Os 20 anos do Plano Real:
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Investidor estrangeiro | 53 |
Investidor nacional | 26 |
Pessoas físicas | 8 |
Setor financeiro nacional | 7 |
Entidades de previdência privada | 6 |
Total | 100 |
Todavia, o processo de privatização das empresas públicas
merece algumas qualificações para compreendermos mais amplamente
seus meandros. O preço de venda da grande maioria das empresas foi
subavaliado, uma vez que seu valor era definido por empresas de consultoria, a
grande maioria estrangeira, e quase sempre esse valor era depreciado para
facilitar a privatização. Os investidores ainda poderiam comprar
as empresas e pagar parte de seu valor com
moedas podres
(títulos com pouco valor no mercado, mas que eram incluídos no
pagamento pelo seu valor de face). Por exemplo, a pessoa comprava no mercado
uma debênture da Siderbrás ou um título da dívida
externa por 30% de seu valor e colocava na compra da empresa estatal por 100%
de seu valor de face.
Para facilitar a privatização, o governo geralmente saneava antes
a empresa, ficava com o passivo deficitário e vendia apenas a parte boa
para o setor privado. Caso o comprador não tivesse recursos para
adquirir a empresa pública, o Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDEs) se encarregava de financiar até 70% da
compra das empresas, a juros generosos. Tratou-se realmente de um caso
sui generis
, onde o proprietário vende o seu bem e ainda financia o comprador.
Outro elemento inusitado é o fato de que o principal banco de fomento do
País, criado para financiar o processo de
industrialização, construção da infraestrutura
nacional e contribuir para a promoção do desenvolvimento do
País, se transformou num financiador da transferência do
patrimônio público para o setor privado nacional e internacional.
A volúpia em se desfazer do patrimônio era tanta que valia
qualquer argumento ou comportamento, desde que a privatização se
consumasse. Assim, todo o processo foi marcado por denúncias de
corrupção, por negociatas, enriquecimento ilícito,
falcatruas, conforme foi denunciado inúmeras vezes pela imprensa e,
posteriormente, confirmado por escutas telefônicas que vazaram
publicamente. Um das principais autoridades envolvidas na
privatização, num desses telefonemas, ao ser pressionado por
outra autoridade de alto escalão para agilizar uma
transação, desabafou: "
estou no limite da irresponsabilidade
". Muitos desses gestores da privatização posteriormente
ficaram milionários e outros se transformaram em banqueiros e
executivos de multinacionais após essas negociatas.
Dois casos se tornaram emblemáticos nessa farra de entreguismo do
patrimônio público nacional. A Companhia Vale do Rio Doce e a
Eletropaulo. A
Vale
, como é chamada hoje, era uma das principais empresas mineradoras do
mundo, dona de praticamente todo o subsolo brasileiro, maior exportadora de
minério de ferro, com rede de transporte e logística
própria, excelente rentabilidade e uma administração de
alto nível. O patrimônio físico da empresa era estimado em
US$42 mil milhões, as reservas de minério na Amazônia
giravam em torno de US$700 mil milhões, as reservas de ferro do
País estavam calculadas em US$300 mil milhões e nas
vésperas da privatização foram descobertas reservas de
ouro no valor de US$12 mil milhões. Ou seja, o valor da Vale, somando-se
as outras reservas espalhadas pelo País superava R$1,5 trilhão
(US$ 750 mil milhões), conforme denunciara o jornalista Aloysio Biondi,
em seu clássico livro
O Brasil Privatizado
[7]
. Mas no processo de privatização, a Vale foi vendida por apenas
U$ 3,3 mil milhões (três mil milhões e trezentos
milhões de dólares).
O outro caso digno de destaque é o da venda da Eletropaulo, empresa de
energia elétrica do Estado de São Paulo. A compra dessa empresa
teve o financiamento do BNDEs, nas mesmas condições generosas e
vantajosas da compra das outras empresas. Acontece que muitos anos depois,
quando foi necessário a quitação do empréstimo
junto ao BNDEs, a Eletropaulo, agora de propriedade AES, grupo norte-americano,
não tinha dinheiro para pagar. Então o ex-presidente do BNDEs,
Carlos Lessa, reivindicou a volta do controle da empresa pelo Estado.
Imediatamente o governo norte-americano pressionou o governo brasileiro e
conseguiu um acordo no qual o controle continuaria com os norte-americanos e o
Brasil ficaria com a menor parte do controle acionário da empresa.
