma
produção extraordinária de meios de consumo? Não. A
produção aumenta se, em simultâneo, a rentabilidade aumenta
e existe procura para o output extra, isto é, se a mais-valia extra pode
simultaneamente ser produzida e ser realizada. A produção
não aumenta se uma destas condições não é
satisfeita.
Salários mais elevados aumentam a procura para bens de consumo, mas ao
mesmo tempo reduzem a taxa de lucro. Alguns capitalistas podem decidir aumentar
a produção até mesmo com taxas mas reduzidas de
rentabilidade. Mas nalgum momento, apesar dos seus esforços, a
produção da economia diminui. De facto, se os lucros caiem, (a)
menos mais-valia pode ser gerada e portanto reinvestida e as reservas
não são investidas em atividades cuja rentabilidade continua a
decrescer, e (b) em resultado dos salários mais elevados, os
capitalistas mais fracos entram em bancarrota e cessam a
produção. Segue-se que os capitalistas tomados em conjunto
reduzem a sua produção apesar duma maior procura acrescida e
apesar dos seus esforços para satisfazer essa procura.
Por conseguinte, a equação:
salários mais elevados = mais consumo
está correta. Todavia, a equação:
maior consumo = maior produção
está errada porque (a) no caso das vendas dos produtos remanescentes, os
salários mais elevados não afetam a produção
(só a realização de mercadorias já produzidas
é promovida) enquanto a rentabilidade cai e (b) a partir do ponto em que
todo o output foi vendido, salários mais elevados fazem diminuir a
rentabilidade e portanto a produção. Está última
resulta ou inalterada ou diminuída, mas a rentabilidade diminui em ambos
os casos. Os salários mais elevados não podem suprimir o colapso,
mas apenas agravá-lo. A medicina keynesiana é pior do que a
doença.
O acima exposto lançou luz sobre a diferença essencial entre a
abordagem keynesiana e a marxista. Contrariamente a esta última, para
aquela a rentabilidade não é a determinante essencial da
produção. A abordagem keynesiana inverte a ordem de causalidade.
Nela, a rentabilidade é uma consequência de maior
produção induzida pela procura, uma consequência de maior
produção física induzida por maior consumo. Na abordagem
marxista, maior produção é a consequência de maior
rentabilidade. As consequências teóricas, políticas e
ideológicas são de longo alcance.
Se uma maior procura (induzida por salários mais elevados) estimulasse a
produção, a economia tenderia para um ponto no qual, em virtude
da redistribuição pró-trabalho, uma maior procura e uma
maior oferta se encontrariam. Este é o ponto em que o crescimento e o
equilíbrio se conjugam. Isto é uma ilusão da economia
convencional. Todavia, se a maior procura induzida por salários mais
elevados não estimula a produção, antes causa a sua queda
em virtude da queda da rentabilidade, a procura e a oferta não se
encontram e nenhum ponto de equilíbrio pode ser alcançado. Para
contrariar a rentabilidade decrescente, os salários teriam de crescer de
novo. O resultado é uma sequência decrescente de pontos de
não-equilíbrio entre a procura e a oferta, os quais são
outros tantos estádios a caminho da crise. Ao contrário do que
afirma a abordagem keynesiana, salários mais elevados à custa do
capital contribuem não para o movimento rumo ao equilíbrio e
crescimento, mas para o movimento rumo a depressão e crises.
Esta conclusão é importante para a política
económica, porque mostra que políticas visando o estímulo
ao crescimento através duma redistribuição
pró-trabalho estão destinadas a falhar. Mas esta conclusão
também é importante dum ponto de vista teórico e
político porque, negando que o sistema, dado um conjunto apropriado de
políticas redistributivas, possa tender para o equilíbrio e o
crescimento, também negamos que o sistema seja (ou possa ser tornado)
racional. A economia burguesa, por outro lado, mantém que o sistema
está num, ou tende para um, equilíbrio a níveis mais
elevados de produção e de consumo, e que portanto ele é
racional. Se isto fosse verdade, as consequências para as lutas dos
trabalhadores seriam devastadoras, porque a luta contra o sistema se tornaria
uma luta contra um sistema racional, e portanto uma luta meramente
"espontaneísta" e irracional. Mas se o sistema é
irracional porque tende para crises apesar de políticas keynesianas (ou
outras), a luta dos trabalhadores é a manifestação
consciente do movimento objetivo da economia rumo a crises.
