por Peter Maass
								
							
							
							 Em janeiro passado, 
							 Laura Poitras
							recebeu um email anônimo pedindo-lhe que mandasse sua chave
							pública de criptografia. Já fazia quase dois anos que Laura vinha
							trabalhando num documentário sobre vigilância e espionagem, e
							ocasionalmente recebia mensagens de desconhecidos. Dessa vez ela respondeu e
							enviou sua chave pública, permitindo à outra pessoa o envio de
							e-mails criptografados que só a própria Laura poderia abrir,
							usando sua chave particular. Mas ela não achou que fosse dar em muita
							coisa.
							 Em janeiro passado, 
							 Laura Poitras
							recebeu um email anônimo pedindo-lhe que mandasse sua chave
							pública de criptografia. Já fazia quase dois anos que Laura vinha
							trabalhando num documentário sobre vigilância e espionagem, e
							ocasionalmente recebia mensagens de desconhecidos. Dessa vez ela respondeu e
							enviou sua chave pública, permitindo à outra pessoa o envio de
							e-mails criptografados que só a própria Laura poderia abrir,
							usando sua chave particular. Mas ela não achou que fosse dar em muita
							coisa.
							
							
							 O desconhecido respondeu com instruções para a
							criação de um sistema ainda mais seguro de proteção
							da correspondência entre eles. Prometendo informações
							altamente confidenciais, disse a Laura para escolher, como senhas, frases
							longas capazes de resistir a um ataque maciço de uma rede de
							computadores. "Imagine um adversário capaz de 1 trilhão de
							combinações por segundo", escreveu-lhe o desconhecido.
							
							
							 Pouco depois, Laura recebeu uma mensagem cifrada que listava uma série
							de programas secretos de espionagem e monitoramento de
							comunicações conduzidos pelo governo americano. Ela tinha ouvido
							falar de um deles, mas não dos outros. Depois de descrever cada um dos
							programas, o desconhecido acrescentava sempre alguma versão da mesma
							afirmativa: "Isto eu tenho como provar."
							
							
							 Segundos depois de ter decodificado e lido esse e-mail, Laura Poitras
							desconectou-se da internet e apagou a mensagem do seu computador. "E
							pensei comigo: se isso for verdade, minha vida acabou de mudar", contou-me
							ela há dois meses. "As coisas que ele afirmava conhecer e ser capaz
							de provar eram estarrecedoras."
							
							
							 Laura, entretanto, continuou desconfiada de seu interlocutor. Seu maior temor
							era que algum agente do governo pudesse estar tentando induzi-la a revelar
							informações sobre as pessoas que tinha entrevistado para o seu
							documentário, entre elas Julian Assange, o editor da
							organização WikiLeaks. "Eu dei uma prensada nele",
							lembrou Laura. "Disse que ou ele tinha mesmo aquelas
							informações e estava correndo riscos imensos, ou estava
							preparando uma armadilha para mim e as pessoas que eu conheço, ou
							então era um louco."
							
							
							 As respostas foram tranquilizadoras, mas não o suficiente. Laura
							desconhecia o nome, o sexo, a idade ou para quem trabalhava o desconhecido (A
							CIA? A NSA? O Pentágono?). No início de junho, ela finalmente
							obteve as respostas. Junto com seu parceiro de reportagem, Glenn Greenwald,
							formado em direito e colunista do jornal britânico 
							
								The Guardian,
							
							 Laura
							voou até Hong Kong e lá conheceu um funcionário
							terceirizado da NSA, Edward J. Snowden, que entregou aos dois milhares de
							documentos confidenciais, desencadeando uma polêmica de enormes
							proporções sobre a extensão e a legalidade da espionagem
							exercida pelo governo americano. Laura Poitras estava certa quando pensou que
							sua vida nunca mais voltaria a ser a mesma.
							
							
							
							
							Glenn Greenwald mora e trabalha numa casa cercada pela Floresta da Tijuca, no
							Alto da Boa Vista, um bairro afastado do Centro do Rio de Janeiro. Divide a
							casa com David Miranda, seu companheiro brasileiro, dez cães e um gato,
							e o lugar dá a impressão de uma república de estudantes
							transplantada para o meio do mato. O relógio da cozinha está
							horas atrasado, mas ninguém repara; pratos tendem a se empilhar na pia;
							a sala contém uma mesa, um sofá e uma tevê de tela grande,
							além de um console de Xbox, uma caixa de fichas de pôquer e pouca
							coisa mais. A geladeira nem sempre está abastecida de legumes e verduras
							frescas. Uma família de macacos às vezes ataca as bananeiras do
							quintal, travando ruidosas disputas com os cachorros.
							
							
							 Greenwald trabalha quase o tempo todo numa varanda coberta, geralmente de
							camiseta, short de surfista e sandália de dedo. Nos quatro dias que
							passei com ele, vivia em movimento constante, falando ao telefone em
							português e inglês, correndo para ser entrevistado na cidade,
							respondendo a telefonemas e e-mails de gente em busca de
							informações sobre Snowden, tuitando para seus mais de 250 mil
							seguidores (e travando discussões acaloradas com alguns deles), e depois
							se sentando para escrever mais artigos para o 
							
								Guardian
							
							 sobre a Agência de
							Segurança Nacional dos Estados Unidos, a NSA, tudo enquanto insistia em
							mandar seus cachorros fazerem silêncio. Num momento especialmente febril,
							ele acabou dando um berro: "Vocês querem calar a boca?!" Mas os
							cachorros não se deixaram impressionar.
							
							
							 Em meio a esse caos, Laura Poitras, uma mulher compenetrada de 49 anos,
							continuava sentada num quarto vago ou à mesa da sala, trabalhando em
							silêncio em frente a um de seus muitos computadores. De vez em quando ia
							até a varanda para conversar com Greenwald sobre o artigo que ele estava
							escrevendo, ou às vezes era ele quem parava seu trabalho para espiar a
							última versão de um novo vídeo que Laura estava editando
							sobre Snowden. Conversavam muito  Greenwald em voz bem mais alta e
							falando bem mais rápido do que Laura  e às vezes
							caíam na risada diante de alguma piada ou lembrança absurda. O
							caso Snowden, diziam os dois, era uma batalha em que estavam juntos, uma luta
							contra os poderes da espionagem que, acreditam ambos, são uma
							ameaça às liberdades fundamentais americanas.
							
							
							 Dois repórteres do 
							
								Guardian
							
							 estavam no Rio para ajudar Greenwald, de
							maneira que parte do nosso tempo era passado no hotel onde eles estavam
							hospedados, na beira da praia de Copacabana, onde brasileiros em boa forma
							jogando vôlei na areia acrescentavam aos acontecimentos uma nova camada
							de surrealismo. Laura assinou parte dos artigos de Greenwald como coautora, mas
							quase sempre prefere ficar nos bastidores, deixando que ele seja o único
							a escrever e falar. Por isso, é Glenn Greenwald que as pessoas
							saúdam como um destemido defensor dos direitos individuais, ou
							então acusam de ser um traidor nefasto, dependendo do ponto de vista.
							