Arquitetura e crise do Plano Real
Avaliando globalmente, podemos dizer que o Plano Real não teve nada de
genial, como procura nos fazer crer a mídia corporativa. Medidas
semelhantes já tinham sido utilizadas nos planos de
estabilização da Alemanha e em outros planos pelo mundo afora,
após processos de hiperinflação. Tratou-se na verdade de
um programa de estabilização baseado em três âncoras
fundamentais:
a âncora cambial, a âncora da taxa de juros e a âncora
salarial.
Esses mecanismos combinados provocaram um processo de mudanças
profundas na economia brasileira, para felicidade do grande capital
internacional, dos monopólios internos, dos especuladores financeiros e
dos economistas espertos que posteriormente enriqueceram-se com o plano.
a) A âncora cambial: a âncora cambial foi o mecanismo utilizado pelo governo para definir a paridade entre o Real e o Dólar. O governo definiu essa relação na base de 1 Real - 1 Dólar, para a surpresa de todos. Como num passe de mágica, a moeda brasileira, extraordinariamente desvalorizada, passou a ter o mesmo valor que dólar norte-americano. Nos primeiros meses, em função da grande entrada de dólares no País, fruto das taxas de juros estratosféricas, o Real superou o dólar e chegou a ser trocado na base de 1 dólar - 0,83 reais. Certa propaganda governamental insinuava que o plano era tão bom que a moeda nacional valia mais que a moeda dos Estados Unidos.
Com a abertura da economia e, consequentemente, a redução das tarifas de importação, o mercado brasileiro começou a ser inundado de produtos estrangeiros. Nas lojas e supermercados os brasileiros agora podiam comprar qualquer produto internacional muitas vezes até mais baratos que os produtos nacionais. Para uma sociedade que viveu com seu mercado praticamente fechado para mercadorias estrangeiras ao longo de quatro décadas, essa nova conjuntura parecia um milagre divino. Viveu-se a partir daí a farra dos produtos importados, fato que elevou a popularidade do governo a níveis extraordinariamente elevados.
Mas a importação de produtos externos não servia apenas para satisfazer o apetite dos consumidores internos: era uma das ferramentas fundamentais do plano. Afinal, com a entrada de produtos estrangeiros, os empresários nacionais não poderiam aumentar o preço de seus produtos e, dessa forma, se conseguiria a estabilidade dos preços. Foi este o método para se golpear a inflação. Com a valorização do Real, os empresários ligados à área produtiva passaram a ter também enormes dificuldades para exportar seus produtos, uma vez que as mercadorias brasileiras ficaram mais caras em relação aos produtos internacionais, reduzindo assim a pauta de exportação brasileira.
Para os consumidores, era o melhor dos mundos: os produtos estrangeiros podiam ser encontrados em qualquer esquina e, com o Real valorizado, passava-se a impressão de que aumentara o poder de compra da população. Além disso, a inflação, que castigou a sociedade brasileira por mais de duas décadas, agora estava domada e a sociedade estava livre do imposto inflacionário. Essa conjuntura, aliada ao bombardeio diário dos meios de comunicação e da propaganda governamental falando das vantagens do Real, explica muito bem a lua de mel entre a população e o novo governo,
b) A âncora da taxa de juros: esta segunda ferramenta do plano complementa a primeira e explica as artimanhas do Real. Com o Real valorizado e a redução das exportações, a balança comercial começou a apresentar déficits constantes, invertendo assim uma longa curva de saldos comerciais positivos obtidos ao longo de mais de uma década. Assim, durante quase todo o Plano, a balança comercial foi deficitária. Além disso, os pagamentos dos serviços da dívida externa juros e amortizações precisavam ser feitos regiamente, pois essa foi uma das condições exigidas pelos credores. Ainda em função da valorização do Real, a conta turismo também começou a apresentar déficits constantes, pois os turistas brasileiros passaram a gastar mais no exterior que os turistas estrangeiros no Brasil.
Nessa conjuntura, o fechamento do balanço de pagamentos necessitava da captação de recursos externos. Para tanto, o governo realizou uma política de taxas juros exponenciais, fato que transformou o Brasil no campeão mundial das taxas de juros. Enquanto os juros nos países centrais não alcançavam 5% ao ano, aqui no Brasil as taxas permaneceram em média cerca de 30% ao ano (Tabela 2). Com as taxas de juros nas alturas, o fluxo internacional de capitais migrou em profusão para o Brasil, afinal o diferencial entre as taxas internas e as taxas externas era grande o suficiente para convencer o capital internacional a migrar para o Brasil e a popularidade do governo indicava que não haveria mudanças de curto prazo. Vale ressaltar que a maior parte desse capital não veio ao País para investimentos na produção, mas tratava-se majoritariamente de capitais especulativos que aportavam no País para arbitrar a diferença entre as taxas de juros interna e externa e poderiam sair a qualquer momento em função da conjuntura.