De forma alternativa, o Estado pode induzir uma redistribuição do
valor do trabalho para o capital através de salários decrescentes
e outras medidas. Estas são políticas neoliberais, o oposto das
keynesianas. Todavia, elas devem ser brevemente consideradas. Um corte de
salários aumenta a rentabilidade. Mas ao mesmo tempo reduz a procura de
bens de consumo. Neste caso, os capitalistas reduzem o seu output não
porque o lucro cai, mas porque a procura cai. Mas não deveria a
rentabilidade acrescida reavivar a economia apesar de menores procura e
produção? Não poderiam maiores lucros relativamente ao
capital investido ser obtidos com base num mais reduzido nível de
produção?
Numa crise, a procura de bens de consumo cai devido a salários mais
baixos, os lucros extraordinários obtidos a partir dos salários
mais baixos não são reinvestidos nesse sector e portanto
não conseguem estimular o investimento na produção de
meios de consumo. Mais ainda, o capital não desinveste no sector II
investindo no sector I, porque a rentabilidade também diminui no sector
I. Os lucros extraordinários são, ou colocados de lado como
reservas, ou investidos nos sectores improdutivos (comércio,
finança e especulação), nos quais a rentabilidade é
mais elevada (mas só na medida em que bolha especulativa não
rebente), ou então deslocados para países em que podem ser
reinvestidos mais rentavelmente. Nalguns países mais do que noutros,
podem também alimentar corrupção, criminalidade e
ineficiências (a Itália é um caso típico). Em
qualquer caso, estre lucros extra não conseguem pôr a economia de
novo em andamento.
Também o Estado contribui, fazendo divergir valor dos sectores
produtivos. Na presente conjuntura, dados os valores elevados da dívida
pública, o valor extraordinário de que o Estado se apropria (por
exemplo, através de maior tributação) é usado para
diminuir as perdas do Estado ou do capital financeiro. Os economistas
keynesianos percebem a "austeridade" induzida pelo Estado (uma
palavra ideologicamente carregada que devia ser cuidadosamente evitada)
enquanto causa da crise ou do seu aprofundamento. Na realidade, a
depressão do consumo (salários mais reduzidos) é a
consequência da rentabilidade declinante, representando uma tentativa do
capital privado de, através do Estado, restaurar a TML.
Em suma, as políticas neoliberais não são a causa do
colapso (elas são a consequência do colapso, um dos fatores
compensatórios da queda da TML) e falham essa tentativa simplesmente na
medida em que os lucros são desviados dos investimentos produtivos e
não, conforme é defendido pelos autores keynesianos, porque os
cortes de salários reduzem o consumo. O dilema "austeridade"
versus crescimento (medidas de política pagas pelo trabalho ou pelo
capital) como remédio para o colapso é falso. Nem
políticas pró-trabalho nem políticas pró-capital
podem evitar o colapso. Isto pode ser empiricamente consubstanciado.
Considere-se o seguinte.
Figura 1: A parte do trabalho e a TML nos sectores produtivos dos EUA
Este quadro mostra que até 1986 os salários subiram relativamente
aos lucros e a TML, de acordo com o postulado por Marx mas não de acordo
com o "subconsumismo" keynesiano. De 1987 até 2009 os
salários desceram relativamente aos lucros e a TML subiu, de novo de
acordo com Marx mas não com o "subconsumismo" keynesiano. Mas
a tendência da TML permaneceu de queda no conjunto do período.
Quer redistribuições pró-trabalho quer pró-capital
foram incapazes de impedir a TML de descer tendencialmente.