							
							 "Eu digo sempre que ela é o Keyser Söze 
							 de toda a história, porque é ao mesmo tempo invisível e
							onipresente", disse Greenwald, referindo-se ao personagem de Kevin Spacey
							no filme 
							
								Os Suspeitos,
							
							 um gênio do crime que planeja tudo, mas se faz
							passar por um pé de chinelo. "Laura está no centro disso
							tudo, mas ainda assim ninguém sabe quem é ela."
							
							
							 Num fim de tarde, acompanhei Laura e Greenwald até a
							redação do jornal 
							
								O Globo.
							
							 Greenwald tinha acabado de publicar um
							artigo no jornal, descrevendo como a NSA espionava telefonemas e emails de
							brasileiros. A notícia provocou grande escândalo no Brasil, e
							Greenwald foi recebido na redação como uma celebridade. O
							editor-chefe apertou sua mão com entusiasmo, fazendo-lhe um convite para
							escrever uma coluna regular no jornal; repórteres tiravam fotos de
							lembrança com seus celulares. Laura filmou parte da festa, depois
							guardou sua câmera e continuou observando tudo. Vi que ninguém lhe
							dava atenção, que todos só tinham olhos para Greenwald, e
							ela sorriu. "Está muito bem assim", comentou.
							
							
							
							
							Laura Poitras parece empenhada em passar despercebida, mais por uma
							questão de estratégia do que por timidez. Na verdade, ela pode se
							mostrar muito determinada quando se trata de pesar o que deve ou não
							falar. Durante uma conversa que começou com perguntas minhas sobre sua
							vida pessoal, ela reclamou: "Isso lembra uma consulta
							dentária".
							
							
							 Mas o retrato resumido é o seguinte: Laura foi criada numa
							família próspera nos arredores de Boston e, depois de terminar o
							ensino médio, mudou-se para São Francisco decidida a trabalhar
							como chef em algum restaurante de primeira linha. Estudou também no
							Instituto de Arte de São Francisco, onde fez cursos com o cineasta
							experimental Ernie Gehr. Em 1992, mudou-se para Nova York e começou a
							abrir caminho no mundo-do cinema, ao mesmo tempo que frequentava aulas de
							pós-graduação em teoria social e política na New
							School [universidade conhecida pelo corpo docente de esquerda]. De lá
							para cá, fez cinco filmes, o mais recente dos quais é 
							 O Juramento
							 sobre Salim Hamdan, um prisioneiro de Guantánamo, e seu cunhado
							que
							vive no Iêmen  e recebeu dois prêmios, o Peabody e o
							MacArthur.
							
							
							 Em 11 de setembro de 2001, Laura morava no Upper West Side de Manhattan quando
							as torres gêmeas foram atacadas. Como a maioria dos nova-iorquinos, nas
							semanas seguintes ela se viu tomada pelo luto e dominada por sentimentos de
							solidariedade e união. Foi um momento, disse ela, em que "as
							pessoas poderiam ter feito qualquer coisa, num sentido positivo". Quando
							esse momento levou à invasão do Iraque, porém, ela achou
							que seu país tinha perdido o rumo. "Sempre nos perguntamos de que
							maneira um país pode se desviar do caminho certo", disse ela.
							"Como as pessoas deixam que isso aconteça, como podem não
							fazer nada enquanto os limites são ultrapassados?"
							
							
							 Laura não tinha nenhuma experiência em zonas de conflito, mas em
							junho de 2004 viajou para o Iraque e começou a documentar a
							ocupação americana.
							
							
							 Logo depois de chegar a Bagdá, ela obteve permissão para entrar
							em Abu Ghraib e filmar uma visita de membros do Conselho Municipal à
							prisão. Isto ocorreu apenas poucos meses depois da
							publicação das fotos em que prisioneiros de Abu Ghraib apareciam
							sendo maltratados por soldados americanos. Um importante médico sunita
							fazia parte da delegação de visitantes, e Laura Poitras filmou
							imagens memoráveis de sua interação com os prisioneiros,
							gritando que estavam trancafiados ali sem razão.
							
							
							 Esse mesmo médico, Riyadh al-Adhadh, convidou Laura à sua
							clínica e mais tarde permitiu que ela acompanhasse sua rotina em
							Bagdá. O documentário que ela produziu então, 
							 O Meu País em Ruínas
							, tem como foco as dificuldades atravessadas pela
							família do médico  os tiroteios e cortes de luz em seu
							bairro, o sequestro de um dos seus sobrinhos. O filme estreou nos Estados
							Unidos no início de 2006 e foi recebido com entusiasmo, tendo sido
							indicado ao Oscar de melhor documentário.
							
							
							 Tentar mostrar os efeitos da guerra sobre cidadãos iraquianos
							transformou Laura em alvo de acusações graves  e falsas, ao
							que tudo indica. Em 19 de novembro de 2004, soldados iraquianos apoiados por
							forças americanas atacaram uma mesquita no bairro de Adhamiya, onde mora
							o médico, matando várias pessoas em seu interior. No dia
							seguinte, a violência irrompeu no bairro. Laura estava com a
							família do médico, e de tempos em tempos subia com eles à
							laje da casa para ter uma ideia do que estava ocorrendo. Numa dessas idas, foi
							avistada por soldados de um batalhão da Guarda Nacional americana. Pouco
							depois, um grupo de insurgentes lançou um ataque que matou um dos
							americanos. Alguns soldados acharam que Laura havia subido à laje porque
							tinha conhecimento prévio do ataque e queria filmá-lo. O
							comandante do batalhão, o tenente-coronel reformado Daniel Hendrickson,
							disse-me que apresentou uma denúncia contra ela no quartel-general de
							sua brigada.
							
							
							 Não há nenhum indício que sustente a sua
							acusação. Combates na área ocorreram durante todo aquele
							dia, de maneira que teria sido difícil para qualquer jornalista
							não se encontrar nas proximidades de algum ataque. Os próprios
							soldados que acusaram Laura me disseram que não tinham provas contra
							ela. Hendrickson ainda comentou que o quartel-general nunca respondeu à
							sua denúncia.
							
							
							 Por vários meses depois do ataque em Adhamiya, Laura Poitras continuou
							a viver na Zona Verde de Bagdá [onde ficavam as autoridades americanas]
							e a trabalhar como jornalista acompanhando tropas dos Estados Unidos. Exibiu
							seu documentário para plateias militares, inclusive na própria
							Escola de Guerra do Exército americano. Um oficial que conviveu com ela
							em Bagdá, o major reformado Tom Mowle, disse que Laura estava sempre
							filmando, e que "fazia perfeito sentido" que estivesse filmando num
							dia de violência. "Acho totalmente ridículas as
							acusações contra ela", afirmou o major.
							