Tabela 2: Taxa de juros Over/Selic, Brasil, jul./1994-dez-2002.
[1] Media de julho a dezembro
Ano % a.a. 1994 [1] 68,91 1995 53,38 1996 27,46 1997 25,02 1998 28,99 1999 25,85 2000 17,44 2001 17,34 2002 19,19
Fonte de dados básicos: IPEADATA (2014)De qualquer forma, com o grande fluxo de capitais externos, o governo captou recursos suficientes para fechar o balanço de pagamentos e ainda aumentar o volume de reservas internacionais. Esse mecanismo, que posteriormente viria não só demonstrar as fragilidades do plano mas cobrar um custo altíssimo ao País, tanto do ponto de vista econômico quanto social, era apresentado ufanisticamente à sociedade brasileira como prova da confiança da comunidade financeira internacional na economia brasileira, agora reformada e estabilizada.
c) A âncora salarial: esta terceira âncora do Plano Real é pouco evidenciada no debate, mesmo pelos críticos do Plano, mas cumpriu também um papel importante na consolidação do Real. Com o processo de estagnação da economia, ocorreu uma queda no Produto Interno Bruto ao longo de todo o Plano, aliada ao aumento expressivo desemprego, especialmente nas regiões mais industrializadas do País (Tabela3), além da ofensiva contra os direitos e garantias dos trabalhadores, criando-se assim as condições para o confisco salarial.
Tabela 3. Desemprego na região Metropolitana de São Paulo,1994-2002
Fonte: Ipeadata (2014)
Ano % 1994 14,2 1995 13,2 1996 15,1 1997 16,0 1998 18,2 1999 19,3 2000 17,6 2001 17,6 2002 19,0 A exemplo do que ocorreu na Inglaterra de Margareth Tatcher, cujo governo organizou todas as forças do Estado e do poder econômico para derrotar a greve dos mineiros e, assim servir de exemplo para as outras categorias, ou nos Estados Unidos, onde Reagan também jogou duro e derrotou a greve dos controladores de vôo, aqui no Brasil Fernando Henrique Cardoso exercitou o mesmo método para derrotar a greve dos petroleiros e abrir espaço para a implementação das medidas contra os trabalhadores. Mesmo querendo passar-se por um intelectual sofisticado, não vacilou diante da valentia dos petroleiros e ocupou com tropas do Exército as refinarias do País, demitiu trabalhadores e representantes sindicais, além de impor severas multas que na prática inviabilizavam a atividade sindical.
Numa conjuntura dessa ordem, com a principal entidade sindical derrotada, não foi difícil endurecer contra o movimento sindical. Os trabalhadores passaram a ter cada vez maiores dificuldades para obter reajustes salariais, pois tanto os patrões quanto o governo argumentavam em coro que não tinha sentido as categorias profissionais obterem reajustes salariais numa economia estabilizada. Esse foi um dos períodos de maior contração salarial: grande parte dos empregados do setor privado tiveram reajustes salariais abaixo da inflação e os funcionários públicos passaram todos os oito anos do Plano Real com reajuste zero. O confisco salarial realizado no governo FHC foi importante para conter as demandas dos empresários eventualmente descontentes com as medidas do Plano Real, especialmente os exportadores.
Apesar da barragem avassaladora dos meios de comunicação
enaltecendo o Plano Real, muitos críticos já alertavam, desde o
início, sobre as fragilidade e consequências desastrosas do Plano:
a artificialidade da paridade cambial poderia levar à vulnerabilidade
externa e a déficits na balança comercial, em consequência
da valorização do real; a abertura da economia, realizada
abruptamente, levaria à falência e desestruturação
de vários setores da economia, por não terem tempo de se adaptar
à nova conjuntura; e a elevação exagerada das taxas de
juros, também levaria ao aumento do endividamento interno e do pagamento
de juros, com impactos negativos no orçamento nacional. Esse conjunto de
medidas certamente conduziria o País ao desemprego, à
redução dos investimentos produtivos e, consequentemente,
à queda no ritmo de crescimento da economia, como de fato aconteceu.