Investimentos induzidos pelo Estado
O argumento principal para as políticas keynesianas não é
a redistribuição, mas o investimento induzido pelo Estado. Por
via de regra, os autores (incluindo marxistas) que advogam políticas de
investimento público como via para evitar o colapso omitem um aspeto
fundamental, nomeadamente quem é suposto financiar esses investimentos
(ser nota 4, infra). Existem duas possibilidades: investimentos públicos
financiados pelo capital ou financiados pelo trabalho. Vou considerar apenas o
investimento público financiado pelo capital, dado que investimentos
financiados pelo trabalho não são o que os autores keynesianos
propõem para evitar o colapso.
Distingamos entre sector I, produtor de obras públicas, e sector II, o
resto da economia. O valor excedentário ou mais-valia, M, é
apropriado (por exemplo, tributado) pelo Estado no sector II e canalizado para
o sector I com vista à produção de obras públicas.
[3]
Em vez de tributar a mais-valia, o Estado pode apropriar-se de reservas
não utilizadas. Mas, no que se refere ao capital, isso é uma
perda e portanto uma dedução à mais-valia. Tendo-se
apropriado de M a partir do sector II, o Estado paga ao sector I um certo
lucro, L, e avança o resto, M-L, ao sector I para a
produção de obras públicas.
Consideremos primeiro os efeitos para o Estado. Este recebe obras
públicas do sector I pelo valor de M-L+L', onde L' é o excedente
gerado no sector I (quer L' seja igual a L ou não). O sector I realiza
os seus lucros, porque recebeu L do Estado, ao passo de L' pertence ao Estado.
Como é que o Estado realiza M-L+L', o valor total incorporado em obras
públicas? Em capitalismo o valor é realizado somente se e quando
estiver metamorfoseado em dinheiro, através da venda do valor de uso em
que está incorporado. Dado que o Estado não vende obras
públicas (a menos que as privatize, mas isso sai do âmbito da
presente análise), resulta que o valor permanece potencial, enredado em
valor de uso não vendido. Todavia, as obras públicas podem
realizar o seu valor duma forma diferente. O seu valor de uso é
consumido pelos utilizadores das instalações, os quais, em troca
dessa utilização, têm de pagar em princípio pela
fração do valor contido nas obras públicas que consomem.
Uma vez que as obras públicas são completamente consumidas, o
Estado recebe M-L+L'. O Estado realizou o valor potencial das obras
públicas, cobrando ao capital e ao trabalho pela sua
utilização. Estas taxas são uma redução
indireta de salários e de lucros. O Estado ganhou M-L+L', o sector I
ganhou L, o sector II perdeu M e o sector privado ganhou M-L. Consideremos os
efeitos sobre a TML. O sector II perde M, mas o sector I ganha L. Em suma, o
capital privado perde M-L para o Estado. O numerador da TML decresce
precisamente isso. A TML cai. Mas isto não é o fim da
história. O valor capitalizado adiantado pelo Estado, M-L, é
investido pelo sector I. De modo a determinar o efeito deste investimento na
rentabilidade, precisamos apresentar aquilo a que vou chamar o multiplicador
marxista.
Para produzir obras públicas, o sector I compra força de trabalho
e meios de produção a outras empresas em ambos os sectores. Pelo
seu lado, estas empresas comprometem-se em compras subsequentes de meios de
produção e de força de trabalho. Este efeito
múltiplo repercute em cascata sobre o conjunto da economia. Na
hipótese mais favorável para o argumento keynesiano, os
investimentos induzidos pelo Estado são suficientemente grandes para
absorver primeiro os bens por vender, e depois estimular nova
produção. Dado que as empresas envolvidas neste efeito em cascata
têm diferentes composições orgânicas, três
casos são possíveis:
a) M-L, o investimento inicial do sector I, mais o efeito acumulado no conjunto
da economia, é tal que constitui uma secção representativa
da economia global. Nesse caso, a taxa de lucro gerada por ele é igual
à média da economia. A TML depois destes investimentos não
se altera. Nem se altera o emprego. A política falha.
b) Alternativamente, a cadeia de investimentos trava num ponto em que a
composição orgânica de todos os capitais investidos
(incluídos os iniciais) é mais elevada do que a inicial. Nesse
caso a TML cai. O emprego também cai. De novo, a política falha.