							
							 Embora as acusações não tivessem o apoio de provas, elas
							podem estar na origem das muitas detenções e revistas de bagagem
							sofridas por Laura. Hendrickson e outro soldado me contaram que, em 2007 
							meses depois da primeira detenção da jornalista ,
							investigadores da Força-Tarefa Antiterrorismo do Departamento de
							Justiça entrevistaram os dois, perguntando-lhes sobre as atividades de
							Laura em Bagdá no dia do ataque. A própria Laura, porém,
							nunca foi procurada por esses ou quaisquer outros investigadores.
							"Forças iraquianas e militares americanos atacaram uma mesquita em
							plena hora das preces de sexta-feira, matando várias pessoas",
							contou-me ela. "E a violência se desencadeou no dia seguinte. Sou
							documentarista, e estava filmando na área. Qualquer sugestão de
							que eu soubesse de algum ataque é falsa. O governo norte-americano
							deveria investigar quem autorizou o assalto à mesquita, e não os
							jornalistas que cobrem a guerra."
							
							
							
							
							 Em junho de 2006, todas as passagens de Laura Poitras para voos dentro dos
							Estados Unidos traziam as letras 
							 SSSS
							  sigla em inglês para
							Seleção para Checagem de Segurança Secundária
							, o que significa que o portador será submetido a revistas mais
							rígidas que as habituais. A primeira detenção de Laura
							ocorreu no Aeroporto Internacional de Newark antes de um embarque para Israel,
							onde iria exibir seu filme. No voo de volta, ela foi retida por duas horas
							antes que lhe permitissem entrar de novo no país. No mês seguinte,
							ela foi à Bósnia exibir seu filme num festival e, quando o
							avião que tomou em Sarajevo pousou em Viena, foi chamada pelo sistema de
							som do aeroporto e instruída a procurar um posto de segurança; de
							lá, foi levada a uma van e conduzida a outra parte do aeroporto, e
							depois foi colocada em uma sala onde sua bagagem foi revirada.
							Em junho de 2006, todas as passagens de Laura Poitras para voos dentro dos
							Estados Unidos traziam as letras 
							 SSSS
							  sigla em inglês para
							Seleção para Checagem de Segurança Secundária
							, o que significa que o portador será submetido a revistas mais
							rígidas que as habituais. A primeira detenção de Laura
							ocorreu no Aeroporto Internacional de Newark antes de um embarque para Israel,
							onde iria exibir seu filme. No voo de volta, ela foi retida por duas horas
							antes que lhe permitissem entrar de novo no país. No mês seguinte,
							ela foi à Bósnia exibir seu filme num festival e, quando o
							avião que tomou em Sarajevo pousou em Viena, foi chamada pelo sistema de
							som do aeroporto e instruída a procurar um posto de segurança; de
							lá, foi levada a uma van e conduzida a outra parte do aeroporto, e
							depois foi colocada em uma sala onde sua bagagem foi revirada.
							
							
							 "Abriram minhas malas e examinaram uma a uma", contou Laura.
							"Perguntaram o motivo de minha viagem, e respondi que tinha exibido um
							filme em Sarajevo sobre a Guerra do Iraque. E então fiquei mais ou menos
							amiga do sujeito da segurança. E lhe perguntei qual era o problema. Ele
							me respondeu que eu estava marcada: "Você foi classificada como uma
							ameaça do mais alto grau. Sua pontuação é de 400
							numa escala de 400". Perguntei se esse sistema de pontuação
							funcionava em toda a Europa, ou se era só americano. E ele respondeu:
							"É coisa do seu governo, que foi quem nos disse para
							detê-la".
							
							
							 A partir do 11 de Setembro, o governo americano começou a compilar uma
							lista de suspeitos de terrorismo que chegou a ter quase 1 milhão de
							nomes. E existem pelo menos outras duas listas complementares, relacionadas
							às viagens aéreas. Uma delas contém os nomes de dezenas de
							milhares de pessoas que não podem entrar ou sair dos Estados Unidos a
							bordo de um avião. A outra, maior, sujeita as pessoas nela
							incluídas a inspeções mais detalhadas e a
							interrogatórios nos aeroportos. Essas listas já foram criticadas
							por grupos de defesa dos direitos civis por serem excessivamente amplas e
							arbitrárias.
							
							
							 Em Viena, Laura foi finalmente liberada a tempo de pegar a conexão para
							Nova York, mas logo que pousou no aeroporto JFK ela foi recebida no
							portão por dois agentes armados e conduzida a uma sala para ser
							interrogada. Essa é uma rotina a que foi submetida tantas vezes desde
							então  foram mais de quarenta ocasiões  que Laura
							acabou perdendo a conta exata. Inicialmente, disse ela, as autoridades se
							interessavam pelos papéis que levava, copiando todos os seus recibos e,
							certa vez, seu caderno de notas. Depois que parou de levar suas
							anotações nas viagens, o foco se transferiu para o equipamento
							eletrônico. Diziam-lhe que, caso não respondesse às
							perguntas, confiscariam seu equipamento e obteriam as respostas desse modo.
							Certa vez, confiscaram seus computadores e celulares, e só devolveram
							semanas depois. Disseram-lhe ainda que o fato de se recusar a responder
							às perguntas deles era, por si só, um ato suspeito. Como os
							interrogatórios ocorriam em pontos de fronteiras internacionais, onde o
							governo alega que os direitos constitucionais não se aplicam, nunca lhe
							foi consentida a presença de um advogado.
							
							
							 "É uma violação absoluta", disse Laura.
							"É isso que a gente sente. Eles querem informações
							que dizem respeito ao meu trabalho, privadas e protegidas por lei. É
							muito intimidador ser recebida por pessoas armadas sempre que você desce
							de um avião."
							
							
							 Embora tenha escrito a membros do Congresso americano, e feito requerimentos
							com base na Lei da Liberdade de Informação, Laura nunca obteve
							uma explicação sobre o motivo de ter sido incluída numa
							lista de pessoas sob monitoramento especial. "É enlouquecedor que
							eu tenha que ficar especulando sobre o motivo", disse ela. "A partir
							de quando começou a existir esse universo em que a pessoa pode ser
							incluída numa lista sem que ninguém lhe diga nada, e passa a ser
							detida a cada viagem por seis anos? Não tenho a menor ideia do motivo.
							Sei que é uma suspensão completa do estado de direito." E
							acrescentou: "Nunca me disseram nada, nunca me pediram nada e eu
							não fiz nada. É uma situação kafkiana. Não
							lhe dizem do que você é acusada."
							
							
							
							
							Depois de ter sido repetidamente detida, Laura Poitras começou a tomar
							providências para proteger seus dados, pedindo a um companheiro de viagem
							que levasse seu laptop, deixando seus cadernos de notas no estrangeiro com
							amigos ou em cofres. Ela costuma apagar todo o conteúdo de seus
							computadores e celulares, para que as autoridades não tenham o que ver.
							Ou passou a criptografar suas informações, para que os agentes
							não possam ler os arquivos que consigam apreender. Esses preparativos de
							segurança podem levar um dia, ou mais, antes de cada uma de suas viagens.
							
