Remendos na Wall Street e crise capitalista

por Rolando Astarita [*]

A voragem. O Senado dos EUA acaba de aprovar novas regulamentações das instituições financeiras. A política adoptada está de acordo com o diagnóstico do establishment económico (FMI, BIS, consultoras, departamentos de economia das grandes universidades, etc) e dos dirigentes políticos (no caso, governos do G20) sobre as causas da crise. A crise ter-se-ia devido à cobiça da Wall Street e à falta de regulamentação estatal. Esta explicação, popularizada por Krugman, é compartilhada por sectores progressistas e, inclusive, da esquerda. A liberalização dos mercados, que foi realizada na época de Reagan, teria ido demasiado longe e é esta a altura de apertar os parafusos. Com alguma dose de intervenção estatal, novas crises seriam evitáveis. A discussão agora é acerca de quanta medicina regulamentar é necessária para que o capitalismo funcione sem sobressaltos.

O objectivo desta nota é discutir esta ideia. Para isso, o texto ordena-se da seguinte maneira: Em primeiro lugar, apresentamos um resumo das medidas e explicamos brevemente o seu significado relativamente à forma como operam os bancos e funcionam alguns mercados financeiros. Em segundo lugar, analisamos estas medidas no contexto das relações entre mercados e Estado e respectivas conexões com a especulação e a crise. Finalmente, apresentamos algumas das razões porque pensamos que estas medidas não eliminam as causas das crises gerais do capitalismo.

As medidas

Em primeiro lugar, atribui-se mais autoridade aos reguladores estatais para inspeccionar a situação das entidades financeiras e os seus activos, desde hipotecas até títulos mais complexos. Para este fim, cria-se um conselho de reguladores federais, que é liderado pelo secretário do Tesouro. Decidiu-se, também, a criação de uma agência de protecção do consumidor de serviços financeiros e bancários, a qual vai funcionar dentro da Reserva Federal ainda que com relativa autonomia. Além disso, foi decidido que as instituições financeiras terão de manter mais capital como reserva e reduzir o seu endividamento. Também foi determinado que derivados que, até agora, eram comercializados de modo descentralizado, como os swaps (de juros, de default, etc), passarão a sê-lo em mercados centralizados e que os bancos terão de autonomizar as suas divisões que operem com derivados, terão limitações às operações com o seu próprio capital (equity) e apenas poderão investir em títulos do Tesouro, em obrigações de agências governamentais e emissões municipais. Também foi estabelecido que o Estado poderá tomar conta de uma empresa financeira que entre em colapso, como sucede actualmente em relação aos bancos.

Endividamento e crise bancária

O sentido e o conteúdo da reforma estão de acordo com as explicações dominantes sobre as causas da crise as quais resultam de tensões para fazer prevalecer os interesses diversos das distintas fracções do capital. Portanto, para avançar, precisamos de explicitar brevemente como funcionam os bancos e algumas questões conexas.

Um banco é uma instituição cuja primeira operação básica consiste em receber dinheiro, pagando um juro, para o aplicar obtendo um rendimento algo mais alto, sejam juros de empréstimos concedidos ou rendimentos de investimentos em títulos. Outras operações básicas da sua actividade consistem em operações monetárias, como o pagamento ou a cobrança de facturas, a montagem de operações de empréstimo, a arrecadação de fundos para as empresas, a guarda de valores e outras semelhantes.

Os depósitos que neles foram feitos em contas à ordem e a prazo e os empréstimos obtidos constituem o passivo dos bancos. Os créditos concedidos e os títulos em que os bancos investiranm o dinheiro, constituem os seus activos, junto à sua reserva monetária ou disponibilidades. Com as suas disponibilidades, os bancos satisfazem as exigências de liquidez que, quotidianamente, lhes são feitas pelos seus depositantes.