A razão pela qual a composição orgânica mais elevada
deste agregado piora a crise é que os investimentos extra se dirigiram
predominantemente para as empresas mais eficientes (as que têm uma
composição orgânica mais elevada). Vendendo o seu output
mais elevado ao mesmo preço que o output mais reduzido das atrasadas,
aquelas empresas apropriam-se de valor destas e em determinado momento
expulsam-nas do mercado, dessa forma agravando a crise.
c) No caso oposto, em que a composição orgânica cai como
resultado destes investimentos, a TML e o emprego aumentam. Mas nesse caso a
política keynesiana ajudou os capitais menos eficientes, aqueles de
menor composição orgânica e menor eficiência, a
sobreviver. Neste caso, a política adia o colapso em vez de acabar com
ele.
Note-se que os três possíveis resultados não são
opções políticas que possam ser influenciadas pela
política estatal. Uma vez que o capital público inicial foi
investido, o resultado final em termos de composição
orgânica e de TML depende do funcionamento espontâneo do sistema,
isto é, de quais capitais recebem encomendas de outros capitais. O
Estado pode influenciar apenas o primeiro passo, encomendando investimentos
públicos a capitais de baixa composição orgânica.
Mas então, e como no caso acima, ajuda a fazer crescer a rentabilidade,
mas também a manter os capitais menos eficientes à tona.
Mas à parte isso, o resultado mais provável é um
crescimento na composição orgânica combinada, e portanto
uma queda na TML, porque cada capital tenderá em cascata a comprar o
material de que necessita aos fornecedores mais baratos. Estes são
habitualmente os mais eficientes, aqueles cuja composição
orgânica é alta relativamente à média. O
investimento adicional induzido pelo investimento inicial Estado irá
predominantemente para estes sectores. A composição
orgânica cresce e a TML cai. Em suma, como resultado de um investimento
induzido pelo Estado, ou a rentabilidade média cai ou, se se eleva, os
capitais menos eficientes são artificialmente mantidos vivos. A crise
é ou piorada ou adiada. E se ela for adiada, o capital não pode
autodestruir-se e a retoma é assim adiada. Em nenhum dos casos a
economia reinicia.
Para além do multiplicador marxista, as políticas estatais de
redistribuição e/ou investimento deparam-se com um outro
obstáculo. Elas são possíveis quando o capital privado
consegue suportar a perda de mais-valia (ou de reservas). Mas quando o capital
se afunda na crise, quando a rentabilidade cai, o seu financiamento torna-se
crescentemente problemático. Estas políticas podem ser aplicadas
onde são menos necessárias, e não podem ser usadas onde
são mais necessárias. Isto mostra quão irrealista é
o apelo, inclusive de proeminentes marxistas, para uma vaga maciça de
redistribuição e/ou de investimento induzidos pelo Estado, nas
presentes condições económicas, enquanto forma de
saída da crise.
[4]
Alguns autores keynesianos sugerem estimular a procura não
através de redistribuição nem através de
investimentos, mas através do acréscimo da quantidade de moeda. A
assunção é que a causa última das crises é
falta de procura, de modo que mais dinheiro em circulação deveria
estimular a procura. O argumento contra esta visão não consiste
tanto em saber se tais políticas são inflacionárias (como
defendem os economistas "austríacos") ou não.
A objeção é antes que, imprimindo dinheiro, aumentamos a
representação do valor mais do que o próprio valor. A
economia não pode recomeçar se a mais-valia produzida
relativamente ao capital investido permanece inalterada. Para além
disso, imprimindo e distribuindo dinheiro, redistribuímos capacidade
aquisitiva. Mas já vimos que nem redistribuições
pró-trabalho nem redistribuições pró-capital
conseguem evitar o colapso. A noção de que crédito
é dinheiro é quase universalmente aceita, mas está
fundamentalmente errada. Criando crédito, não se "cria
dinheiro a partir de nada", uma proposição absurda. A partir
de nada não se pode criar nada. Através da simples
criação de crédito cria-se dívida. Por conseguinte,
a crise é adiada até ao pagamento da dívida.