							
							 E as revistas nas fronteiras não eram a única coisa com que ela
							precisava se preocupar. Laura disse que, se as suspeitas do governo eram
							suficientes para que fosse interrogada nos aeroportos, era muito
							provável que seus e-mails, seus telefonemas e sua
							navegação na internet também se encontrassem sob
							vigilância. "Imagino que existam Cartas de Segurança Nacional
							a respeito dos meus e-mails", disse ela, referindo-se a um dos
							instrumentos secretos de espionagem utilizados pelo Departamento de
							Justiça dos Estados Unidos. Uma Carta de Segurança Nacional
							intima quem a recebe  na maioria dos casos, provedores de internet e
							companhias telefônicas  a fornecer dados de seus clientes sem dar
							ciência disso a eles ou a qualquer outra pessoa. Laura suspeita (mas
							não pôde confirmar, pois sua companhia telefônica e seu
							provedor de internet foram proibidos de lhe contar) que o FBI emitiu Cartas de
							Segurança Nacional dirigidas a suas comunicações
							eletrônicas.
							
							
							 Depois que começou a trabalhar em seu filme sobre vigilância e
							espionagem em 2011, Laura elevou sua segurança digital a um nível
							ainda mais extremo. Reduziu o uso do celular, que revela não só
							para quem a pessoa está ligando e quando, mas também a
							localização de seu portador. Passou a evitar transmitir
							documentos confidenciais por email e ter conversas reservadas ao telefone.
							Começou a usar programas que mascaravam os sites que visita. Depois de
							ter sido abordada por Snowden em 2013, reforçou ainda mais a sua
							segurança. Além de criptografar todos os emails mais delicados,
							começou a usar computadores diferentes, um para editar seu filme, outro
							para comunicar-se e mais um para ler documentos confidenciais (o computador
							usado para a leitura desses documentos nunca foi conectado à internet).
							
							
							 Essas precauções podem parecer paranoicas  e são
							descritas como "bastante extremas" por Laura , mas as pessoas
							que entrevistou para seu filme foram alvos do tipo de vigilância e
							interceptação que ela teme. 
							 William Binney
							, antiga autoridade da
							NSA que acusou publicamente a agência de espionagem ilegal, estava em
							casa certo dia em 2007 quando agentes do FBI irromperam pela porta e apontaram
							armas para sua mulher, seu filho e ele próprio. No momento em que um
							agente entrou em seu banheiro e apontou o cano da arma para a sua
							cabeça, Binney estava nu no chuveiro. Seus computadores, discos e
							arquivos pessoais foram confiscados e nunca mais devolvidos. Binney jamais foi
							formalmente acusado de crime algum.
							
							
							 
							 Jacob Appelbaum
							, militante em defesa da privacidade que trabalhou como
							voluntário para a WikiLeaks, também participou do filme de Laura.
							O governo emitiu uma ordem secreta ao Twitter para obter acesso aos dados da
							conta de Appelbaum, ordem que se tornou pública quando o Twitter
							resistiu a ela. Embora a empresa tenha acabado sendo forçada a entregar
							as informações, conseguiu permissão para comunicar o
							ocorrido a Appelbaum. A Google e um pequeno provedor que Appelbaum utilizava
							também receberam ordens secretas, e foram à Justiça para
							conseguir avisá-lo. Tal como Binney, Appelbaum jamais foi acusado de
							crime algum.
							
							
							 Durante anos, Laura Poitras submeteu-se às revistas em aeroportos
							queixando-se pouco em público, com medo de que seus protestos gerassem
							mais hostilidade da parte do governo, mas no ano passado ela chegou ao limite
							do que podia tolerar. Num interrogatório no Aeroporto de Newark, depois
							de uma viagem à Grã-Bretanha, disseram-lhe que não podia
							tomar notas. A conselho de advogados, ela sempre registrava os nomes dos
							agentes da imigração, as perguntas que lhe faziam e todo o
							material que copiavam ou apreendiam. Dessa vez, um dos agentes ameaçou
							algemá-la se continuasse a escrever. Disseram-lhe que estava proibida de
							anotar qualquer coisa porque poderia usar sua caneta como arma.
							
							
							 "Pedi que me trouxessem um lápis de cera", lembrou ela,
							"e ele disse que os lápis de cera também estavam
							proibidos."
							
							
							 Laura foi conduzida a uma outra sala e interrogada por três agentes
							 um se postou atrás dela, outro fazia as perguntas e o terceiro
							era um supervisor. "Aquilo durou talvez uma hora e meia", contou ela.
							"Eu estava tomando nota das perguntas dele, ou tentando fazer isso, e
							começaram a gritar comigo. Pedi que me mostrassem a lei que me proibia
							de fazer anotações. Aí eles me disseram que quem fazia as
							perguntas eram eles. Foi um confronto muito agressivo e hostil."
							
							
							
							
							Laura Poitras conheceu Glenn Greenwald em 2010, quando se interessou pelo
							trabalho dele sobre a WikiLeaks [na época Greenwald escrevia para o site
							Salon e defendeu a divulgação de documentos confidenciais feita
							por Julian Assange]. Em 2011, Laura esteve no Rio de Janeiro para entrevistar
							Greenwald para seu documentário. Ele sabia das revistas a que ela era
							submetida, e já vinha lhe pedindo permissão para escrever a
							respeito. Depois do ocorrido em Newark, ela lhe deu luz verde.
							
							
							 "Laura me disse que estava farta", contou Greenwald. "Anotar
							tudo e documentar o que lhe acontecia era a única forma que tinha de
							conservar alguma iniciativa, manter algum grau de controle sobre os fatos.
							Documentar é a profissão dela. Acho que ela sentiu que lhe
							tiravam o último vestígio de segurança e controle que
							tinha na situação, sem qualquer explicação, como um
							simples exercício arbitrário de poder."
							
							
							  O artigo "Cineasta americana repetidamente detida na fronteira" foi
							publicado por Greenwald no Salon em abril de 2012. Pouco depois, Laura parou de
							ser detida. Seis anos de perseguição e abusos, esperava ela,
							poderiam ter chegado ao fim.
							
							
							 Laura Poitras não foi a primeira escolha de Snowden como
							destinatária dos milhares de documentos da NSA que ele decidiu vazar. Na
							verdade, um mês antes de fazer contato com ela, Snowden procurou
							Greenwald, que tinha escrito muitos artigos críticos às guerras
							no Iraque e no Afeganistão e à erosão das liberdades civis
							americanas depois do 11 de Setembro. Snowden enviou a Greenwald um e-mail
							anônimo falando que tinha documentos que pretendia compartilhar, seguido
							de um passo a passo sobre como criptografar os textos, mas Greenwald ignorou as
							mensagens. Snowden então enviou ao repórter um link para um
							vídeo sobre criptografia, que tampouco teve resposta.
							
							
							 "O programa de criptografia é muito chato e complicado",
							comentou Greenwald sentado em sua varanda durante uma chuvarada. "Ele
							continuava a insistir, mas acabou frustrado e decidiu procurar a Laura."
							
							
							 Snowden tinha lido o artigo de Greenwald sobre os problemas de Laura nos
							aeroportos americanos, e sabia que ela estava trabalhando num
							documentário sobre os programas de espionagem do governo americano;
							também tinha visto um documentário curto sobre a NSA que ela
							tinha feito para um fórum online do 
							
								New York Times.
							
