Reforma Política no Brasil:
Tática oportunista para as eleições e diversionista para
as lutas de massa
Em 2002, quando surgiu a possibilidade de vitória eleitoral do que ainda
parecia ser uma frente de esquerda e, portanto, de iniciarmos um processo de
mudanças progressivas no Brasil, às vésperas do primeiro
turno Lula assinou a "
Carta aos Brasileiros
", em verdade dirigida aos banqueiros, comprometendo-se a manter intacta a
política econômica neoliberal dos tempos de FHC, incluindo a
"autonomia" do Banco Central e o superávit primário,
desvio de recursos públicos para pagamento dos rentistas. Nesse caso,
não se pode acusar Lula de não cumprir promessas.
Com a vitória dele no segundo turno, a então
coordenação da frente que o apoiava criou uma comissão dos
cinco partidos (PCB, PT, PDT, PSB e PcdoB) para elaborar um PROGRAMA DOS 100
DIAS, de forma que, logo no início do mandato, o novo Presidente
mostrasse que veio para cumprir as promessas de mudanças feitas na
campanha e que encheram de esperança a grande maioria do povo brasileiro
e a esquerda mundial. Afinal, seria um governo novo, de oposição
ao anterior.
A principal proposta da comissão, apoiada pelo PCB, era a
convocação, logo após a posse, de um plebiscito para
consultar o povo sobre a convocação de uma Assembleia Nacional
Constituinte soberana, que não se confundisse com a
composição do Congresso Nacional e que revisasse toda a
Constituição Brasileira, que já havia sofrido forte
retrocesso político em função de emendas aprovadas no
famigerado governo FHC.
Partia-se do pressuposto de que, para mudar o Brasil, era indispensável
primeiro mudar leis que perpetuam a hegemonia burguesa. Exatamente como fizeram
Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa, antes de deflagrarem os
processos de mudanças em seus países.
Mas no Brasil, o medo venceu a esperança!
Antes mesmo da posse, já eleito no segundo turno, a primeira viagem
internacional de Lula, de surpresa (pelo menos para o PCB), foi aos Estados
Unidos para encontrar-se com Bush na Casa Branca, ao lado de Henrique Meireles,
então presidente do Banco de Boston, para apresentá-lo como o
novo presidente do Banco Central do Brasil, assegurando-lhe autonomia para
gerir a política monetária. Nesse momento, começou a se
dissolver a coordenação da campanha, que deveria se transformar,
após a posse, numa coordenação política do governo.
Ao tomar posse, Lula jogou no lixo, ao mesmo tempo, o programa da campanha, a
coordenação política e a proposta do Programa dos 100
Dias, fazendo a opção pela governabilidade institucional da
ordem, ao invés da governabilidade popular pelas mudanças. Formou
uma base de apoio parlamentar com o centro e a centro-direita, com mais de 300
dos parlamentares que no passado chamara de picaretas, transformando-se em
refém e cúmplice dos caciques da política burguesa, sob o
comando do PMDB e do
companheiro
Sarney, rendendo-se ao grande capital. O Vice-Presidente, José de
Alencar, havia sido criteriosamente escolhido para sinalizar uma aliança
com setores da burguesia, com vistas a um projeto desenvolvimentista, que Lula
anunciava, já na posse, como o "
espetáculo do crescimento
", que iria "
destravar
" o capitalismo no Brasil. Essa promessa Lula também cumpriu
à risca.
Constatando a traição ao programa que elegeu Lula, o PCB, em
março de 2005 (antes, portanto do episódio conhecido como
"mensalão"), rompe com o governo, por absoluta
incompatibilidade política com o transformismo do novo presidente e dos
demais partidos que haviam composto a frente, que continuaram se degenerando e
se fartando de cargos e verbas, sem qualquer crítica ao abandono do
programa eleitoral e entregando as organizações sociais sob sua
influência na bandeja da cooptação, transformando uma
legião de ex-militantes de esquerda em burocratas de carreira, cabos
eleitorais de "mandatos" de seus partidos.
A CUT e a UNE, que já vinham também num acelerado processo de
degeneração, logo se transformaram em correia de
transmissão do governo e nos principais instrumentos de apassivamento
dos trabalhadores e da juventude.
Depois de onze anos alavancando o capitalismo,
"como nunca antes na história desse país"
- iludindo os trabalhadores com o discurso da inclusão, da nova classe
média, de um desenvolvimento capitalista em que ganhariam igualmente
todas as classes e que garantiria a paz social -, bastou o estopim do aumento
das tarifas dos ônibus urbanos, em junho do ano passao, para que se
desmontassem as ilusões, as manipulações, o amaciamento da
classe trabalhadora e da juventude.
Tudo isso aliado aos ventos ainda suaves da crise do capitalismo em nosso
país, que tem levado o governo Dilma a mitigá-la com mais
capitalismo: desoneração do capital, Código Florestal,
privatizações de rodovias, ferrovias, portos, aeroportos,
estádios de futebol, a vergonhosa continuidade dos leilões de
petróleo, inclusive do pré-sal, além de projetos para
reduzir direitos trabalhistas e previdenciários.
