Exclusão política, ditadura mediática e democracia de baixa intensidade

por Volodia Teitelboim [*]

Volodia Teitelboim. O tema da exclusão associa-se em absoluto à pergunta "será o Chile uma democracia?"

Não, o Chile não é uma democracia.

Evidentemente, é um regime que não é o da ditadura militar, contudo, mantém com a anterior ditadura militar um tácito consenso e acordo para governar e administrar o país conforme a estrutura que a ditadura delineou.

Neste sentido, o Chile é o país onde não chegou o fim da ditadura, apesar de que o ditador já cá não está.

O ditador está morto

Pinochet já cá não está, desde que fez, como disse um habilidoso, um "cão morto", pois que se foi sem pagar a conta. [1]

Os seus admiradores, que tão agressivos, furiosos e inexoráveis se mostraram nos seus funerais, continuam a travar uma batalha inútil para que no Chile não se fale de ditador, mas sim de presidente, quando em todo o mundo o nome de Pinochet se associa à palavra ditador.

Este país traz uma venda nos olhos que lhe foi posta pelos meios de comunicação e o pinochetismo, porque Pinochet morreu, mas o que não está morto é o pinochetismo, e dado que ainda o teremos connosco por mais algum tempo, porque controla em demasia o país. Detém o controlo do poder económico; tem quase a metade, que se pode transformar num empate, no Parlamento; possui todos os meios de comunicação mais influentes, a começar pela televisão, e o Chile é o único país, que eu conheça, onde a esquerda, o mundo democrático, o mundo progressista, o mundo livre, não tem qualquer jornal diário para fazer frente à campanha de envenenamento quotidiano levada a cabo pelo poder monopolista que, através de duas cadeias, El Mercurio e La Tercera, controla completamente os diários do país e pesa de forma decisiva na televisão.

Retrocesso

Assim, o Chile retrocedeu.

Custa pensar que neste país já houve movimentos democráticos a alcançar o poder, e que promoviam a livre consciência das audiências, porque agora tudo o que se diz não passa de mentiras ou de meias verdades, que sempre os favorecem a eles. É o que ocorre com a televisão, inclusive na Televisão Nacional, que começa todos os seus noticiários com crime e mais crime e mais crime. Manifestamente, o país não está representado nem está informado sobre o mundo que avança; do que sucede na América Latina quase não há notícia.

E isto é imposto naturalmente, não, digamos, pelos canais que são propriedade directa de Piñera ou de Claro, mas pela própria Televisão Nacional, que é dirigida por um directório empatado: tantos de direita, tantos da "Concertação", pelo que não se pode atacar, não se pode defender, sendo ao mesmo tempo penoso ver como a direita de há algum tempo para cá se lançou na ofensiva a nível comunicacional, e trata o fenómeno da corrupção como se ela própria não fosse a mãe da corrupção e sócia em todos os seus desmandos.

Creio encontrarmo-nos hoje numa situação de algum modo desapontadora para os que no mundo acreditavam que o afastamento de Pinochet traria a democracia. Acabou-se essa auréola de um Chile democrático, e o efeito que teve a transmissão pela televisão dos funerais de Pinochet, com todas as provocações lá verificadas, faz com que no mundo inteiro se manifeste a preocupação pela falta de democracia no Chile, pela ausência de respeito pelos direitos humanos, um problema que corresponde, no fundo, à essência do sistema.

A exclusão é a coroa do sistema, e para o demonstrar não precisamos de nos remeter a épocas longínquas, por exemplo, àquela declaração feita nos fins do século XIX pelo banqueiro Matte: "somos os donos do país, possuímos o capital e também a terra, todos os demais formam uma massa influenciável e que se pode comprar; por isso não têm direito a nenhum poder". Esta "filosofia" dos patrões, medonha, não desapareceu de modo algum. Ainda existe no nosso país esse cabouco da história que, desde a conquista e a colonização, passando pelo século XIX e o século XX, sempre se manteve em vigor: o poder do império do dinheiro e do mercado, agora agravado pelas transformações da sociedade em muitos dos países do mundo, no sentido da renúncia aos valores e fazendo do dinheiro, do consumismo, os ditames mais importantes na vida. O fundamental neste sistema não é a democracia nem a liberdade nem o respeito pela pessoa, e isto é absolutamente necessário compreendê-lo.