							 Imaginou que Laura fosse entender os programas que ele pretendia revelar ao
							público, e que tivesse a capacidade de comunicar-se com ele de maneira
							segura.
							
							
							
							
							Em março, Laura Poitras tinha decidido que o estranho com quem vinha se
							comunicando era confiável. Não encontrou o tipo de
							provocação que esperaria de um agente do governo  nenhum
							pedido de informação quanto às pessoas com quem mantinha
							contato, nenhuma pergunta sobre o que andava fazendo. Snowden lhe disse desde o
							primeiro momento que ela precisaria trabalhar com alguma outra pessoa, e que
							devia procurar Greenwald. Ela não sabia que Snowden já tinha
							tentado o contato com Greenwald  só ao encontrar-se com Snowden em
							Hong Kong, Greenwald se daria conta de que se tratava da mesma pessoa que o
							tinha procurado mais de seis meses antes.
							
							
							 Houve surpresas para todos nessa troca de mensagens  inclusive para
							Snowden, que mais tarde responderia às perguntas que lhe encaminhei por
							intermédio de Laura. Em resposta à pergunta sobre quando tinha
							sabido que podia confiar nela, ele escreveu: "Chegamos a um ponto no
							processo de checagem em que descobri que Laura desconfiava mais ainda de mim do
							que eu dela, e sou famoso pelo meu grau de paranoia." Quando lhe perguntei
							sobre o silêncio inicial de Greenwald diante de seus pedidos e
							instruções sobre criptografia, Snowden respondeu: "Sei que
							os jornalistas são pessoas ocupadas e já imaginava que seria
							difícil ser levado a sério, tendo em vista especialmente a
							escassez de detalhes que podia revelar num primeiro momento. Por outro lado,
							estamos em 2013, e ele é um jornalista que escreve regularmente sobre o
							excesso de poder do Estado. Fiquei surpreso de ver que existem, nos
							órgãos de imprensa, pessoas que não percebem que qualquer
							mensagem não criptografada enviada pela internet acaba nas mãos
							de todos os serviços de informação do mundo."
							
							
							 Em abril, Laura enviou um email a Greenwald dizendo que precisavam se
							encontrar pessoalmente. Por acaso ele estava nos Estados Unidos, participando
							de uma conferência em Nova York, e os dois se encontraram no
							saguão do hotel dele. "Ela tomou muitos cuidados", lembrou
							Greenwald. "Insistiu para eu não levar meu celular, pois eles podem
							ser monitorados remotamente pelo governo, mesmo desligados. Trazia todos os
							emails impressos, e lembro bem que, ao lê-los, tive a
							sensação intuitiva de que era tudo verdade. A paixão e a
							reflexão por trás do que dizia Snowden  e àquela
							altura ainda não sabíamos que ele era Snowden  eram
							palpáveis."
							
							
							 Greenwald instalou um programa de criptografia em seu computador, e
							começou a comunicar-se diretamente com o desconhecido. O trabalho era
							organizado como uma verdadeira operação de espionagem, em que
							Laura atuava como mentora. "A segurança operacional era determinada
							por ela", contou Greenwald. "Quais computadores eu devia usar, como
							devia me comunicar, como devia proteger a informação, onde devia
							guardar cópias, a quem devia entregá-las e em quais lugares. Ela
							tem um entendimento altamente especializado de como fazer uma reportagem como
							essa com toda segurança técnica e operacional. Nada disso teria
							ocorrido com tanta eficiência e impacto se ela não tivesse
							trabalhado comigo em todos os aspectos, e na verdade não tivesse
							respondido pela coordenação da maior parte do trabalho."
							
							
							
							
							Snowden começou a passar os documentos para os dois. Laura não
							quis me contar o momento exato em que isso ocorreu; disse que não quer
							dar ao governo informações que possam ser usadas num processo
							contra Snowden ou ela própria. Em seguida, Snowden lhe disse que logo
							estaria pronto para ter um encontro com eles. Quando Laura lhe perguntou se
							devia planejar uma viagem de carro ou de trem, Snowden respondeu que se
							preparasse para tomar um avião.
							
							
							 Em maio, ele mandou novas mensagens criptografadas, dizendo a Laura e a
							Greenwald para irem a Hong Kong. Greenwald tomou um avião do Rio para
							Nova York, onde Laura o encontrou para uma série de reuniões com
							o editor da versão americana do 
							
								Guardian.
							
							 Com a reputação do jornal em jogo, o editor lhes pediu que
							levassem com eles um repórter veterano, Ewen MacAskill. Em 1º de
							junho o trio embarcou num voo de dezesseis horas entre Nova York e Hong Kong.
							
							
							 Snowden tinha enviado uma quantidade pequena de documentos a Greenwald, uns
							vinte no total, mas Laura havia recebido uma leva bem maior, que ainda
							não tivera a oportunidade de ler com a devida atenção. A
							bordo do avião, Greenwald começou a examiná-los, chegando
							depois de algum tempo a uma ordem judicial secreta exigindo que a companhia
							telefônica Verizon entregasse à NSA os registros telefônicos
							de seus clientes. A ordem judicial, de quatro páginas, tinha sido
							emitida pelo Tribunal de Vigilância de Inteligência Estrangeira,
							órgão cujas decisões são secretas [o tribunal foi
							criado pela Lei de Vigilância de Inteligência Estrangeira, FISA na
							sigla em inglês, para autorizar escutas que envolvessem cidadãos
							americanos]. Embora corressem boatos de que a NSA vinha reunindo imensas
							quantidades de registros telefônicos nos Estados Unidos, o governo sempre
							havia negado o fato.
							
							
							 Laura, sentada vinte fileiras atrás de Greenwald, acabou indo
							até a dianteira para conversar sobre o que ele estava lendo. Enquanto o
							passageiro a seu lado dormia, Greenwald apontou para a ordem da FISA em seu
							monitor e perguntou a Laura: "Você viu isto? Este documento diz
							mesmo o que eu acho que diz?"
							
							
							 Em alguns momentos, os dois conversaram com tanta empolgação que
							acabaram perturbando os passageiros que tentavam dormir; então decidiram
							sossegar. "Foi um momento incrível", disse Greenwald.
							"Só quando você examina esses documentos é que tem uma
							ideia do seu alcance. Foi um banho de adrenalina. Pela primeira vez, você
							sente que tem poder diante de um sistema descomunal que você tenta minar
							e expor  mas geralmente não consegue avançar muito, porque
							não tem instrumentos para isso. Agora os instrumentos tinham
							caído no nosso colo."
							
							
							
							
							Snowden havia recomendado que, em Hong Kong, Greenwald e Laura fossem numa
							determinada hora até o distrito de Kowloon, parando na porta de um
							restaurante num centro comercial ligado ao hotel Mira. Ali, teriam que ficar
							esperando até aparecer um homem carregando um cubo mágico 
							[1]
							, e então deveriam perguntar a ele a que horas o restaurante abriria. O
							homem responderia, mas então lhes diria que a comida era ruim. Quando o
							homem com o cubo mágico apareceu, era Edward Snowden, que tinha 29 anos
							na ocasião, mas parecia ainda mais novo.
							