Mas nenhum alerta era levado em conta pela arrogante equipe dos economistas
neoclássicos nem pelo presidente autossuficiente. Aqueles que ousavam
apontar as fragilidades do plano e denunciar suas consequências futuras,
eram sacrificados no altar da mídia corporativa, perdiam espaço
nas discussões e não mais eram convidados para entrevistas. O
próprio presidente se encarregava de desqualificar os opositores: eram o
neobobos, os caipiras, os atrasados, os saudosistas dos nos 50 em luta contra
as modernidades da globalização. Essa euforia artificial
possibilitou ao governo implantar praticamente todas as medidas do
receituário neoliberal, com oposição residual, e reeleger
FHC a presidência da República.
Somente alguns anos depois, quando passou a euforia, é que as pessoas
começaram a se dar conta de que o Real era um plano muito
precário. A economia se desaqueceu e o Produto Interno Bruto apresentou
uma acentuada queda no ritmo de crescimento; o desemprego aumentou
aceleradamente nas regiões metropolitanas, as mais industrializadas do
País; os salários em geral, sofreram permanente
redução; a balança comercial e conta turismo apresentaram
seguidos déficits e o País se tornou mais vulnerável
externamente, indicadores que se agravaram em função da crise
asiática. Só mesmo uma brutal manipulação dos meios
de comunicação poderia explicar como a sociedade não foi
capaz de perceber os graves problemas da economia e a ampliação
das desigualdades sociais que o plano estava provocando.
Ao final de 1988, com a crise asiática e a moratória da
dívida externa da Rússia, o Real já se mostrava
insustentável, em consequência da fuga de capitais,
turbulências na Bolsa de Valores e da sobrevalorização do
Real, mas era fundamental para o grande capital a reeleição de
FHC. Por isso, a crise foi abafada, adiada artificialmente para que FHC pudesse
ser reeleito, enquanto o governo negociava com o FMI, editava pacote de medidas
fiscais e acelerava o programa de desestatização. Com FHC
reeleito, o Fundo Monetário Internacional, com apoio dos Estados Unidos,
concedeu um empréstimo de U$ 40 mil milhões, quantia semelhante
à fuga de capitais, mas esse empréstimo colocou, na
prática, o Brasil sob intervenção dos organismos
internacionais, uma vez que na carta de intenções assinada com o
FMI o País se comprometia a cumprir todas as metas macroeconômicas
definidas no acordo, todas elas no interesse do grande capital internacional.
Mesmo esse conjunto de medidas não foi suficiente para evitar o colapso
do Plano Real: em janeiro de 1999 o governo foi obrigado a deixar o
câmbio flutuar livremente, o que significou o fim do Plano Real tal como
foi projetado inicialmente pela equipe econômica. Com o colapso do Plano,
o dólar subiu imediatamente, chegando ao patamar de
1 dólar para 1,98 Reais
, demonstrando claramente a artificialidade da paridade anterior. Desaparecia
assim, também como num passe de mágica, a âncora cambial,
mas o governo já havia cumprido grande parte dos objetivos de atrelar a
política econômica brasileira ao Consenso de Washington e ainda
tinha mais três anos de governo, nos quais consolidou o projeto
neoliberal e deixou para as próximas gerações uma
herança maldita, como ficou posteriormente conhecido o período de
governo de FHC.
O governo Lula e o Plano Real
A eleição de Lula representou a disposição da
sociedade brasileira de romper com a política econômica neoliberal
e a possibilidade de realização de mudanças no
País, afinal Lula vinha de uma trajetória de ascenso de lutas
sociais, foi combativo líder operário-sindical e militava num
partido que se proclamava dos trabalhadores. Sua eleição,
portanto, poderia inverter uma lógica histórica de governo das
classes dominantes. No entanto, tanto o primeiro governo do
presidente-operário quanto o segundo mandato representaram uma enorme
frustração para aqueles que acreditavam que um governo do Partido
dos Trabalhadores poderia iniciar um ciclo de transformações na
velha estrutura sócio-econômica brasileira.