Além destas duas grandes rubricas do balanço, isto é, o activo e o passivo, existe uma terceira, que, no balanço dos bancos, se localiza do lado do passivo embora como uma categoria separada. Trata-se do capital próprio (equity) e representa o valor líquido contabilístico do banco. Por outras palavras, é o valor dos activos que são financiados pelos investimentos dos accionistas do banco e não pelos depósitos ou por outras fontes. No balanço, é igual à diferença entre o activo e o passivo.

Segundo as recomendações do Banco de Pagamentos Internacionais (BIS), que foram adoptadas pelos governos, os bancos são obrigados a respeitar um determinado valor mínimo do rácio o qual, em termos gerais, é de 8% (a questão é um pouco mais complexa, mas, por agora, deixamo-la ficar assim).

Para fixar conceitos, apresentamos um exemplo numérico, em milhões de dólares, de um banco hipotético.

ACTIVO
PASSIVO
Disponibilidades 5 Contas à ordem 6
Crédito concedido 90 Contas a prazo 80
Títulos 75 Empréstimos obtidos 70
    Total do Passivo 156
    CAPITAL PRÓPRIO (EQUITY) 14
Total do Activo 170 Total do Passivo e do Capital Próprio 170


Este banco tem activos de 170 milhões, passivos de 156 milhões e capital próprio de 14 milhões.

Vejamos, agora, os lucros do banco.

Um negócio fundamental do banco consiste em obter dinheiro pagando uma determinada taxa e emprestá-lo a uma taxa superior. Deste modo, uma parte muito importante dos rendimentos dos bancos provém desta margem, ou spread, entre taxas de juro enquanto que a segunda fonte mais importante de rendimentos é a cobrança de comissões pelas operações que realiza para seus clientes, como as de cobranças, de operar nos mercados financeiros, etc.

Com os rendimentos que obtém, o banco paga aos seus empregados, suporta outros gastos e paga os impostos. O resultado líquido, que é aquele que se obtém subtraindo todos estes gastos ao rendimento, constitui o seu lucro.

Por sua vez, a rendibilidade do banco mede-se pelo rácio do lucro pelo capital próprio o qual é conhecido, em inglês, como ROE (return on equity). Note-se que quanto mais um banco se endivida mais alto pode ser o seu ROE. Por isso, os bancos costumam ter rendibilidade dos capitais próprios elevada ainda que seja baixa a rendibilidade do conjunto dos seus activos (ROA, return on assets, que é o rácio lucros/activos).

Por outro lado, se os créditos concedidos não puderem ser cobrados, o banco deverá pô-los na categoria de "crédito mal parado" e, eventualmente, reflectir essa perda no seu balanço.

Algo semelhante ocorre se os títulos que o banco possui no seu activo se desvalorizam. Por exemplo, se os devedores hipotecários não puderem pagar, cairão os preços dos títulos que são apoiados nas hipotecas que o banco possuir, mas, ao diminuir o valor dos activos, baixará o do capital próprio do banco. Se a queda dos valores continua e se aprofunda, chega-se a um ponto em que o banco não pode continuar a operar e tem de aumentar o seu capital próprio.

Porém, se os investidores se apercebem de que o banco está em risco de insolvência, podem recusar-se a investir e, nesse caso, os accionistas desfazer-se-ão rapidamente das suas acções, isto é, procuram salvar alguma coisa antes que o seu capital se desvaneça completamente, precipitando a queda das cotações. Foi isso que sucedeu com o banco Lehman e com outros grandes bancos, que sofreram uma implosão nos mercados bolsistas.

Nos anos trinta do século passado, pelo contrário, os bancos caíam com corridas aos depósitos, mas, agora, no século XXI, os bancos tinham seguros de depósitos e se entraram em colapso foi por falta de capitais próprios e é generalizada a opinião de que isso teve a ver com um endividamento muito elevado.

Não há dúvidas de que, em vésperas da crise de 2007, o nível de endividamento dos bancos dos EUA havia atingido a um nível altíssimo. Segundo o Relatório de 2009 do Presidente dos EUA, antes do rebentar da crise, os bancos de investimento estavam endividados numa proporção de aproximadamente 25 para 1. Isto significa que de cada US$100 de activos, US$96 eram financiados por dívida e só US$4 o eram por capital próprio. Em consequência disso, bastaria uma queda de 4% do valor dos activos para reduzir a zero o valor do capital próprio destes bancos.