Mentira rotunda

A Pinochet agradavam-lhe os plebiscitos, porque os fabricava no escritório, e uma semana ou um mês antes já tinha prontos os resultados, antes que se realizasse o plebiscito; certa vez, – a propósito de um dos primeiros plebiscitos –, chegou a dizer que havia votado três vezes e que à terceira vez o fizera usando o nome do seu cão. Essas eram farsas grotescas, em que o próprio Pinochet dizia "bom, acabou-se a política, não haverá eleições".

Um dia, um dos seus assessores mais importantes, Jaime Guzmán, falou com ele sobre o assunto e insinuou-lhe que deveriam ser feitas eleições.

Pinochet irritou-se: "para que quer eleições, para as perder? Não as haverá nunca"; mas não, disse-lhe Guzmán, há que inventar um sistema a permitir, em toda e qualquer circunstância, que sempre ganhemos e nunca percamos, porém, fazendo-o pela lei. E nada lhe custava fazê-la, pois que a lei, como lei discutida, não existia; bastava um decreto feito em cinco minutos, ou num minuto. Deste modo se fabricava uma lei sobre a base de que assim o requeria o sistema, o ditador ou os seus tecnocratas e "Chicago boys". Também dali partiu essa ideia de que nunca poderia renunciar, porque se diz até que Pinochet – segundo os seus próprios parciais –, bom, foi um ditador, cometeu alguns excessos, – chamam excessos à hecatombe –, porém teria aberto o caminho à democracia e entregou-a ao mundo civil, porque ele buscava a democracia.

Esta é uma mentira rotunda, uma mais em um milhão de mentiras.

O seu cúmplice e companheiro de Junta, Mathei, o Comandante em Chefe da Aviação, relata num livro, recordando a discussão então havida, que ele – coisa que foi efectiva –, no dia do último plebiscito, atravessando La Moneda pelo pátio, falou com os jornalistas que lhe perguntavam qual havia sido o resultado do plebiscito. E disse-lhes: "perdemos"; de seguida foi para a reunião com Pinochet e a Junta. Ali Pinochet declarou-lhe que "tenho tudo previsto, vou decretar o Estado de Sítio, o toque de recolher, vou pôr tropas na rua, e hoje os comunistas vão provocar uma grande desordem, e assim é que não me irei, não me vou embora do poder". Os outros membros da Junta, Mathei incluído, viram tratar-se já de doidice varrida, e que o país jamais suportaria tal coisa.

Retorquiram-lhe, "isso não é sensato, há que reconhecer que fomos derrotados".

Pinochet diz-lhes então: "dado que me deixam a mim sozinho, tenho que trabalhar só com o Exército, e vocês pura e simplesmente lavam disso as mãos".

"Nós apoiámo-lo se se ativer a uma resposta sensata", respondem-lhe, ao que ele se pôs em fúria.

Um dos presentes desmaiou, porque a reunião se pusera muito tensa; diz então Pinochet: "defender-me-ei com os meus", ou seja com o Exército, coisa que tampouco podia fazer, porque lhe cairia o mundo inteiro encima.

De modo que, isso de apresentá-lo como uma espécie de pai da democracia, é uma mentira colossal, uma completa sem-vergonha.

Trapaça com resultado previsível

O problema é que esta invenção eleitoral foi Guzmán a recomendá-la; fez-se a tal operação de engenharia, consistente em assegurar que sempre ganhariam as eleições, e para esse efeito se ditou o sistema binominal, em acordo com espíritos democratas mais ou menos desfalecidos, que já tinham colaborado na ideia de dar o golpe, que haviam mobilizado todos os organismos representativos, começando pelo Senado, a Câmara de Deputados, a Controladoria, a Corte Suprema, para proclamar que o regime democrático mil por mil cento de Salvador Allende era uma ditadura atroz que havia de precipitar o Chile no inferno, e que todavia seguem falando do mesmo.

O que foi efectivamente a Unidade Popular, com todos os seus valores positivos e morais, deve ser um tema que se enfoque mais e mais, para que em particular as novas gerações, e também alguns dos que viveram nessa época, possam recordar esse regime absolutamente democrático e de respeito pelos direitos humanos.

O regime eleitoral do Chile é o mais monstruoso e antidemocrático que existe no mundo e caracteriza-se por um cinismo espantoso. [2]

Um humorista disse então que haviam imposto uma revolução nas matemáticas, porque a combinação que obtém um terço mais um voto consegue o mesmo número de parlamentares daquela que obtenha dois terços menos um voto, ou seja, que 33% ou 32% elegem o mesmo ou são iguais a 66% ou 65%, e assim estas eleições são sempre uma farsa. Uma trapaça, mas onde os candidatos que vão ser eleitos já se conhecem de antemão.