É bem verdade que os sinais de que não haveria mudanças
começaram mesmo antes das eleições, quando Lula divulgou a
Carta aos Brasileiros
(na verdade uma carta dirigida especialmente ao grande capital nacional e
internacional), na qual se comprometia a respeitar os contratos e manter os
fundamentos da política econômica anterior. Tendo como
vice-presidente um dos principais representantes do capital nacional,
José Alencar, proprietário de um império na área
têxtil, mesmo antes de assumir Lula anunciou o nome de Henrique Meireles,
ex-presidente do
Bank Boston
, para a presidência do Banco Central. Ainda assim, muita gente imaginou
que essas medidas seriam apenas um recurso tático para evitar o caos e
acalmar os chamados mercados e o grande capital, afinal um personagem com uma
trajetória como a de Lula mereceria pelo menos o benefício da
dúvida.
No entanto, a realidade dos oito anos de governo Lula pode ser considerada
muito cruel para os ingênuos e para aqueles militantes petistas e de
outras forças aliadas do governo que esperavam
transformações. Ressalvando-se algumas mudanças na
política exterior, no salário mínimo e na política
de compensação social, o governo Lula, nos oito anos de mandato
manteve, na essência, os fundamentos da política econômica
neoliberal e governou fundamentalmente para o grande capital, fortalecendo os
grandes grupos econômicos e o agronegócio com recursos do BNDEs e
ampliando a atuação internacional desses grupos, cooptando o
movimento social e sindical, de forma a apassivar a luta de classes e
despolitizar a sociedade. Nem nos delírios mais otimistas, a burguesia
nacional e internacional imaginava um resultado tão satisfatório.
Em termos práticos, Lula manteve rigorosamente a política de
responsabilidade fiscal, as metas de inflação, o superávit
primário, as elevadas taxas de juros, o câmbio flutuante e a
valorização do real, o respeito aos contratos, realizou a reforma
da previdência e consolidou a autonomia operacional do Banco Central,
variáveis consideradas o núcleo duro da política
neoliberal e do Consenso de Washington e que continuam em vigor até os
dias de hoje. Ao longo dos oito anos de mandato, o Brasil se transformou no
paraíso dos capitalistas: nunca os banqueiros, especuladores de todo
tipo, os oligopólios nacionais e internacionais e o agronegócio
ganharam tanto dinheiro.
Para os mais miseráveis, restou as migalhas do Bolsa Família,
para a juventude as bolsas do Prouni e do Pronatec,
[8]
que cumprem o papel de salvar os grupos educacionais privados, quase todos em
dificuldades financeiras e que encontraram nesses mecanismos a tábua de
salvação de seus negócios. Para os assalariados que ganham
salário mínimo o governo desenvolveu uma política de
aumentos reais baseados na soma da inflação, mais o crescimento
do País, mecanismo pelo qual o salário mínimo vem
recuperando seu poder de compra, muito embora ainda seja quatro vezes menor que
o salário estipulado pelo Dieese.
[9]
Mas isso em nada se compara aos lucros bilionários obtidos pelo grande
capital, pelo agronegócio e pelos especuladores nacionais e
internacionais. Só o pagamento de juros da dívida interna, sem
levar em conta as amortizações, alcançou cerca de R$ 1,3
trilhão (US$650 mil milhões) no período do governo Lula
(2003 a 2010), quantia que corrigida pelo IPCA somaria R$1,8 trilhão
(US$900 mil milhões). Para se ter uma ideia da relação
entre os lucros do capital e os gastos com as políticas
compensatórias, basta dizer que as despesas anuais com o Bolsa
Família representam menos de 10% dos gastos com o pagamento de juros.
É bem verdade que nos oito anos de mandato, especialmente o segundo
mandato, o crescimento econômico foi maior que no governo FHC, o que
gerou um aumento acentuado do emprego; o governo buscou fortalecer a
integração regional, muito embora com o objetivo de ampliar
mercado para os grandes grupos brasileiros; e operou uma política no
sentido de reorganização do capitalismo brasileiro, mediando a
criação, consolidação, fortalecimento,
financiamento e internacionalização de grandes grupos da
burguesia interna, os chamados
campeões nacionais
, conjunto de oligopólios organizados a partir de fusões e
aquisições financiadas pelo BNDEs. Todavia, parece uma triste
ironia constatar que o fortalecimento e reorganização do
capitalismo brasileiro tenham sido consolidados exatamente por um
presidente-operário, militante de um partido denominado dos
trabalhadores.