Por outro lado, este grau de endividamento permitiu que os bancos conseguissem elevados ROE durante o boom. Entre 1995 e 2005 o ROE médio de Morgan, Merril Lynch, Goldman Sachs, Lehman e Bearns oscilou entre 14% e 20% (cálculo efectuado a partir da revista Fortune 500 ). Para ter uma medida de comparação, o ROE médio, nos países desenviolvidos, do sector financeiro não bancário e do sector bancário, oscilou, no período 2001-2007, entre 11% e 13% (BIS, Relatório anual 2010 ).

Vejamos ainda outra forma de endividamento, a qual também agravou a crise bancária. Um modo de aumentar os lucros dos bancos foi eles obterem empréstimos a curto prazo, pelos quais pagavam uma taxa baixa, para, depois, investirem em títulos a longo prazo, que rendiam uma taxa mais elevada. Para aumentar a diferença, os bancos obtinham empréstimos a prazos muito curtos, de aproximadamente uma semana. Isto é, semanalmente deviam renovar estes empréstimos. A operação era lucrativa, mas arriscada, e, quando rebentou a crise, os mercados monetários "secaram" e os bancos não tinham maneira de conseguir fundos para pagar os empréstimos que se venciam.

Com base nesta experiência, a reforma financeira recente obriga os bancos a diminuírem o seu endividamento. Muitos pensam que, com isto, se elimina uma das causas principais da crise.

Operações com capital próprio

As operações com capital próprio (proprietary trading) consistem na utilização do dinheiro do próprio banco para a obtenção de lucros e estão associadas com o endividamento.

Tradicionalmente, as operações com capital próprio eram próprias dos bancos de investimento porque estes bancos, que se encarregam de arrecadar capital para empresas, "fazem mercado".   "Fazer mercado" quer dizer que eles adquirem partes sociais. Por exemplo: um banco de investimento que actua como intermediário na colocação de acções de uma empresa pode comprar tais acções a um certo preço com a intenção de revendê-las, a seguir, por um preço maior arrecadando a diferença.

Deste modo, tal banco está aumentando a liquidez ao mercado com a utilização do seu capital próprio. Algo semelhante ocorre com os departamentos dos bancos que operam em mercado secundários de acções ou nos mercados cambiais. O banco que actua no mercado bolsista, por exemplo, pode estar a comprar as acções que o seu cliente está a vender, mas com o objectivo de as vender a um preço superior quando aparecer um comprador. A partir daqui, é só um pequeno passo para o banco se lançar em investimentos de todos os tipos utilizando o seu capital próprio.

Foi isso o que sucedeu nos últimos anos. Nos anos 2000, à medida em que aumentava o boom dos títulos hipotecários, os bancos empataram proporções crescentes do seu capital próprio em operações especulativas, o que era altamente arriscado, uma vez que uma queda dos valores dos títulos ou dos créditos concedidos pelos bancos afectaria directamente o valor do seu capital próprio. Assim, no ano e meio que antecedeu a sua quebra, o Lehman perdeu uns US$32 mil milhões por investimentos feitos com o seu capital próprio com os quais especulou em títulos imobiliário e em derivados. Tenha-se em conta que o capital próprio do banco Lehman, em acções ordinárias, era de US$18 mil milhões e, como já explicámos, isto foi decisivo para precipitar o colapso deste e de outros bancos.

É por isso que a actual reforma do sector financeiro, quando dispõe que o banco apenas possa utilizar o seu capital para comprar títulos governamentais, tenta limitar este tipo de perigos.

Além disso, também procura impedir alguns roubos que os bancos anteriormente realizavam. Descobriu-se, por exemplo, que o Goldman Sachs armava pacotes com títulos arriscados e vendia-os aos seus clientes e, paralelamente, o mesmo banco utilizava o seu capital próprio para investir especulando em que caísse o seu valor. Em resumo, o banco operava contra os seus clientes.