Na ditadura de Carlos Ibáñez, este dissolveu o Congresso e ideou, ou idearam por ele os seus assessores, o que se chamou de "Congresso termal", porque Ibáñez funcionava nas Termas de Chillán. [3] Ali convocou os chefes de partido desse tempo, que eram os conservadores, os liberais, os radicais, os democratas, e um ou outro trânsfuga sindical, a fim de repartir os lugares na Câmara e no Senado entre todos eles; de tal maneira que aquilo que apenas tinham a fazer era apresentar o número de candidatos exigido pela lei e formar a Câmara, sem que houvesse eleições; e assim se fez, não houve eleições e designaram-se esses senadores e deputados termais, como então foram apodados. Hoje o resultado é o mesmo, porque, com esta coisa do chamado sistema binominal, acontece que as duas coligações sempre elegem os seus tão facilmente quanto somar 1 e 1. Já se os conhece, porque a atribuição é excelente, precisa, tem de antemão nomes e apelidos, nada pode falhar, com a condição de se respeitar este critério: o povo tem de ficar à margem, porque para eles é uma massa à venda, mas contudo influenciável, que numa eleição livre os pode derrotar, sobretudo em plebiscito.

Assim este sistema é antidemocrático por essência, porque, assim, com estes parlamentos submissos, dóceis, não é realmente possível uma defesa séria dos direitos humanos, nem do povo, que está ausente, que é uma espécie daquilo que em direito se designa por "morto civil" [4] . Tem direito a votar para o Presidente, pode votar por um deputado, mas nada poderá quanto à destituição de um senador, não o pode afastar porque, como se recordou aqui, os quórum são altos, de tal maneira que, segundo a lei, tampouco se pode anular o próprio sistema, incluso com o Congresso actual. Não se pode, ponto final. Já Lagos [5] montou o espectáculo, ou quis descartar-se da sua responsabilidade, enviando projectos de derrogação que nunca foram aprovados ou sequer discutidos.

Mobilização

Então, pergunto-me: e que vamos fazer?

O que é necessário fazer é realizar todos os esforços, porém, e sobretudo, mais do que em relação ao Congresso, mais do que em relação aos partidos da Concertação, com os quais também se pode, desde logo, conversar, do mesmo modo que se pode conversar para uma real revogação com aqueles que se comprometem e no final não cumprem. O que é preciso é que a rua se exprima, ou seja, que haja mobilização social, que saia a gente, todos os descontentes, os estudantes, os empregados públicos, os empregados particulares, a gente que sofre por falta de uma adequada atenção médica, que saiam todos à rua, e o que a mim me parece é que essa chamada explosão dos "pinguins", quer dizer, dos estudantes, do básico e também do ensino médio, é o grande exemplo que temos a seguir, com as populações, os sindicatos, os trabalhadores, unindo todos os descontentes, todos os que não aceitam este regime, que não são só os comunistas, os miristas, as pessoas de esquerda, os que foram postos à margem da sociedade [pelo sistema eleitoral] e que estão reduzidos à condição de cidadãos passivos, porque este sistema afecta a grande maioria da população.

Entrou em funções um novo governo, nós votamos por Michelle Bachelet e vemos que desgraçadamente é mais do mesmo, o que a direita aproveita para passar à ofensiva da maneira mais tenebrosa, mais brutal, como o que há pouco aconteceu nos recorda o que a direita fez durante o governo de Allende.

O golpe de Estado não deve voltar nunca mais, mas pessoas como Moreira e muitos outros afirmam que "não há que dizer nunca mais", que há que admiti-lo de novo e porque não, desde que se apresentem condições favoráveis para tal, de modo que temos de estar alerta.

O Chile de hoje não é de molde a que possa instilar confiança.

