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							Um golpe e nada mais
						
							 A crer no andar atual da carruagem, teremos um golpe de Estado travestido de
							impeachment já no próximo mês. O vice-presidente
							conspirador já discute abertamente a nova composição de
							seu gabinete de "união nacional" com velhos candidatos a
							presidente sempre derrotados. Um ar de alfazema de República Velha paira
							no ar. 
 O presidente da Câmara, homem ilibado que o procurador-geral da
							República definiu singelamente como "delinquente", apressa-se
							em criar uma comissão de impeachment com mais da metade de deputados
							indiciados a fim de afastar uma presidenta acusada de "pedaladas
							fiscais" em um país no qual o orçamento é uma mera
							carta de intenções assumida por todos.
 
 Se valesse realmente este princípio, não sobrava de pé um
							representante dos poderes executivos. O que se espera, na verdade, é que
							o impeachment permita jogar na sombra o fato de termos descoberto que a
							democracia brasileira é uma peça de ficção
							patrocinada por dinheiro de empreiteiras. Pode-se dizer que um impeachment
							não é um golpe, mas uma saída constitucional. No entanto,
							os argumentos elencados no pedido são risíveis, seus executores
							são réus em processos de corrupção e a
							lógica de expulsar um dos membros do consórcio governista para
							preservar os demais é de uma evidência pueril. Uma regra
							básica da justiça é: quem quer julgar precisa não
							ter participado dos mesmos atos que julga.
 
 O atual Congresso, envolvido até o pescoço nos escândalos
							da Petrobrás, não tem legitimidade para julgar sequer
							síndico de prédio e é parte interessada em sua
							própria sobrevivência. Por estas e outras, esse impeachment
							elevado à condição de farsa e ópera bufa
							será a pá de cal na combalida semi-democracia brasileira.
 
 Alguns tentam vender a ideia de que um governo pós-impeachment seria
							momento de grande catarse de reunificação nacional e retomada das
							rédeas da economia.
 
 Nada mais falso e os operadores do próximo Estado Oligárquico de
							Direito sabem disto muito bem. Sustentado em uma polícia militar que
							agora intervém até em reunião de sindicato para intimidar
							descontentes, por uma lei antiterrorismo nova em folha e por um poder
							judiciário capaz de destruir toda possibilidade dos cidadãos se
							defenderem do Estado quando acusados, operando escutas de advogados, vazamento
							seletivo e linchamento midiático, é certo que os novos operadores
							do poder se preparam para anos de recrudescimento de uma nova fase de
							antagonismos no Brasil em ritmo de bomba de gás lacrimogêneo e
							bala.
 
 Uma fase na qual não teremos mais o sistema de acordos produzidos pela
							Nova República, mas teremos, em troca, uma sociedade cindida em dois.
 
 O Brasil nunca foi um país. Ele sempre foi uma fenda. Sequer uma
							narrativa comum a respeito da ditadura militar fomos capazes de produzir. De
							certa forma, a Nova República forneceu uma aparência de
							conciliação que durou 20 anos. Hoje vemos qual foi seu
							preço: a criação de uma democracia fundada na
							corrupção generalizada, na explosão periódica de
							"mares de lama" (desde a CPI dos anões do orçamento) e
							na paralisia de transformações estruturais.
 
 Tudo o que conseguimos produzir até agora foi uma democracia corrompida.
							A seguir este rumo, o que produziremos daqui para a frente será,
							além disso, um país em estado permanente de guerra civil.
 
 Os defensores do impeachment, quando confrontados à inanidade de seus
							argumentos, dizem que "alguma coisa precisa ser feita". Afinal, o
							lugar vazio do poder é evidente e insuportável, logo, melhor
							tirar este governo. De fato, a sequência impressionante de casos de
							corrupção nos governos do PT, aliado à perda de sua base
							orgânica, eram um convite ao fim.
 
 Assim foi feito. Esses casos não foram inventados pela imprensa, mas
							foram naturalizados pelo governo como modo normal de funcionamento. Ele paga
							agora o preço de suas escolhas.
 
 Neste contexto, outras saídas, no entanto, são possíveis.
							Por exemplo, a melhor maneira de Dilma paralisar seu impeachment é
							convocando um plebiscito para saber se a população quer que ela e
							este Congresso Nacional (pois ele é parte orgânica de todo o
							problema) continuem. Fazer um plebiscito apenas sobre a presidência seria
							jogar o país nas mãos de um Congresso gangsterizado.
 
 Em situações de crise, o poder instituinte deve ser convocado
							como única condição possível para reabrir as
							possibilidades políticas. Seria a melhor maneira de começar uma
							instauração democrática no país. Mas, a olhar as
							pesquisas de intenção de voto para presidente, tudo o que a
							oposição golpista teme atualmente é uma
							eleição, já que seus candidatos estão simplesmente
							em queda livre. Daí a reinvenção do impeachment.
 
 
								25/Março/2016
							[*]
								Professor Livre-Docente do Departamento de Filosofia da Universidade de S. Paulo 
 O original encontra-se na 
								
									Folha de S. Paulo
								
								 e em 
								 jornalggn.com.br/noticia/um-golpe-e-nada-mais-por-vladimir-safatle
 
 Este artigo encontra-se em
								 http://resistir.info/
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