A ideia de impedir que os bancos operem com o seu próprio capital foi aventada por um ex-presidente da Reserva Federal, Paul Volcker, um liberal ortodoxo. Volcker comparou a operação dos bancos com o seu capital com a actividade dos fundos de cobertura (hedge funds), que se caracterizam por realizar apostas altamente arriscadas, utilizando dinheiro de clientes muito ricos. A proposição de Volcker é a de que, ou se trata de um banco ou de um fundo de cobertura, mas é inadmissível que haja hedge funds banks. A reforma financeira aprovada, se bem que não elimine completamente as operações com capitais próprios, limita-as de forma significativa.

Mercado de derivados centralizado

Até agora os mercados de swaps funcionaram de maneira descentralizada e isto significa que as as partes combinavam livremente, entre si, as operações (somas envolvidas, preços, prazos temporais). Antes de continuar, explicamos o que é um swap através de dois tipos característicos.

Um deles é o swap de juro variável contra juro fixo. Aqui, as duas partes acordam um valor nocional, sobre o qual calculam-se os montantes a pagar, e permutam fluxos de acordo com a variação das taxas de juro. Por exemplo, se a taxa de juro aumenta, a parte que se comprometeu a pagar a taxa variável deverá transferir a diferença para o seu contraparte e inversamente, se baixar a taxa de juro.

O outro caso típico de swap é o dos CDS (credit default swap), pelo qual uma parte vende protecção à outra parte diante da eventualidade de que um título (também pode ser uma empresa) entre em incumprimento. A parte que vende protecção compromete-se a pagar o valor e os juros do título se o emissor do mesmo não fizer. Em troca, a parte que vendeu a protecção recebe uma certa quantidade de pontos percentuais dos juros que o título paga.

Ora bem, a reforma financeira actual determina que todas estas operações se façam num mercado centralizado, o Clearing que, ao operar de forma centralizada, gera um preço único que é conhecido pelos operadores. Com isto, procura dar-se transparência a estes mercados. Além disso, a Câmara [de Compensações] garante as operações e isto significa que, se uma das partes não cumprir, a Câmara assume o compromisso de cumprir as suas obrigações para com a outra parte. Em contrapartida, a Câmara exige que as partes depositem garantias no momento de fechar o swap. Exemplos de mercados centralizados são os de futuros (cambiais, de matérias-primas, etc) ou bolsistas.

A reforma financeira também proíbe aos bancos operar em derivados. De agora em diante deverão fazê-lo através de empresas associadas,mas com capital próprio separado.

Regulamentações e mercado em perspectiva

Para a análise das medidas adoptadas convém ter uma certa perspectiva histórica das relações entre o funcionamento dos mercados e as regulamentações estatais. Podemos dizer que elas têm variado pendularmente. Nos primeiros anos da crise de 1930, por exemplo, a regulamentação era escassa e o Estado tinha pouca disponibilidade para intervir na economia com o objectivo de salvar os bancos. As ideias então prevalecentes eram as de que, durante a crise, os capitais mais débeis, ou menos produtivos, deveriam cair; de que a deflação e a sustentação do valor do dinheiro, ajudariam a "depurar" o sistema económico; e de que isso contribuiria para reforçar a disciplina do trabalho e a sujeição às leis do mercado. Esta orientação ficou conhecida com o nome de "liquidacionismo". Assim, por exemplo, uma vez que os depósitos não estavam assegurados, não havia forma de evitar as corridas aos bancos e, entre 1929 e 1933, mais de 9000 bancos faliram sem que a Reserva Federal interviesse.