							
							 "Quase caímos para trás quando vimos como era jovem",
							contou Laura, ainda com surpresa na voz. "Eu não fazia ideia.
							Imaginei que estivesse lidando com alguém que ocupasse uma alta
							posição, e portanto fosse mais velho. Mas eu também sabia,
							a partir da nossa correspondência, que era uma pessoa com um conhecimento
							incrível de sistemas de computador, o que me fazia imaginá-lo um
							pouco mais jovem. Então eu imaginava uma pessoa com uns 40 e poucos
							anos, alguém acostumado a usar computadores a vida toda, mas que
							já tivesse chegado a um cargo superior."
							
							
							 Em nossa troca de mensagens criptografadas, Snowden também comentou o
							encontro: "Acho que ficaram decepcionados ao ver que eu era mais jovem do
							que esperavam, e eu fiquei decepcionado ao vê-los chegar um pouco antes
							da hora, o que complicou a checagem inicial. Assim que nos vimos num lugar
							fechado, porém, acho que as precauções obsessivas e a
							evidente boa-fé do que era dito deixaram todo mundo mais tranquilo."
							
							
							 Os dois acompanharam Snowden até o quarto dele, onde Laura sacou a sua
							câmera, assumindo de imediato seu papel de documentarista. "Eu
							estava um pouco tenso, um pouco desconfortável", contou Greenwald
							sobre esses minutos iniciais. "Nós nos sentamos, e começamos
							a bater papo, enquanto Laura imediatamente armava a sua câmera. Assim que
							ela ligou o aparelho, eu me lembro muito claramente que tanto ele quanto eu
							ficamos completamente retesados."
							
							
							 Greenwald começou a entrevista. "Eu queria verificar a
							coerência do que ele dizia, e obter o máximo de
							informação possível, pois sabia que aquilo poderia afetar
							a minha credibilidade. Só conseguimos estabelecer uma conexão
							natural depois das primeiras cinco ou seis horas."
							
							
							 Para Laura, a câmera certamente afeta o comportamento das pessoas, mas
							não de uma forma negativa. Quando alguém concorda em ser filmado
							 mesmo que o consentimento seja obtido de forma indireta, quando ela liga
							a câmera , isso é um gesto de confiança que sempre
							aumenta a voltagem emocional da ocasião. O que Greenwald viveu como um
							momento de tensão, Laura percebeu como um laço especial entre
							eles, que passaram a compartilhar um risco imenso. "É uma
							emoção muito concreta quando você vê que confiam em
							você", disse ela.
							
							
							 Snowden, embora surpreendido, acabou se acostumando. "Como se pode
							imaginar, os espiões normalmente são alérgicos a qualquer
							contato com repórteres ou a imprensa, de maneira que eu era uma fonte
							virgem  tudo era surpresa para mim... Mas nós três
							sabíamos bem o que estava em jogo. Na verdade, o peso da
							situação tornou mais fácil nos concentrarmos no interesse
							público, e não no nosso. Acho que todos entendemos que, depois
							que Laura ligou a câmera, não havia mais como voltar
							atrás."
							
							
							 Pela semana seguinte, os preparativos dos três obedeciam ao mesmo
							padrão  assim que entravam no quarto de Snowden, tiravam as
							baterias dos celulares e os guardavam no frigobar do quarto. Colocavam
							travesseiros encostados na porta, para impedir que algo pudesse ser ouvido do
							lado de fora, e então Laura armava a câmera e começava a
							filmar. Era importante para Snowden explicar logo aos dois de que maneira
							funcionava a máquina de espionagem do governo americano porque ele temia
							ser preso a qualquer instante.
							
							
							 As primeiras reportagens de Greenwald  incluindo a primeira, relatando a
							ordem judicial recebida pela Verizon que ele leu no voo para Hong Kong 
							foram publicadas enquanto Snowden ainda estava sendo entrevistado por ele e
							Laura. O que deu origem a uma experiência muito peculiar, a de criarem
							juntos uma notícia e depois poderem assistir enquanto ela se espalhava.
							"Era possível acompanhar a repercussão", contou Laura.
							"Nosso trabalho era muito concentrado, e exigia nossa
							atenção, mas podíamos ver pela tevê que estava dando
							certo. Estávamos naquele círculo fechado, e sabíamos das
							reverberações à nossa volta, elas podiam ser vistas e
							sentidas."
							
							
							
							
							Snowden lhes tinha dito, antes da chegada dos dois a Hong Kong, que queria
							revelar quem era. Ele queria assumir a responsabilidade pelo que fazia, contou
							Laura, e não queria que outros fossem injustamente visados.
							Também imaginava que em algum momento acabaria sendo identificado. Laura
							produziu um vídeo de doze minutos e meio com Snowden que foi postado na
							internet no dia 9 de junho, poucos dias depois da publicação dos
							primeiros artigos de 
							
								Greenwald.
							
							 A partir daí, armou-se um verdadeiro circo midiático em Hong
							Kong, com repórteres fazendo o impossível para descobrir o
							paradeiro dos três.
							
							
							 Há uma série de assuntos sobre os quais Laura Poitras preferiu
							não conversar comigo 
							
								on the record
							
							 (para publicação), e outros que sequer aceitou abordar 
							alguns por razões de segurança ou de ordem legal, outros porque
							quer ser a primeira a contar partes cruciais de sua história em seu
							próprio documentário. Sobre a maneira como ela e Snowden se
							despediram depois da postagem do vídeo, ela só me disse o
							seguinte: "Eu e ele sabíamos que, quando o vídeo fosse
							divulgado, aquela etapa do trabalho estaria encerrada."
							
							
							 Snowden deixou seu hotel e desapareceu. Alguns repórteres descobriram
							onde Laura estava hospedada  ela e Greenwald estavam em hotéis
							diferentes  e começaram a ligar para o quarto dela. A certa
							altura, alguém bateu à porta e a chamou pelo nome. Ela já
							sabia que Greenwald também tinha sido localizado, então ligou
							para a segurança do hotel e pediu que acompanhassem sua saída por
							uma porta dos fundos.
							
							
							 Laura ainda tentou permanecer mais um tempo em Hong Kong, achando que Snowden
							poderia querer tornar a vê-la, e também porque estava interessada
							em filmar a reação dos chineses às
							revelações dele. Mas agora ela própria tinha se tornado
							alvo de interesse. No dia 15 de junho, enquanto filmava uma
							manifestação a favor de Snowden na porta do consulado dos Estados
							Unidos, Laura foi reconhecida por um repórter da CNN, que começou
							a lhe fazer perguntas. Ela recusou-se a responder e escapuliu dali. Na mesma
							noite, deixou Hong Kong.
							