As mudanças no bloco dominante
Essas modificações ocorridas na economia brasileira durante o
período neoliberal se inseriram numa conjuntura mais ampla de crise da
economia brasileira que começou no início dos anos 80, quando se
esgotou um longo ciclo de crescimento econômico que vinha desde a
década de 30 do século passado, com a revolução
burguesa e, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, quando o
Brasil experimentou elevadas taxas de crescimento econômico. Entre 1947 e
1980 o Brasil cresceu a taxas anuais médias superiores a 7%, enquanto a
partir dos anos 80 e nos anos 90 a taxa de crescimento médio anual ficou
em torno de 2,5%, período que é considerado como as duas
décadas perdidas.
Portanto, as mudanças de qualidade que ocorreram no processo de
acumulação de capital no País, vieram formatar uma nova
recomposição entre as frações das classes
dominantes (o capital financeiro internacional, a burguesia associada e o
Estado). A livre mobilização de capitais, as
privatizações, a desregulamentação financeira, a
abertura da economia, a redução do papel do Estado na economia, a
flexibilização do mercado de trabalho, as reformas
constitucionais, a reforma da previdência e a ofensiva contra direitos
dos trabalhadores alteraram profundamente a ordem econômica e social.
Com essa nova política, a exemplo do que ocorreu nos países
centrais, os setores mais ligados ao capital financeiro passaram a hegemonizar
a formulação das políticas econômicas governamentais
e disciplinar todos os outros setores eventualmente prejudicados com a nova
ordem.
Em outras palavras, os setores mais ligados ao capital financeiro internacional
articularam um programa capaz de hegemonizar todos os setores dominantes,
expresso no governo FHC, e reorganizaram profundamente a economia brasileira,
praticamente encerrando o ciclo onde os Estados nacionais tinham um papel
fundamental na condução da política econômica como
ocorreu no Brasil e em vários países da América Latina nas
décadas de 50, 60 e 70. Com a nova ordem o mercado se transformou no
instrumento estruturante de todas as relações
sócio-econômicas, sempre em sintonia de interesses com o processo
de globalização da economia mundial.
Para se ter um quadro sintético das modificações que
ocorreram com as privatizações, processo que reflete a nova
hegemonia societária do capital estrangeiro, é importante
ressaltar que mais de 5 mil empresas foram privatizadas e o capital
internacional dobrou suas posições no País. "No
período de 1995 a 2000, de acordo com o Banco Central, 5.082 empresas
nacionais passaram para o controle estrangeiro. Assim, o número de
empresas estrangeiras no País aumentou de 6.322 para 11.404 e seu
patrimônio pulou de US$86,2 mil milhões para US$179,8 mil
milhões ... A participação das empresas estrangeiras no
faturamento das 500 maiores empresas privadas e 50 maiores estatais no
País subiu de 32% em 1994 para 46,4% em 2001".
[10]
Esse impressionante volume de privatizações, aliado às
mudanças institucionais para favorecer a nova ordem, em conjunto com a
hegemonia do mercado, a desregulamentação e a vontade
política do governo em cumprir a qualquer custo e em tempo recorde a
agenda neoliberal, mudaram o perfil das classes dominantes no Brasil e deram
ao capital estrangeiro um poder econômico extraordinário. O
capital internacional avançou avassaladoramente não só nos
setores em que já estava presente como também em áreas
tradicionais de capital privado nacional, como bancos e supermercados,
agronegócio e propriedade da terra, enquanto surgiam das
privatizações novos grupos monopolistas nacionais associados com
o capital estrangeiro, ampliando assim os laços históricos entre
a burguesia associada brasileira e o capital internacional.
Um balanço das consequências do Plano
O Plano Real foi o instrumento que o capital financeiro internacional, aliado
à burguesia associada interna, especialmente ao setor ligado às
finanças especulativas, articulou para reestruturar o capitalismo
brasileiro, de forma a reordenar as relações de
produção e definir uma nova hegemonia entre as classes dirigentes
no País. Essa tarefa foi realizada ao longo do governo FHC: nos oito
anos em que dirigiu o País, FHC cumpriu como um aluno aplicado todo o
receituário emanado do Consenso de Washington, reduzindo o poder do
Estado nacional e atrelando a economia brasileira ao pagamento da dívida
pública e às vicissitudes da conjuntura internacional.
Posteriormente, a tarefa de reorganização do capitalismo
brasileiro foi complementada no Governo Lula.
O governo FHC transferiu a maior parte do patrimônio público para
o setor privado, principalmente para o capital estrangeiro, desregulamentou o
Estado, com a criação de agências reguladoras, reformou a
Constituição para servir aos interesses da nova ordem, realizou
reforma da previdência para adaptá-la aos fundos privados,
legalizou a autonomia operativa do Banco Central e manteve extraordinariamente
elevadas as taxas de juros, promulgou a Lei das SA para favorecer ao setor
privado, instituiu a livre mobilidade dos capitais e empreendeu uma feroz
ofensiva contra os direitos dos trabalhadores.