A explosão das insatisfações reprimidas, que continuam
latentes, tem suas razões principais na privatização e no
sucateamento dos serviços públicos, sobretudo na saúde e
educação, na desmoralização e na falta de
representatividade das instituições da ordem (e das entidades de
massas cooptadas), em função de alianças e práticas
oportunistas e da cumplicidade com a corrupção.
Com a quebra do salto alto petista, foram-se a arrogância e a certeza
absoluta de mais alguns confortáveis anos de mais do mesmo.
Atônitos, os reformistas acharam no lixo da sua própria
história a proposta do Programa dos 100 Dias, abandonado quando a
correlação de forças era altamente favorável. Com
seus quase 60 milhões de votos e a inaudita esperança popular,
Lula tinha todo o respaldo para mudar o Brasil, mobilizando as massas, mesmo
que com medidas apenas progressistas.
Ao final do mandato de Dilma, cada vez mais reféns do centro e da
centro-direita, até para se manter no governo, petistas e outros
reformistas, alguns insistindo em se dizer comunistas (o que, por praticarem a
conciliação de classe, é funcional para sua
aceitação pelo sistema) levantaram a bandeira da reforma
política, esbravejando contra o parlamento, a justiça, a
mídia, instituições que não só deixaram
intactas, mas fortalecidas.
Fingindo desconhecer que este governo não sobrevive sem o PMDB, que tem
a chave da agenda legislativa brasileira - com a inédita
acumulação da presidência da Câmara e do Senado e a
Vice-Presidência, ocupadas pelas mais experimentadas raposas
políticas - os reformistas levantam agora, como a salvação
da pátria, a bandeira da convocação de um plebiscito para
uma constituinte, que abandonaram no momento propício, há dez
anos!
Clamar por constituinte nessa correlação de forças
desfavorável é um gesto de demagogia. Ou se trata de uma inocente
ilusão de classe ou de uma esperta cortina de fumaça para passar
ao povo a impressão de que querem mudar. Como não há
inocência em políticos profissionais, a segunda hipótese
é mais provável. Tanto não querem mudar que mantiveram sua
aliança preferencial com o PMDB, garantindo ao enigmático Michel
Temer a candidatura a vice-presidente.
A correlação de forças não é
desfavorável apenas no parlamento, mas sobretudo em
relação à evidente hegemonia burguesa na sociedade
brasileira, moldada pela alienação, pelo individualismo,
fundamentalismo religioso, pela mídia hegemônica, que cultua a
aversão aos partidos e reduz a política aos momentos eleitorais.
Vão buscar no lixo a constituinte de 2003, que seria ampla e irrestrita,
mas agora a limitam a uma específica sobre reforma política que
nem merece esse nome, pois é fundamentalmente eleitoral. Mostram assim
que só acreditam na chamada democracia burguesa, uma ditadura de classe
disfarçada.
No esperto discurso da reforma política, fazem críticas a
deformações do parlamento, para as quais contribuíram
tanto quanto os demais partidos da ordem. O PT e seus aliados fiéis e
acríticos se fartaram e se fartam de financiamento privado, a ponto de
seus candidatos, em alguns casos, receberem mais doações
"generosas" de empresas que seus adversários conservadores,
até porque os setores mais lúcidos das classes dominantes
preferem terceirizar o governo a um partido com o nome de
trabalhadores,
para fazer com eficiência a política do capital e com a vantagem
de iludir aqueles que emprestam o nome ao partido.
Essa manobra irresponsável e eleitoreira pode ter consequências
nefastas, na medida em que abre espaço para o Congresso Nacional a ser
eleito em outubro promover, sem qualquer consulta popular, uma minirreforma
"política" regressiva que pareça mudança.
O mais grave, entretanto, é que a prioridade absoluta na bandeira da
reforma política sequestra a pauta unitária levantada nas
manifestações de 2013. Trata-se de diversionismo e esperteza para
não expor o governo Dilma ao desgaste de ter que negar cada uma daquelas
bandeiras, por ser refém e parceiro do capital.
Devemos continuar levantando essas bandeiras que os reformistas tentam
esconder: redução da jornada sem redução salarial,
reforma agrária, fim do fator previdenciário e da
terceirização, do superávit primário; pelo fim dos
leilões do petróleo para gerar investimentos públicos em
saúde e educação, pela desmilitarização da
polícia, entre outras.
No lugar da reforma política eleitoral, nossa bandeira política
central deve ser
PELO PODER POPULAR
, que expressa a recusa às instituições burguesas e
"a tudo que está aí",
sinalizando uma organização popular com vocação de
poder.
Setembro/2014
[*]
Secretário Geral do PCB (texto revisto e aprovado pelo Comissão
Política Nacional do PCB)
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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