							
							 Laura voou diretamente para Berlim, onde no segundo semestre do ano passado
							tinha alugado um apartamento para editar seu documentário sem medo de
							que o FBI pudesse aparecer a qualquer momento com um mandado de busca dos seus
							discos rígidos. "Constantemente faço uma
							distinção entre os lugares onde sinto que posso ter privacidade
							ou não", disse ela, "e essa linha está ficando cada vez
							mais estreita." E acrescentou: "Não vou parar o que estou
							fazendo, mas preferi deixar os Estados Unidos. Literalmente, senti que
							não tinha meios de proteger meu material no país, e isso antes
							ainda de ser procurada por Snowden. Se você promete a alguém que
							vai protegê-lo como sua fonte, mas sabe que o governo está
							monitorando você ou pode apreender seu laptop, acaba sendo
							impossível fazer isso."
							
							
							
							
							Depois de duas semanas em Berlim, Laura Poitras viajou para o Rio de Janeiro,
							onde estive com ela e Greenwald alguns dias mais tarde. Minha primeira parada
							foi o hotel, em Copacabana, onde estavam trabalhando naquele dia com MacAskill
							e outro repórter do 
							
								Guardian,
							
							 James Ball. Laura estava editando um novo vídeo sobre Snowden para ser
							postado dali a alguns dias no website do 
							
								Guardian.
							
							 Greenwald trabalhava em outro artigo de imenso interesse, dessa vez sobre a
							colaboração próxima entre a Microsoft e a NSA. O quarto
							estava cheio  não havia cadeiras suficientes para todos, e sempre
							havia alguém sentado na cama ou no chão. Uma grande quantidade de
							pen drives circulava entre os presentes, embora ninguém me tenha dito o
							que continham.
							
							
							 Laura e Greenwald estavam preocupados com Snowden. Não tinham
							notícias dele desde Hong Kong. Àquela altura, ele estava retido
							num limbo diplomático na área de passageiros em trânsito do
							Aeroporto Sheremetyevo, em Moscou, e era o homem mais procurado do planeta,
							acusado pelo governo dos Estados Unidos de espionagem. (Mais tarde, os russos
							lhe concederiam asilo temporário.) O vídeo em que Laura vinha
							trabalhando, usando material gravado em Hong Kong, seria a primeira imagem que
							o mundo veria de Snowden em mais de um mês.
							
							
							 "Agora que ele está incomunicável, nem sabemos se
							voltaremos a falar com ele alguma vez", disse Laura.
							
							
							 "E ele está bem?", perguntou MacAskill.
							
							
							 "O advogado dele disse que sim", respondeu Greenwald.
							
							
							 "Mas o advogado não está em contato direto com
							Snowden", lembrou Laura.
							
							
							 Quando Greenwald chegou em casa naquela noite, Snowden entrou em contato com
							ele pela internet. Dois dias mais tarde, enquanto trabalhava na casa de
							Greenwald, Laura também teve notícias dele.
							
							
							 Anoitecia, e gritos de animais e pios de aves vinham da mata em volta da casa.
							A esses sons se misturaram os latidos de cinco ou seis cachorros quando
							atravessei o portão de entrada. Por uma das janelas, vi Laura na sala,
							concentrada num dos seus computadores. Passei por uma porta de tela, ela olhou
							para mim por um segundo e voltou ao trabalho, indiferente à cacofonia
							à sua volta. Ao final de dez minutos, fechou seu computador e murmurou
							um pedido de desculpas, dizendo que precisava tomar algumas providências.
							
							
							 Não demonstrava nenhuma emoção, nem me disse que acabara
							de trocar mensagens cifradas com Snowden. Eu não insisti, mas alguns
							dias mais tarde, depois que voltei para Nova York e ela seguiu para Berlim,
							perguntei se era isso que estava fazendo naquela noite. Ela confirmou, mas
							comentou que não quis falar a respeito na ocasião porque, quanto
							mais ela fala sobre suas interações com Snowden, mais se sente
							distante delas.
							
							
							 "É uma experiência emocional muito singular", disse
							Laura, "ser procurada por um completo desconhecido que lhe diz que vai
							arriscar a vida para expor coisas que o público precisa saber. Ele
							estava pondo a sua vida na reta, e decidiu confiar esse fardo a mim. Eu quero
							conservar uma relação emocional com essa experiência."
							
							
							 Sua ligação com Snowden e com o material, continuou a explicar,
							é o que vai conduzir o seu trabalho. "Me sinto tocada pelo que ele
							vê como o horror do mundo de hoje, e o que imagina que ainda pode
							acontecer. E quero passar isso adiante com o máximo de ressonância
							possível. Se eu fosse ficar dando entrevistas intermináveis para
							a tevê, é o tipo de coisa que me afastaria daquilo a que preciso
							me manter ligada. Não se trata só de um furo de reportagem.
							É a vida de uma pessoa."
							
							
							
							
							Laura Poitras e Glenn Greenwald são exemplos especialmente
							dramáticos de como atua o jornalismo independente em 2013. Nem uma nem o
							outro trabalham numa redação, e fazem questão de controlar
							pessoalmente tudo que é publicado, e em qual momento. Quando o 
							
								Guardian
							
							 não publicou com a presteza que esperavam o primeiro artigo tratando da
							Verizon, Greenwald cogitou dar outro destino ao texto, mandando uma
							cópia criptografada para um colega que trabalha em outro veículo.
							Ele também pensou em criar um website no qual poderiam publicar tudo,
							que planejou batizar de NSA Disclosures, algo como Revelações da
							NSA. No final, o 
							
								Guardian
							
							 decidiu publicar seus artigos. Mas Laura e Greenwald criaram uma rede
							própria de divulgação, com reportagens em outros
							veículos na Alemanha e no Brasil, que planejam diversificar ainda mais
							no futuro. Eles não compartilharam com ninguém a totalidade dos
							documentos que detêm.
							
							
							 "Temos parcerias com órgãos noticiosos, mas achamos que
							nossa responsabilidade primária é para com o risco que nossa
							fonte correu e o interesse público da informação que nos
							entregou", afirmou Laura. "Um órgão de imprensa
							qualquer só figura na nossa lista depois disso."
							
							
							 Ao contrário de muitos repórteres da grande imprensa, nem Laura
							nem Greenwald ostentam uma fachada de indiferença política. Faz
							anos que Greenwald não tem papas na língua; no Twitter, respondeu
							recentemente a alguém que o criticou dizendo: "Você é
							um imbecil completo. E sabe disso, não é?" Suas
							opiniões políticas de esquerda, combinadas a seu estilo cortante,
							o tornaram malquisto por muita gente no establishment político. Seu
							trabalho com Laura é tachado de militante e nocivo à
							segurança nacional.
							
							
							 Laura, embora não seja tão dada à polêmica quanto
							Greenwald, discorda da ideia de que o trabalho dos dois seja militância.
							"Claro que eu tenho as minhas opiniões", disse ela. "Quer
							saber se eu acho que a vigilância do Estado está fora de controle?
							Acho. É uma coisa assustadora, e é bom mesmo que as pessoas
							fiquem com medo. Temos um governo paralelo e secreto que não para de
							crescer, invocando sempre a segurança nacional e sem a supervisão
							ou a discussão nacional que se imaginariam necessárias numa
							democracia. E não estou dizendo isso por militância. Temos
							documentos que confirmam tudo."
							