Em termos gerais, o período do governo FHC, ao contrário do que
as autoridades anunciavam no início do Plano, foi caracterizado pelo
aprofundamento da estagnação econômica do País,
dando continuidade aos anos perdidos iniciados em 1981. Se observarmos os
dados da
Tabela 4,
poderemos constatar que o crescimento médio anual do PIB foi de apenas
2,6%, um dos menores da história econômica do País. Como o
PIB é a principal conta da economia e de sua
performance
depende um conjunto de outras variáveis, como o emprego e a renda,
não é difícil imaginar o desempenho negativo dessa
variáveis. Por exemplo, o desemprego nos oito anos de governo neoliberal
também foi o maior da história contemporânea brasileira,
16,7% na média anual, enquanto a concentração de renda se
intensificou no período.
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1994 | 5,33 |
1995 | 4,42 |
1996 | 2,15 |
1997 | 3,38 |
1998 | 0,04 |
1999 | 0,25 |
2000 | 4,31 |
2001 | 1,31 |
2002 | 2,66 |
Uma das principais heranças desse governo foi o aumento impressionante
do endividamento interno. Em números atualizados, a dívida
interna brasileira, em 1994 correspondia a R$153 mil milhões ou 30% do
Produto Interno Bruto (PIB). Quando FHC encerrou seu governo em 2002 a
dívida estava calculada em R$881 mil milhões ou 56% do PIB
(Tabela 5).
Esse endividamento, fruto de uma política irresponsável que
combinava altas taxas de juros, déficits na balança comercial e
na conta turismo, além do pagamento dos serviços da dívida
externa mal negociada, colocou a economia brasileira numa armadilha que
até hoje a sociedade brasileira paga um enorme preço
econômico e social.
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1994 | 153 | 30 |
1995 | 208 | 31 |
1996 | 269 | 33 |
1997 | 308 | 34 |
1998 | 386 | 42 |
1999 | 517 | 49 |
2000 | 563 | 49 |
2001 | 661 | 53 |
2002 | 881 | 56 |
2003 | 913 | 58 |
2004 | 957 | 51,8 |
2005 | 979,7 | 46,5 |
2006 | 1.093 | 46,3 |
2007 | 1.224 | 43,3 |
2008 | 1.250 | 36,0 |
2009 | 1.398 | 43,0 |
2010 | 1.550 | 42,2 |
2011 | 1.783 | 43,0 |
2012 | 2.000 | 41,1 |
2013 | 2.400 | - |
Isso porque essa não é só uma dívida
impagável como também subordinou toda a política
econômica dos governos pós-FHC à
administração desse endividamento e deixou as
administrações reféns do capital especulativo. Se
observarmos a tabela poderemos constatar que a dívida interna cresceu
mais de 14 vezes desde 1994, num aumento semelhante a uma bola de neve.
Trata-se de uma dívida puramente financeira, uma vez que seu montante
não é resultado da construção de infraestrutura,
hospitais e escolas, mas é consequência do aumento dos juros e de
uma política econômica cujo objetivo central foi favorecer ao
capital financeiro nacional e internacional. Hoje essa dívida é
muito maior que o orçamento nacional e, caso continuem as mesmas
condições de seu financiamento, o endividamento se tornará
insuportável e levará, em algum momento do tempo, à
moratória ou à renegociação como já ocorreu
em outras nações.
Além disso, o pagamento dos juros da dívida interna tem se
elevado constantemente e cada vez mais impactado negativamente nas contas
nacionais e nas políticas públicas brasileiras. Se observarmos a
Tabela 6
, veremos que o montante para o pagamento de juros da dívida interna
aumentou cerca de cinco vezes entre 1994 e 2013.
Em termos atualizados (ver gráfico com valores atualizados no
início deste ensaio), o País pagou cerca de R$2,7 trilhões
de juros (US$1,35 trilhão) entre 2002 e 20013, o que significa uma
sangria financeira e uma monstruosidade em termos de transferência de
renda para o setor financeiro. Enquanto o povo pobre convive com um transporte
precário e o caos urbano, com as filas nos hospitais, a
educação universitária majoritariamente privada e a falta
de saneamento básico, os bancos apresentam lucros cada vez mais
bilionários nos seus balanços e especuladores internacionais
ganham rios de dinheiro.