Esta é uma das razões pelas quais o Estado pode decidir contrair
empréstimos como forma de obter o capital necessário para as
obras públicas, em vez de o obter expropriando o capital. Todavia,
nalgum ponto as dívidas devem ser pagas. O argumento keynesiano é
de que as dívidas podem ser pagas quando, em resultado destas
políticas, a economia entra em retoma e a apropriação da
mais-valia necessária para os pagamentos da dívida não
ameaça a retoma. Mas isto é uma auto-ilusão piedosa.
De facto, vimos que o investimento público financiado pelo capital
não pode reiniciar a economia: quando muito, pode adiar a
explosão da crise. Nesse caso, se quer políticas
pró-capital quer políticas pró-trabalho são
impotentes contra o colapso, a crise deve seguir o seu curso até que ela
própria produza as condições da sua solução.
Isto corresponde à destruição de capital. Só quando
suficientes capitais (mais atrasados) tiverem sido destruídos (tiverem
ido à bancarrota) poderão as unidades produtivas mais eficientes
recomeçar a produzir numa escala mais alargada. Segue-se que, se estas
políticas quando muito adiam a explosão da crise, estas
também adiam a retoma. Atrasando a retoma, estas políticas
são um obstáculo ao, mais do que uma condição do,
pagamento pelo Estado da sua dívida.
[5]
A tese de que políticas estatais de redistribuição e
investimento, possivelmente através de empréstimos
contraídos pelo Estado, poderiam iniciar uma retoma sustentada,
assumindo-se que a escala seria suficientemente larga, não é
apenas teoreticamente inválida (ver acima), mas também
empiricamente falha de substância. O exemplo habitualmente mencionado
é o período longo de prosperidade que se seguiu à Segunda
Guerra Mundial, os chamados Anos Dourados do capitalismo. Supostamente, o
contrair de empréstimos pelo Estado norte-americano teria possibilitado
a este último o financiamento de políticas keynesianas e portanto
o iniciar do longo período de estabilidade. Na realidade, a
dívida federal bruta dos EUA enquanto percentagem do PIB diminuiu
continuadamente durante os Anos Dourados, de 121.7 por cento em 1946 para 37.6
por cento em 1970. O grande efeito de prosperidade ficou a dever-se à
reconversão, isto é, à reconstituição do
capital civil, e à libertação de poder aquisitivo pendente
que se seguiu à guerra.
[6]
As lições para os trabalhadores
O antes aduzido não deve ser argumentado para defender que o trabalho
seja indiferente a políticas estatais de redistribuição
e/ou investimento financiadas pelo capital. Pelo contrário, o trabalho
devia lutar fortemente por essas políticas. Mas esta luta devia ser
orientada não por uma perspetiva keynesiana, mas por uma adequada
perspetiva marxista.
A abordagem keynesiana considera as respetivas políticas como uma forma
de melhorar quer a condição do trabalho quer a
condição do capital, uma forma de contrariar ou evitar o colapso.
Duma perspetiva marxista, as políticas de distribuição e
investimento politicamente induzidas e financiadas pelo capital não
necessitam ser keynesianas, isto é, não precisam de transportar o
conteúdo ideológico ligado à palavra, a comunidade de
interesses entre as duas classes principais. A perspetiva marxista sublinha (a)
que estas políticas podem melhorar a condição do trabalho,
mas são impotentes para conter a crise, quando muito podem
adiá-la; e (b) o potencial político destas políticas.
Através da luta do trabalho por melhores condições de vida
e de produção, a consciência pode emergir entre os
trabalhadores de que cada vez que estas políticas são pagas pelo
capital este último sai enfraquecido quer económica quer
politicamente, e de que o trabalho pode aproveitar isso para enfraquecer o jugo
do capital.
Da perspetiva marxista, a luta pela melhoria das condições do
trabalho e a sedimentação e acumulação da
consciência e do poder antagonísticos do trabalho através
desta luta devem ser os dois lados da mesma moeda. Esta constitui a sua real
importância. Elas não podem impedir o colapso, mas podem
seguramente melhorar a condição do trabalho e, enquadradas numa
perspetiva adequada, promover o fim do capitalismo.