							
							 Laura possui uma habilidade que é vital  e ainda rara entre os
							jornalistas  numa era em que a espionagem oficial é tão
							corriqueira: ela sabe se proteger do monitoramento. Como disse Snowden, "a
							partir do que está sendo revelado neste ano, fica muito claro que toda
							comunicação desprotegida entre jornalista e fonte configura um
							descuido imperdoável".
							
							
							 Uma nova geração de fontes, como Snowden ou Bradley Manning [o
							soldado que vazou documentos para a WikiLeaks], tem acesso não apenas a
							um punhado de segredos, mas a milhares de uma vez, graças à sua
							capacidade de coletá-los em redes protegidas. Essas fontes preferem
							compartilhar seus segredos não com os maiores veículos e seus
							repórteres, mas com repórteres com quem tenham afinidade
							política e consigam receber os vazamentos sem que ninguém perceba.
							
							
							 No chat que mantive com ele, uma troca de mensagens criptografadas em tempo
							real, Snowden explicou por que resolveu procurar Laura: "Laura e Glenn
							estão entre os poucos que investigaram assuntos polêmicos de
							maneira destemida por todo esse período, mesmo enfrentando
							críticas pessoais, que no caso de Laura acabaram por
							transformá-la em alvo dos mesmos programas envolvidos nas
							revelações recentes. Ela demonstrou ter a coragem, a
							experiência pessoal e a capacidade necessárias para lidar com o
							que talvez seja a missão mais perigosa que um jornalista pode receber
							 revelar malfeitos secretos do governo mais poderoso do mundo. Por isso,
							era uma escolha óbvia."
							
							
							
							
							As revelações de Snowden se converteram no centro do
							documentário de Laura Poitras sobre vigilância e espionagem, mas
							ela também se viu envolvida numa dinâmica nova, pois não
							tem como evitar figurar como personagem em seu próprio filme. Ela nunca
							narrou seus filmes anteriores nem apareceu neles, e diz que pretende continuar
							agindo assim, mas percebe que precisará ser representada de alguma
							forma, e vem se perguntando de que maneira poderá fazê-lo.
							
							
							 Ao mesmo tempo, Laura vem avaliando sua vulnerabilidade jurídica. Ela e
							Greenwald ainda não foram acusados de nada, pelo menos até agora.
							Os dois não pretendem ficar fora dos Estados Unidos para sempre, mas
							nenhum dos dois tem planos imediatos de retorno ao país. Um membro do
							Congresso já comparou o que os dois fizeram a uma forma de
							traição, e ambos estão muito conscientes da
							perseguição sem precedentes, no governo Obama, não
							só aos responsáveis por vazamentos de informações
							como aos jornalistas que recebem esses vazamentos. Enquanto estive com eles,
							falaram sobre as possibilidades de volta. Greenwald diz que prendê-los
							seria pouco inteligente da parte do governo, pela péssima publicidade
							que isso produziria. Além disso, não deteria o fluxo de
							informações.
							
							
							 Ele falou quando voltávamos para sua casa de táxi, ao final de
							um dia cheio. Estava escuro do lado de fora. Greenwald perguntou a Laura:
							"Desde que isso tudo começou, você teve algum dia sem
							NSA?"
							
							
							 "E o que é isso?", perguntou ela.
							
							
							 "Acho que a gente está precisando de um dia assim", disse
							Greenwald. "Não que vá conseguir tirar."
							
							
							 Laura falou em voltar às aulas de ioga. Greenwald disse que pretendia
							retomar sua prática regular de tênis. "Estou disposto a ficar
							velho por causa dessa história", disse ele, "mas não a
							ficar gordo."
							
							
							 A conversa entre os dois desviou-se para a questão da volta aos Estados
							Unidos. Greenwald disse, meio em tom de brincadeira, que se fosse preso a
							WikiLeaks seria a próxima a publicar os documentos da NSA. "Eu
							só precisaria dizer: 'Então tá, esse aqui é o meu
							amigo Julian Assange, que vai ficar no meu lugar. Divirtam-se lidando com
							ele.'"
							
							
							 E Laura lhe perguntou: "Quer dizer que você vai voltar aos Estados
							Unidos?"
							
							
							 Ele riu e lembrou que, infelizmente, o governo nem sempre tomava as
							decisões mais sensatas. "Se eles tivessem juízo",
							respondeu, "eu voltaria."
							
							
							 Laura sorriu, muito embora o assunto seja difícil para ela. Laura
							não é uma pessoa tão expansiva ou relaxada quanto
							Greenwald, o que torna ainda mais inusitada a química da dupla. Ela se
							preocupa com a segurança física dos dois. E também se
							preocupa, claro, com a espionagem. "A sua localização no
							planeta é o mais importante de tudo", diz ela. "Eu quero ficar
							o máximo que puder fora da área de cobertura deles. Não
							pretendo facilitar as coisas para eles. Se quiserem me seguir, vão ter
							de dar duro. Não vou ficar por aí piscando em qualquer GPS. O
							lugar onde eu estou é importante para mim. Importante de um modo novo,
							que antes eu não conhecia."
							
							
							 Há muita gente com raiva dos dois, e muitos governos, além de
							entidades particulares, que não se incomodariam nem um pouco em
							pôr a mão nos milhares de documentos da NSA que a dupla ainda
							controla. Os dois publicaram apenas um punhado deles  um punhado top
							secret, capaz de gerar manchetes e audiências no Congresso , e
							parece pouco provável que um dia venham a publicar tudo, ao estilo da
							WikiLeaks. Laura e Greenwald continuam guardando mais segredos do que revelam,
							pelo menos por enquanto.
							
							
							 "Temos uma janela aberta para esse mundo que ainda estamos tentando
							entender", disse Laura Poitras numa das nossas últimas conversas.
							"Não queremos manter tudo secreto, mas montar o
							quebra-cabeça. É um projeto que vai levar tempo. Nossa
							intenção é revelar o que tiver interesse público,
							mas também adquirir uma boa compreensão do que seja esse mundo, e
							então tentar torná-lo conhecido."
							
							
							 O paradoxo mais profundo, claro, é que o esforço que os dois
							vêm fazendo para compreender e denunciar a espionagem governamental pode
							ter condenado os dois a serem perpetuamente monitorados.
							
							
							 "Nossas vidas nunca mais vão ser as mesmas", disse Laura.
							"Não sei se algum dia vou conseguir morar em algum lugar e sentir
							que tenho privacidade. Isso pode ter se tornado totalmente
							impossível."
							
							
								Setembro/2013
							
							
							
							[1] Refere-se ao Cubo de Rubik.
							
							
							
								O original encontra-se em 
								 revistapiaui.estadao.com.br/edicao-84/anais-da-espionagem-i/mande-sua-chave
							
							
							
							
								Este artigo encontra-se em
								 http://resistir.info/
								.