Notas desconexas

por Ricardo Antunes

As intempéries desencadeadas pelo Katrina e Rita mostram que o hiperimpério, que se preparou há décadas para a ''guerra nas estrelas'', que provoca diuturnamente o mundo, que ataca, bombardeia, boicota, bloqueia e impede o controle elementar da destruição ambiental em escala global, o mesmo país que com menos de 5% da população mundial consome destrutivamente 25% dos recursos mundiais energéticos, estava completamente despreparado para salvar a população pobre e predominantemente negra de Nova Orleans e região, que esperou por mais de uma semana para ver seus corpos deixarem de boiar nas águas fétidas, para serem retirados com uma indignidade capaz de rebelar os gados.

Suas tropas estão assassinando no Iraque, quando deveriam auxiliar seu povo empobrecido. Os ricos zarparam rápido, congestionando as entradas paralisadas. E a logística do país mais belicista do mundo foi tão grotesca que, enquanto um lado das estradas estava totalmente entupido, o lado contrário estava livre. O (des)governo Bush não tem nem uma elementar engenharia de tráfego para fazer o império andar em situações de emergência.

Foi, então, bonito o gesto de ilha rebelde, a pequena Cuba, que vive há décadas um bloqueio desumano, oferecer ajuda médica aos pobres norte-americanos. E o insubmisso e altivo governo da Venezuela, de Hugo Chávez, oferecer petróleo e ajuda humanitária. E cada vez mais os tufões parecem mirar para o Texas!


A recente vitória de Berzoini mostra que o PT dominante recusou a mudança de fundo. A redução do Campo Majoritário não impede que ele continue dominando com relativa folga. Berzoini foi o ministro responsável pelo achaque [1] da previdência pública e sua privatização. Não teve nenhum escrúpulo em defender o FMI contra os trabalhadores aposentados, no vilipêndio que foi cometido pelo governo. Depois, foi para o Ministério do Trabalho, para ''aprovar'' a nefasta reforma sindical.

Mas, sem o mensalão, tudo ficou mais difícil e a crise que se abateu no governo Lula é de tal intensidade que ele mal consegue se manter no poder. Foi preciso muita blindagem dos bancos e grandes industriais para que o governo Lula e sua política econômica socialmente destrutiva fossem preservados.

Raul Pont é figura correta e batalhadora, dentro do PT, mas sabe que um grupamento que dele se apoderou não sairá de lá tão cedo. Com ou sem José Dirceu.


Aliás, o que será que se passou entre a saída do ''Querido Zé'', conforme o afetuoso bilhetinho de despedida que Lula o enviou, quando da demissão de Dirceu, e o cumprimento frio, gélido mesmo, durante o enterro de Apolônio de Carvalho? O PT e seu governo não são acusados de enriquecimento ilícito, de corrupção privada, mas de terem montado o mais escandaloso esquema de corrupção feita por um partido de esquerda. Aqui está o fulcro da questão: dizer que sempre houve corrupção no Brasil, quando a direita governava, não justifica a mesma prática, pela esquerda, ainda que para fins políticos. Que, então, se passou desde a demissão de Dirceu?


Lembro que em 1980, quando nasceu o PT, as organizações de esquerda olhavam-no com certo desdém. E o PT foi responsável pela ''primeira vingança'' da história: encontrou seu espaço, cresceu, foi parte das lutas da esquerda brasileira, tornou-se seu maior partido, até ser avassalado por um grupo mafioso que o levou ao fundo do poço, contra a vontade e com o desconhecimento completo de milhares de seus militantes.

O mesmo desdém que existiu contra o PT foi usado pelos seus dirigentes para satirizar o nascente PSOL. Agora vemos a ''segunda vingança'' da história: intelectuais e militantes da envergadura e coerência, hombridade e retidão, coragem e ideal socialista como Plínio de Arruda Sampaio, Ivan Valente, Jorginho das lutas sindicais, Plínio de Arruda Sampaio Jr, Deputada Maninha, Chico Alencar e tantos outros militantes de base — estes que muito fazem e pouco aparecem — que deram muito ao PT, agora se somarem à construção do PSOL. Que se sente feliz em recebê-los, pois passa a ser a nova casa política desses companheiros e companheiras cujas filiações honram o PSOL. Que, agora, inicia uma segunda fase.

29/Setembro/2005

[1] A palavra é usada no sentido de extorsão, de depauperar a segurança social pública em benefício do sector privado.

[*] Autor de "O caracol e sua concha - ensaios sobre a nova morfologia do trabalho", Boitempo Editorial. O livro será lançado dia 6 de Outubro, 5ª feira, às 18 horas, na Livraria Cortez, R. Bartira, 317, em S. Paulo.

O original encontra-se em
http://www.jb.com.br/jb/papel/opiniao/2005/09/28/joropi20050928001.html .


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01/Out/05