Notas
1: A queda da TML é a causa próxima, dado que ela própria
é causada pela competição tecnológica, isto
é, pela introdução de novas tecnologias capital-intensivas
(ou "poupadoras de trabalho"), mas incrementadoras da
eficiência.
2: Ver Carchedi, 2011a; Carchedi, 2011b; Roberts, 2012, bem como a literatura
indicada nestas obras. Marx define a taxa de lucro como s/(c+v), onde s
representa a mais-valia ou excedente, c o capital constante (isto é, o
capital investido em meios de produção) e v é o capital
variável
(isto é, o capital investido em força de trabalho, em termos
gerais equivalente aos salários). Portanto, s é o numerador e
(c+v) é o denominador da equação da taxa de lucro. A taxa
de lucro depende da taxa de mais-valia (s/v) e da composição
orgânica do capital (c/v).
3: Isto é uma simplificação. O Estado apropria-se de
mais-valia, por exemplo através de impostos, de ambos os sectores. O
argumento é que o sector I recebe mais valor excedentário para
investir do que aquele que perde para o Estado.
4: Por exemplo, tal como Alan Freeman defende, "se o Estado
disponibilizar, para tantas pessoas quantas as necessárias, as
capacidades que o capitalismo produziu, entrando em todos os âmbitos em
que a propriedade privada não entra, a crise acabará"
Freeman 2009. Pelo contrário, a crise ou se aprofundará ou
será adiada. Anwar Shaikh também pensa que o investimento
público direto pode tirar a economia da crise. Isto estimularia a
"procura, uma vez garantido que as pessoas assim empregues não
poupam o rendimento nem o utilizam para amortizar a dívida"
Shaikh, 2011. À parte a natureza irrealista das assunções
de que as pessoas não poupam e não amortizam as dívidas,
dado que os bancos precisam das poupanças dos trabalhadores e o default
da dívida significa principalmente default da dívida
bancária, isto constitui a receita segura para a crise financeira.
Similarmente, Foster argumenta que "Teoricamente, qualquer crescimento da
despesa pública nesta altura ajuda a suavizar a queda e contribui mesmo
para a eventual restauração do crescimento económico"
Foster, 2009. Estas propostas e outras similares têm uma
característica comum: não se referem elas mesmas a quem deveria
financiar estas políticas. Mas, à parte o seu defeito
macroscópico, dado que a economia sai da crise através de
destruição de capital, estas políticas atrasam mais do
previnem o desencadear da crise.
5: Não existe afinidade entre esta conclusão e a "escola
austríaca". As diferenças são
irreconciliáveis. Para mencionar apenas duas das mais importantes: para
a "escola austríaca" a economia, se não for estorvada,
tende para o equilíbrio (em vez de tender para crises, como com Marx) e
a intervenção estatal é a causa das crises (em vez de ser
uma das múltiplas contra-tendências, como com Marx).
6: Ver Carchedi, 2011b.
Referências
Carchedi, Guglielmo, 2011a, Behind the Crisis: Marx's Dialectics of Value and
Knowledge (Brill).
Carchedi, Guglielmo, 2011b, "Behind and Beyond the Crisis",
International Socialism 132, (autumn),
www.isj.org.uk/?id=761
Foster, John Bellamy, 2009, "Keynes, Capitalism and the Crisis",
interview by Brian Ashley,
www.zcommunications.org/keynes-capitalism-and-the-crisis-by-john-bellamy-foster
Freeman, Alan, 2009, "Investing in Civilization", MPRA,
http://mpra.ub.uni-muenchen.de/26807/1/MPRA_paper_26807.pdf
Roberts, Michael, 2012, "A World Rate of Profit",
thenextrecession.files.wordpress.com/...
Shaikh, Anwar, 2011, "The First Great Depression of the 21st
Century", Socialist Register 2011 (Merlin).
08/Outubro/2012
[*]
Investigador do Departamento de Teoria Económica e Econometria da Universidade
de Amsterdam.
Obras do autor
.
O original encontra-se em
http://www.isj.org.uk/index.php4?id=849&issue=136
. Tradução de JCG.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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