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1994 | 50.9 |
1995 | 54.3 |
1996 | 56.9 |
1997 | 56.9 |
1998 | 80.2 |
1999 | 106 |
2000 | 79.8 |
2001 | 98.3 |
2002 | 113 |
2003 | 145 |
2004 | 129 |
2005 | 158 |
2006 | 162 |
2007 | 163 |
2008 | 166 |
2009 | 171 |
2010 | 195 |
2011 | 237 |
2012 | 214 |
2013 | 249 |
Em outras palavras, enquanto falta dinheiro para os serviços
básicos da população, os bancos se transformaram nos
empreendimentos mais lucrativos da economia brasileira. A
desregulamentação financeira, as altas taxas de juros e a
liberalização da cobrança de tarifas bancárias para
os correntistas, transformaram os bancos numa mina de dinheiro. De acordo com
estudos realizados pelo Dieese, para a rede de Sindicato de Bancários,
em dezembro de 1994 as receitas com prestação de serviços
(tarifas em geral) correspondiam a 26% das despesas com pessoal dos bancos. Em
2012, estas receitas já atingiam 131% em relação à
folha de pagamentos de pessoal dessas instituições.
[11]
Ora, se apenas com a cobrança de tarifas os bancos pagam sua folha de
pessoal e ainda lhes sobra extraordinário excedente, não causa
surpresa os lucros exorbitantes que as instituições financeiras
tiveram no País. "Entre 1994 e 2005 o lucro médio
líquido global dos 11 maiores bancos registrou aumento de 1.797% e a
rentabilidade patrimonial média saltou de 14,1 para 23,3%"
[12]
Outra das consequências do Plano Real no período FHC foi o
déficit na balança comercial. De um saldo positivo de US$10,5 mil
milhões em 1994, a balança comercial apresentou um resultado
negativo a partir de 1995 até o ano 2000 e só começou a se
recuperar no final do mandato, quando foi rompida a paridade artificial entre o
real e o dólar. Ao longo desse período, as
importações de mercadorias se transformaram na principal
ferramenta para a estabilidade da economia. O déficit comercial do
período FHC não só inverteu uma longa trajetória de
superávits comerciais, como impactou negativamente no setor exportador
brasileiro, que só pode se recuperar com o fim da âncora cambial
(Tabela 7).
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1994 | 10.466 |
1995 | -3.466 |
1996 | -5.599 |
1997 | -6.753 |
1998 | -6.575 |
1999 | -1.199 |
2000 | -698 |
2001 | 2.650 |
2002 | 13.121 |
O processo de privatização da economia, além dos danos
causados à economia nacional, pode ser considerado também um
fracasso financeiro. Se considerarmos o conjunto das vendas realizadas entre
1995 e 2002, as privatizações renderam ao governo apenas US$93,7
mil milhões, sendo que U$ 14,8 dos quais corresponderam a moedas podres
[13]
. Ou seja, o governo vendeu a maior parte do patrimônio público
por uma ínfima quantia e continuou cada vez mais endividado. Dessa
forma, o argumento de que os recursos arrecadados com a venda das empresas
públicas serviriam para reduzir o endividamento interno era somente uma
falácia, uma cortina de fumaça para justificar o entreguismo do
governo FHC, uma vez que a dívida interna aumentou nesse período
de R$153 mil milhões para R$881 mil milhões ... e todo o
patrimônio nacional ainda passou para o capital privado nacional e
internacional. Para regular a nova ordem neoliberal, o governo criou as
chamadas agências reguladoras, instituições que na
prática servem apenas sancionar as decisões privadas, com pouca
ou quase nenhuma ação efetiva contra os oligopólios, tanto
que são exatamente nesses setores onde há o maior número
de reclamações de maus serviços por parte da
população.
Do ponto de vista institucional, o governo FHC buscou adaptar todo o
arcabouço legal do País para servir à nova política
neoliberal e ao capital financeiro. Nessa perspectiva, as chamadas reformas do
governo FHC e as medidas antipopulares tomadas ao longo dos oito anos de
governo significaram um arcabouço regressivo que deixou para as
gerações futuras uma herança terrível. Essa
conjuntura alterou tão profundamente a economia e a sociedade
brasileiras que somente um processo de transformações sociais
será capaz de reverter estas medidas e construir uma nova ordem
econômica e social no Brasil.