Contudo, em 1933, perante a profundidade da crise, verificou-se a viragem para uma política intervencionista a qual, além da desvalorização do dólar, estabeleceu os seguros de depósitos e adoptou medidas de controle sobre a futura operação dos bancos e estas medidas continuaram a aplicar-se nas décadas seguintes, mas, entretanto, os bancos e as outras instituições financeiras foram encontrando modos de as eludir e de ampliar a sua força. Por exemplo: o crescimento do mercado de eurodólares foi devido, em boa media, ao facto de, na década de 1960, bancos norte americanos eludirem as regulamentações que impediam a saída de fundos dos EUA pois, para isso, abriam sucursais na Europa que aceitavam depósitos em dólares. Na base desta expansão estava o impulso para a internacionalização do capital e o desenvolvimento da acumulação capitalista, que não podem ocorrer sem o desenvolvimento do crédito.

Assim sendo, a crise capitalista dos anos 1970 verificou-se no contexto de um capitalismo com forte intervenção estatal, mas, desde meados dessa década, a resposta do capital mais concentrado [monopolista] consistiu na exigência daquilo que se defendia antes das regulamentações de 1930 e, assim, a opinião dominante no establishment económico passou a exigir a liberalização dos mercados. No fundo exigia-se que a lei do valor impusesse o seu rigor; que se eliminassem os capitais improdutivos; que se desse passagem a uma maior centralização do capital e ao ataque em regra contra os sindicatos e o trabalho. Por sua vez, o aumento do desemprego, que era um produto da crise, contribuiu para disciplinar a classe trabalhadora.

Esta ofensiva – popularmente conhecida como a reacção neoliberal – contribuiu para o restabelecimento dos lucros do capitalismo e para a generalização das relações capitalistas a nível planetário, passadas mais de três décadas, a política oficial inclina-se, agora, para um controle estatal em maior grau e a posição de Volcker, que, há uns anos, era um campeão do neoliberalismo, é representativa desta mudança de humor.

A pergunta que se deve formular é se estes movimentos pendulares, de longo prazo, obedecem a mudanças simples nas modas ou, pelo contrário, respondem a impulsos mais básicos, gerados pelas relações sociais.

A nossa resposta é que estas viragens são fruto de uma contradição que é inerente ao modo de produção capitalista. É que, por um lado, o funcionamento do mercado e as leis da concorrência requerem um certo grau de intervenção do Estado. Por exemplo, o Estado é imprescindível para que haja moeda, para sustentar e amparar a propriedade privada do capital e para garantir o acesso ao mercado em igualdade de condições a todos os capitais. É isto que explica que, por exemplo, em princípios do século XX, o governo dos EUA interveio para desarticular o monopólio da Standard quando ele ameaçou seriamente os interesses de capitais que estavam fora do grupo.

Contudo, a intervenção estatal também pode travar e entorpecer os mecanismos do mercado e da concorrência, que são aqueles que, em última instância, permitem que actue a lei do valor-trabalho. Por este motivo, a períodos de aumento relativo do intervencionismo sucedem-se outros de maior liberalização. Isto explica, também, porque é que durante as etapas de auge e de euforia económicas [ boom ] se torna mais intensa a pressão para abrandar as regulamentações ou para as eludir (precisamente quando mais falta fariam tais controles). E porque durante as fases em que sucedem as maiores quedas de valores [depressão] aumentam as pressões para, " agora sim ", impor controles e limites às bolhas e ao endividamento (precisamente quando menos fazem falta esses controles).

As reformas financeiras agora aprovadas devem, então, ser examinadas com esta perspectiva geral.

Para além disso, fica em suspenso tudo aquilo que faz a regulamentação e o modo concreto de aplicar a reforma, pois em torno das "letras pequenas" serão travadas lutas entre fracções distintas do capital pela obtenção da melhor posição na luta competitiva.

Explicação superficial da crise

Na base de muitos dos argumentos e dos raciocínios que circulam hoje sobre esta matéria encontramos uma explicação das causas da crise que é desesperadamente superficial. A história que se conta é do seguinte tipo:

Tudo teria começado nos primeiros anos da década de 2000, quando se verificou um excesso de poupança e, portanto, uma grande liquidez, a nível mundial, que se fez sentir, sobretudo, nos EUA. Por essa época, fundos provenientes da Ásia e do Médio Oriente procuraram refúgio nos EUA. A isto acrescentou-se o facto de que as empresas também tiveram excessos de poupanças líquidas e, no conjunto, estas poupanças levaram a que houvesse uma baixa da taxa de juro, o que coincidiu com a política do FED nesse momento, e forneceram o combustível para a expansão do crédito e das finanças.

