Fantasma georgiano
Do políptico de entrevistas que Oliver Stone fez a Vladimir Putin
interessou-me sobremaneira o exercício de história comparada do
presidente russo sobre José Estaline.
[1]
É que o bendito José e o maldito Estaline continuam a cativar e
a assombrar audiências desde 1922. Para Putin, Estaline teve o seu lado
luminoso e o seu lado escuro à maneira de Cromwell ou Napoleão.
Parece calibrado o ponto de vista. Pergunte-se (ainda hoje) o que pensam a
Irlanda e a Escócia do Grande Matador & Confiscador Cromwell. Sepultado
na Abadia de Westminster, foi acordado (em tempos que já lá
vão) do augusto repouso. Pena sumária: cadáver suspenso em
correntes e decapitado. Mas o mau nome desvaneceu-se. Pergunte-se (ainda hoje)
ao Haiti e a Portugal o que pensam do Grande Fuzilador & Pilhador
Napoleão. Desterrado para a ilha de Santa Helena. Não foi por
acaso que, na França ocupada, Hitler se deslocou (1940) duas vezes ao
Panteão (Les Invalides), a fim de homenagear o seu grão-mestre de
limpeza étnica, execuções em massa, campos de
concentração e câmaras de gás. Mas ao
contrário de E, os líderes C e N conservam monumentos
íntegros e altaneiros e não são acusados de todos os males
pelos LPN.
[2]
Claro: Estaline é o marechal dos infernos. Não pelos tratos
infligidos a parte dos soviéticos (o que pouco ou nada importa ao
business agiprop). Uma das razões da superdiabolização de
JE resulta do facto do seu tempo de poder ter coincidido com o
lançamento das BPESP,
[3]
o estilhaçamento da coluna dos assaltantes e genocidas nazis e o
hasteamento da bandeira rubra no Reichstag. Imperdoável per saecula
saeculorum. O que mais doeu ao capitalismo foi deparar-se com o Exército
Vermelho em Berlim. Grande Guerra Pátria? Epopeia dos povos da URSS ou
da Mãe-Rússia? Para o enciclopedismo digest, os regimentos da
Europa Ocidental que se atreveram a invadir, ensanguentar e saquear foram
detidos e vencidos pelo frio, o Generalíssimo Inverno. Mas o congelador
eslavo foi e será realmente capaz de paralisar vagas e vagas
superarmadas e doutrinadas? E não será estranho que só os
estrangeiros (mesmo nórdicos com pele de urso) se ressintam das baixas
temperaturas? Conhecedores da implacabilidade da sneg,
[4]
os invadidos até buscaram formas de amenizar a estadia dos invasores.
La noblesse oblige. Napoleão e as suas legiões depararam com
Moscovo em chamas. Dispuseram de fogueiras para se aquecerem. Apesar das artes
de bem-receber, os soberbos militarões que pisaram o solo de Lev Tolstoi
os suecos de Carlos XII (1708), os franceses de Napoleão (1812),
os alemães de Hitler (1941) foram rechaçados e
destroçados. Em tempos recentes, a Geórgia (2008), instigada pelo
Ocidente, tentou, por meio de bombardeamentos, submeter a República
Autónoma da Ossétia do Sul, provocando centenas de
vítimas, incluindo militares russos pertencentes à força
de manutenção da paz. Embora em Agosto, sem desculpas da sneg,
[4]
a Geórgia ficou, em poucos dias, com a estrutura castrense em cacos e a
Ossétia declarou a independência e a Abecásia seguiu-lhe os
passos; a Ucrânia (2014), instigada pelo Ocidente, desencadeou a
caça aos russos: a Crimeia e Sebastopol decidiram em referendo
integrar-se na Federação Russa e o Sudeste ucraniano entrou em
rebelião, havendo quem advogue a transformação da
Ucrânia em Malorússia.
[5]
Mantém-se o fadário: quem puser um pé na Rússia
perde as duas mãos. Se (num dia de loucura ou embriaguez) o Ocidente
resolver atacar de novo e frontalmente, tem o guião esgotado: resta o
holocausto nuclear mútuo e com mísseis de longo alcance. Em 18 de
Dezembro (dia de nascimento de José), decidi publicar uma nota
biográfica fora do comum.