Com verde esperança

Há países que ganham um sentido de independência e também de preocupação social, de respeito pelo seu povo, que são grandes exemplos a seguir, no entanto pretende-se que o Chile continue a viver com o mercado todo-poderoso, com a injustiça absoluta, com a falta de justiça, porque nos últimos dias o Poder Judicial falhou, favorecendo em alguns processos os familiares de Pinochet, e também o seu testamenteiro. Apresentam isso como grandes triunfos, porque ao fim e ao cabo esta é também uma luta que atravessa todo o país. Duma ou doutra forma, contam com elementos de apoio na justiça, nos Tribunais, no Parlamento e, de modo absoluto, têm o poder da média. Creio que o papel dos média é um papel escandalosamente corrupto e negador da verdade, como o são essas "coisas" chamadas de programa com consulta colectiva telefónica, que não passam de manipulações para conseguir que a resposta seja uma resposta como que se a consciência social se houvesse perdido.

É muito importante recuperar a consciência social.

Sozinhos não conseguiremos derrubar esta conjura, em que eles se combatem, mas na hora de manter as bases do sistema inamovíveis, como também é o caso com o sistema neoliberal, se juntam ou não dão a votação por suficiente para que haja aprovação.

Eu creio que o que as pessoas têm a fazer é vir para a rua, a classe operária, com todos os seus problemas, não precisam inventar pretextos; vão falar da vida real, do seu descontentamento, das necessidades de que o poder não quer saber, da injustiça, e também contra a corrupção, porque a corrupção existe neste país, ainda que sempre se haja jactado de ser na América Latina um país relativamente virtuoso, mas foi corrompido pela ditadura e os métodos viciosos também cresceram pois a ditadura tomou toda a administração pública.

O país está em grande parte manietado, há que romper as amarras, há que passar a uma ofensiva e há que agir com a cabeça, com inteligência, com imaginação. Precisamos robustecer essa esperança que brota magnífica, como jamais havia acontecido, na América Latina, com os exemplos de Cuba, da Venezuela, da Bolívia, do Brasil, o exemplo do Equador, o do Uruguai. Quero com isto dizer que a maior parte da América Latina se volta hoje para a esquerda. Como já foi dito, o mapa pinta-se da cor verde esperança, e dessa esperança participamos, mas desde que saibamos fazer na rua, lutando a cada dia e com todos os aliados que nos sejam necessários para restabelecer no Chile a democracia real, e seja um digno acompanhante do resto da América Latina de Bolívar, de San Martín, de O'Higgins, de Manuel Rodríguez y de Salvador Allende.

Notas do tradutor:
[1] No Chile diz-se "hizo un perro muerto" como em português se diz "pregou um calote" ou "foi-se embora sem pagar". Em castelhano, "perro" e "perro muerto" têm, além disso, como é óbvio, um sentido absolutamente depreciativo.
[2] Conforme o sistema eleitoral binominal maioritário, são eleitos como senadores as duas primeiras maiorias individuais. Só se uma lista duplicar os votos relativamente à lista que a segue é que obterá os dois senadores. É claro que, assim, só as duas maiores coligações conseguem eleger os 48 senadores e, além disso, em condições de se "empatarem" uma à outra. Para a Câmara de Deputados (120 membros), "vira o disco e toca o mesmo": cada distrito (60 distritos) elege dois deputados que correspondem às duas primeiras maiorias individuais. Se uma lista duplica em votos a lista que a segue obtém os dois deputados.
[3] Congresso termal: entre 1930 e 1932; http://es.wikipedia.org/wiki/Congreso_Termal
[4] No Brasil (tal como em Portugal), não existe a denominada morte civil, embora haja resquício dela, como, por exemplo, no artigo 1.599 do Código Civil de 1916 (novo, artigo 1816). Por esse dispositivo, os excluídos da herança por indignidade são considerados como se mortos fossem. Nas legislações antigas, a morte civil atingia, como pena acessória, os delinquentes condenados por determinados crimes graves. Eram reputados como civilmente mortos. Como consequência, podia ser aberta a sucessão do condenado como se morto fosse; perdia ele os direitos civis e políticos e dissolvia-se seu vínculo matrimonial. O direito moderno repudia unanimemente esse tipo de pena, embora permaneçam traços como os apontados (informação retirada de http://www.mail-archive.com/civil@grupos.com.br/msg00240.html ).
[5] Ricardo Froilán Lagos Escobar, Presidente do Chile de 11 de Março de 2000 a 11 de Março de 2006.


[*] Ex-secretário-geral do Partido Comunista do Chile e Prémio Nacional de Literatura. Intervenção no painel "Exclusão, sistema eleitoral e democracia" da Fiesta de los Abrazos. Título e subtítulos da redacção de El Siglo.   Tradução de Jorge Almeida.

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21/Mar/07