As baixas taxas de juro fomentaram o aumento dos preços imobiliários e de diferentes tipos de activos financeiros. Por sua vez, a subida do valor destes activos tornou possível um crescente endividamento financeiro pois os títulos eram entregues como garantia para pedir mais empréstimos os quais pressionavam novas altas dos activos, etc. Ao mesmo tempo, criaram-se novos e complexos instrumentos financeiros que geraram a impressão de que o risco se dispersava e de que os investimentos eram seguros e isso expandia a bolha. No fim, tudo isto levou à super-expansão da construção de habitações e à bolha imobiliária a qual foi alimentada pela cobiça dos banqueiros e pela falta de controlos.

Pois bem, neste relato falta explicar alguns factos essenciais. Por que diabos é que os fundos líquidos não foram investidos na Ásia? Por que é que as empresas dos EUA e de outros países do G-7 dispunham de liquidez que não reinvestiam produtivamente? Por que é que o investimento se manteve relativamente baixo na recuperação da recessão de 2001? No relato oficial que é conforme à explicação dominante não há respostas para estas perguntas.

Do ponto de vista do marxismo, pelo contrário, estas questões podem ser explicadas por uma situação de sobre-acumulação de capital que foi verificada nos EUA no início dos anos 2000 e, nos países asiáticos, por volta de 1997-1998. Aquilo que destacamos com isto é que a explicação da crise económica não pode desprezar os problemas associados à acumulação dos capitais e à sua rendibilidade. A especulação e o endividamento são manifestações suas – ainda que, por sua vez, reactuem e agravem os problemas. É utópico pretender eliminar a crise combatendo apenas "a superfície" do fenómeno.

Voltarão a produzir-se booms, especulações e cracks

As medidas adoptadas, nos EUA, não eliminarão bolhas futuras, sobre-investimentos e cracks. Podem-se mudar ou serem eliminadas certas maneiras e dinâmicas em que opera a especulação ou em que se dão os booms, mas a possibilidade de bolha, de super-valorização de activos, de manias investidoras e de super-acumulação, e os seus colapsos posteriores é inerente ao mercado capitalista.

Destaquemos, além disso, que os banqueiros já estão a tomar medidas para se ressarcirem dos maiores custos que a reforma lhes possa causar. The New York Times (16/Julho/2010) informa que os bancos estão a anunciar aos seus clientes que aumentarão as comissões para diversas contas e que anularão descontos. Significativamente, a agência de protecção do cliente vai funcionar no âmbito da Reserva Federal o que é um símbolo da influência que os bancos continuarão a ter na sua própria regulamentação.

Em termos mais gerais, digamos também que o pessoal encarregado de regular a actividade financeira, a partir do Estado, provém, quase invariavelmente, da actividade financeira e a ela voltará quando terminam as suas funções públicas. Desta maneira esse pessoal "altamente especializado" está sempre embebido das necessidades do capital financeiro; ainda que seja passível de sentir a influência do resto dos capitais.

Logicamente, é possível que a limitação das aplicações dos capitais próprios dos bancos ou do seu endividamento gere maior segurança na actividade bancária, ainda que, em contrapartida, os bancos venham a aumentar o spread de taxas e as comissões que cobram para manter os seus lucros, e também se deverá ter em conta que os bancos que operam por conta de clientes e fazem mercado estão sempre a um passo de anular a diferença entre investir com capital próprio ou com capital alheio.