O anti-sovietismo primário, secundário e universitário e a
russofobia emergente elevaram Estaline
[6]
a sineta-mor dos pestíferos. Não admira: o estalinismo constitui
uma das rações de combate de eficácia garantida junto das
cabeças de cérebro rapado. Mas os alimentadores de campanhas
não são labregos. Têm um plano e um orçamento. O
estalinismo é usado para desautorizar ou matar à
renascença quanto cheire a socialismo, afastando desta veleidade o mundo
do trabalho e a pequena-burguesia e fazendo pairar o labéu sobre um
país que (embora retornado às lógicas do
Kapital
e carente de uma via socialista autocrítica) não abdica da sua
soberania nem do seu desempenho geo-estratégico, o que dificulta o
domínio das nações e de seus recursos pelos executivos
chicaguenses, pentagonenses e cianenses. E a ignorância hiperactiva
campeia: a maioria absoluta dos anti-estalinistas e pró-estalinistas
nunca soube nem procurou saber quem foi Estaline e o que terá sido o
estalinismo concreto e contextualizado. (Estudar estes assuntos implica
trabalho diurno e nocturno e não garante bolsas de estudo nas
Universidades George Soros).
No período dos guardas brancos (de todas as cores) e da
internacionalização militar dos conflitos de classe, dos
processos de industrialização acelerada e da
colectivização da terra, da opção por mais escolas
e hospitais e menos bolbos dourados das igrejas e do preço da
vitória sobre as hordas nazis (25 milhões de mortos e 80% das
estruturas urbanas e fabris destruídas) não há
dúvida de que, no meio da inversão da pirâmide classista e
na sequência de batalhas que só fecharam o ciclo em 1945, se
verificaram perversões do ideário original que mancham mas
não anulam o saldo progressista (plurinacional e mundial) da
Revolução de Outubro. O Congresso do PCUS/1956 denunciou os
desmandos da época de Estaline. O Congresso dos Estados Unidos nunca se
penitenciou do genocídio dos índios, da escravidão em
massa, do lançamento de bombas atómicas, das guerras
intermináveis e do fomento e suporte de ditaduras por todo o planeta.
A tese de Putin convida à reflexão. Que tal um Congresso
Cromwell-Napoleão-Estaline, financiado pelo Programa Erasmus? Por acaso
ou por unção ou amnésia ou falta de registo, não
cometeram e não toleraram graves erros e arbitrariedades? Para estes
queridos líderes
, aplicar-se-á a magnânima tese de que, face às
circunstâncias, não poderia ter sido de outra maneira? Tiveram
pleno direito de se enganar e de se exceder e de não se arrepender ou
condoer? Cromwell e Napoleão e outros regentes e agentes serão
impróprios para figurar ao lado, por baixo ou por cima de JE? E que tal
um relance pelos álbuns das nações? Mais ídolos?
Júlio César e Godofredo de Bulhão e Átila e Gengis
Khan e Hong Xiuguan e Afonso de Albuquerque e Carlos V e Hernán
Cortés e Tamerlão e Vlad Tepes e Abdul Hamid II e Leopold II e
Nicolau II e Hitler e Mussolini e Hirohito e Shiro Ishii e Franco e Chiang
Kai-Kak e Harry Truman e Werwoerd e Reza Pahlevi e Duvalier e Rios Montt e
Somoza e Stroessner e Mobutu e Idi Amin e Kissinger e Dinh Diem e Pol Pot e
Shuharto e Zia Ul Haqq e Lyndon Johnson e John Kennedy e Chun Doo-hwan e Bush e
Clinton e Kagame? E Obama, Prémio Nobel da Guerra? As atrocidades e
iniquidades directas ou sob a tutela de Homens de Estado desta envergadura
merecem indulto, resguardo e reverência?
E as empresas que colaboraram e lucraram com o nazismo, algumas comprometidas
com o instrumental bélico e torcionário, o holocausto, o trabalho
escravo, a lavagem de dinheiro, a propaganda negra, a espionagem? Porque
não são chamadas aos bancos dos réus pelos magistrados
políticos, académicos e mediáticos? Interesses cruzados?
Memória
à la carte
? Insanável duplicidade? Fontes? Estão disponíveis
à distância de uma tecla. Empreendedores-entusiastas do III Reich
não escassearam:
exemplos?
Thyssen Krupp, MAN, BASF, BDF, Henkel, Siemens, Daimler-Benz, Porsche,
Volkswagen. BMW, Ford, Commerzbank, Deutsche Bank, Suisse Bank, Allianz,
General Motors, General Electric, IBM, Lufthansa, Bosch, Hoechst, Bayer, Kodak,
Hugo Boss, Coca-Cola, Nestlé.
E se alguma instituição (tipo TERP)
[7]
negociasse com estas companhias
prestige
o reconhecimento dos seus pactos com o Diabo Ariano? Nem se clama por
justiça à Nuremberga ou sequer à Haia. Seria
ingénuo. Os procuradores e juízes das altas instâncias
são avessos a acórdãos que perturbem a
pax
capitalista. Constituiria um sinal esperançoso que (ao menos) se
gravasse uma punção nos produtos e serviços
suásticos (à maneira dos metais preciosos, das baixelas fidalgas,
dos botões de punho): HCG.
[8]
Mas não se antevê qualquer contrição e
reparação. Os empresários do nazismo passaram
incólumes nos santos e altissonantes inquéritos do
pós-guerra. Para expiar os delitos deste mundo basta um georgiano, filho
de um sapateiro e de uma costureira.
Estaline está na moda. Bate Hugo Boss.
[1]
Oliver Stone
(n. 1946). Cineasta e guionista. Galardoado com óscares, globos e ursos
de ouro. Entre 2015-2017, entrevistou o chefe do Estado russo
The Putin Interviews.
Em 2017, o documentário passou em diversas televisões. A
maioria dos média anedotizou a série de quatro horas
seleccionando uns apartes sobre menstruação e homossexualidade. A
generalidade dos
opinion makers
desancou o entrevistador, vincando que na juventude degustou umas resinas
hippies.
Pecadilho de que Mister Obama se gabou. A América gosta de presidentes
que confessem pequenos desvios da norma. Assim até parecem humanos. OS
é que não merece contemplação: entrevistou Putin e
terá mascado hax. No tempo de Truman, seria banido dos USA como Charles
Chaplin. No tempo de Trump, é acusado de russofilia. Quanto ao
cannabis,
embora o maior jardim botânico mundial seja Marrocos (reino que
beneficia de protecção total dos USA e da UE e de seus cabos de
guerra). OS que se guarde. Poderá vir a ser incriminado por
ligações ao Irão e aos Guardas Revolucionários. O
termo haxixe foi introduzido no vocabulário universal por Hassan bin
Sabab, chefe xiita persa do séc. XI. Para desalojar os cruzados de uma
fortaleza, forneceu aos sitiantes erva seca (
hashish
) e os que combatiam sob este acicate eram denominados
aschinchin
ou seja os que consomem ou estão sob o efeito do
hashish.
Do
hashish
ao
assasin
foi um passo. Do
assasin
ao assassino foi outro e curto passo.
[2] LPN/Livros da Peste Negra.
[3] BPESP/Bases do Primeiro Estado Socialista do Planeta.
[4]
Sneg.
Neve.
[5]
Malorússia.
Pequena Rússia.
[6]
José Estaline
(1878-1953). Nascido em Gori, Geórgia. Secretário-geral do PCUS
(1922-1953). Primeiro-ministro (1941-1953). Comissário do Povo para a
Defesa (1941-1947).
[7] TERP/Tribunal Europeu de Registos & Patentes.
[8] HCG/Hansa Cruz Gamada.
Die Hanse
ou Hansa ou Liga Hanseática ou Germânica: sistema de
organização económico-mercantil que fez lei na Europa do
séc. XII ao séc. XVII.
Este artigo encontra-se em
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