Contudo e acima destas questões, o mais importante é ter presente que os bancos, qualquer que seja a regulamentação que se lhes aplique, indiscutivelmente deverão continuar a emprestar a empresas e a consumidores e, por isso, quando estourar a próxima crise de acumulação e as empresas quebrarem ou despedirem trabalhadores, os créditos não poderão ser regularizados e os bancos sofrerão perdas de qualquer maneira. Então, novamente, o Estado correrá a salvá-los e, novamente, se iniciará uma ronda de discussões sobre mais ou menos regulamentação... até a crise seguinte.

Mais ainda, já, neste momento, todo o sistema bancário está em perigo diante da possibilidade de que se verifique o incumprimento da dívida grega, de outros países europeus ou do Dubai. Ainda que muitos desses bancos credores não hajam investido o seu próprio capital nestes títulos e ainda que eles tenham um nível de endividamento reduzido, nada os salvará do golpe da desvalorização caso ocorram tais incumprimentos. Os bancos tão pouco serão imunes a futuras mudanças de taxas de juro, que na maior parte das vezes estão associadas aos problemas da acumulação de capital, pois, uma vez que os bancos investem em títulos a longo prazo e obtêm dinheiro a curto prazo, quando mudam as condições de financiamento, por exemplo, quando aumentam as taxas de juro que têm de pagar para reter os seus depositantes, sofrem perdas por "descobertos".

Aqueles que querem consertar o capitalismo com reformas supõem que, de todas as formas, os regulamentos e supervisões estatais acabarão com a especulação, mas a realidade é que os bancos e as instituições financeiras não bancárias, na maior parte das vezes, encontram formas de iludir essas regulamentações e esses obstáculos. As manobras que realizaram nos últimos anos para iludir as regulamentações dos acordos de Basiléia sobre o capital bancário demonstram-no.

Além disso, quando aumentam os preços dos activos e os lucros florescem, os capitais líquidos escorrem por todos os poros da economia, para continuar a alimentar a festa, que, naturalmente, assenta na extracção de mais-valia. Em todo o caso, é possível que se a taxa de lucro dos bancos for relativamente baixa, muitos capitais líquidos não sejam despejados no sector, mas utilizarão outros canais, como os fundos de cobertura, de investimento, etc, para participar e alimentar o auge e a especulação. Destaquemos também que estes capitais provêm de todos os rincões do universo capitalista. Muitas vezes são fundos líquidos, por exemplo, por amortizações, de empresas produtivas de diversos sectores e, outras vezes, são fundos de pensões ou aforros provenientes das empresas de seguros. Por isso, trata-se de uma questão do conjunto do capital e não de uma fracção sua.

Esta mecânica repete-se muitas vezes. Quando se difundem as ondas de optimismo, os capitais em dinheiro dirigem-se aos ramos ou sectores que prometem maiores lucros e isso conduz à baixa das taxas de juro que se cobram pelos empréstimos às empresas envolvidas em tais actividades. A subida do preço dos activos, por sua vez, dá lugar ao endividamento e alimenta o boom o que impulsiona, ainda mais, a vontade de investir das empresas, desejosas de se manterem nos mercados e de resistirem à luta competitiva. Este processo prolonga-se até que rebente a crise e se generalize a baixa de preços de cotações sendo destruídas somas enormes de capital e sendo provocada a devastação das forças produtivas e penalizados os trabalhadores.

Vejamos ainda a questão através do prisma dos mercados financeiros. Como explicámos, aparentemente é uma "solução" para os males da especulação com derivados criar um "Clearing" e centralizar estas operações, mas os mercados de futuros ou bolsistas são centralizados e as bolhas e os movimentos especulativos sucedem-se neles com toda a regularidade. Por que deveria mudar a situação em relação aos mercados de swaps ?

Em conclusão: a reforma financeira está de acordo com o diagnóstico dominante sobre as causas da crise e encaixa na ideia de "domar os mercados" para impedir novas crises. Mas não existe nenhuma base objectiva para poder sustentar que eliminará as contradições de fundo do sistema capitalista, que darão lugar a futuras crises de acumulação.

[*] Economista autodidacta, argentino.

O original encontra-se em http://rolandoastarita.wordpress.com/... . Tradução de JF, revista por FCP.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
31/Jul/10