por Perry Anderson
Os países dos BRICS estão em apuros. Por um tempo eles foram os
dínamos do crescimento global enquanto o Ocidente estava envolto na pior
crise financeira e recessão econômica desde a Grande
Depressão, mas agora eles se tornaram a principal fonte de
preocupação nos quartéis-generais do FMI e do Banco
Mundial. A China, acima de todos eles, por causa do seu peso na economia
global: produção desacelerada e um Himalaya de dívidas. A
Rússia: sitiada, com a queda dos preços do petróleo e as
sanções tirando seu quinhão. A Índia: segurando
melhor as pontas, mas com preocupantes revisões estatísticas. A
África do Sul: em queda livre. As tensões políticas
emergem em cada um deles: Xi e Putin respondem às tensões com
força bruta, enquanto Modi vai se afundando nas pesquisas e Zuma
é jogado na lama junto com seu próprio partido. Todavia, em
nenhum outro lugar as crises política e econômica se fundiram de
forma tão explosiva quanto no Brasil, cujas ruas no último ano
viram mais manifestantes do que o resto do mundo combinado.
Escolhida por Lula para a sucessão, Dilma Rousseff, a ex-guerrilheira
que se tornou chefe de Estado, venceu a disputa presidencial em 2010 com uma
maioria esmagadora de votos. Quatro anos depois ela foi reeleita, mas dessa vez
com uma margem muito menor de votos, uma vantagem de 3% sobre o seu oponente,
Aécio Neves, governador de Minas Gerais, num pleito marcado por uma
polarização regional nunca antes vista, com um Sul-Sudeste
industrializado voltando-se contra ela e com um Nordeste lhe dando uma vantagem
ainda maior do que em 2010, com 72%. Mas, ainda assim, foi uma vitória
definitiva, comparável à de Mitterrand sobre Giscard, e maior,
para não dizer também mais limpa, do que a de Kennedy sobre
Nixon. Em janeiro de 2015, Dilma e nesse ponto vamos abandonar os
sobrenomes, como os brasileiros costumam fazer começou sua
segunda presidência.
Em três meses, grandes manifestações lotaram as ruas das
principais cidades do país, com cerca de pelo menos dois milhões
de pessoas que exigiam sua saída. No Congresso, o Partido da Social
Democracia Brasileira (PSDB) de Neves e seus aliados, encorajados pelo fato de
que as pesquisas mostravam a queda vertiginosa na popularidade de Dilma, se
movimentaram para conseguir seu
impeachment
. No dia Primeiro de Maio, ela não conseguiu nem mesmo dar seu discurso
tradicional transmitido pela televisão a todo o país.
Anteriormente, quando seu discurso no dia Internacional da Mulher foi
transmitido, as pessoas começaram a bater suas panelas e fazer
buzinaços, numa forma de protesto que ficou conhecida como
panelaço
. Da noite para o dia, o Partido dos Trabalhadores (PT), que desfrutara do mais
longo e maior índice de aprovação do Brasil, tornou-se o
partido mais impopular do país. Confidencialmente, Lula teria lamentado:
'Nós vencemos a eleição. No dia seguinte, nós a
perdemos'. Muitos militantes se questionaram se o partido iria sobreviver a
tudo isso.
Como a situação chegou a esse ponto? No último ano
do governo Lula, quando a economia global estava ainda se recuperando da
primeira onda do crash financeiro de 2008, a economia brasileira cresceu 7,5%.
Ao assumir o governo, Dilma instituiu uma política de controle contra o
superaquecimento da economia, o que deixou satisfeita a imprensa financista,
naquilo que parecia ser uma política semelhante a que Lula teve durante
o início de seu primeiro mandato. Mas tão logo o crescimento
experimentou uma queda vertiginosa e as finanças globais pareceram
sombrias novamente, o governo mudou seu prumo, criando um pacote de medidas que
visavam priorizar os investimentos em desenvolvimentos subsidiados. As taxas de
juros foram reduzidas, as dívidas trabalhistas foram abatidas, os custos
da energia elétrica foram reduzidos, a moeda se desvalorizou e foi
imposto um limitado controle sobre o movimento do capital.
[1]
No embalo de todo esse estímulo, durante a primeira metade de sua
presidência, Dilma desfrutou de um índice de
aprovação de 75%.
Mas, ao invés de decolar, a economia desacelerou de um crescimento
medíocre de 2,72% em 2011 para mero 1% em 2012. Além disso, com
uma inflação que já ultrapassava os 6%, em abril de 2013 o
Banco Central aumentou os juros de forma abrupta, minando assim a base da
"nova matriz econômica" de Guido Mantega, o ministro da
Fazenda. Dois meses depois, o país foi acometido por uma onda de
protestos de massas cuja origem estava nas passagens de ônibus em
São Paulo e no Rio, mas que rapidamente aumentaram sua dimensão
tornando-se expressões generalizadas de descontentamento com os
serviços públicos e, estimulados pela mídia, também
de hostilidade contra um Estado incompetente. Rapidamente a
aprovação do governo caiu para a metade. Em resposta, ele bateu
em retirada, dando início a reduções caucionárias
nos gastos públicos e permitindo que os juros aumentassem novamente. O
crescimento caiu ainda mais ele seria praticamente zero em 2014
mas o desemprego e os salários permaneceram estáveis. No fim de
seu primeiro mandato, Dilma liderou uma desafiadora campanha para
reeleição ao assegurar a seus eleitores que ela continuaria
priorizando as melhorias nas condições de vida dos trabalhadores,
assim como atacando o seu oponente do PSDB por planejar reverter os
acúmulos sociais feitos pelo PT, cortando benefícios e atingindo
assim os mais pobres. Apesar do contínuo ataque ideológico
sofrido contra ela pela imprensa, ela conseguiu chegar à vitória.
Antes mesmo de seu segundo mandato começar formalmente, Dilma
mudou o seu rumo. Ela rapidamente passou a defender que um pouco de austeridade
se fazia necessária. O arquiteto da nova matriz econômica foi
então dispensado do ministério da Fazenda e quem assumiu foi
alguém orientado em Chicago, o diretor da gestão de ativos do
segundo maior banco privado do Brasil, assumindo um mandato que deveria reduzir
a inflação e restaurar a confiança. Os imperativos
tornaram-se o corte nos gastos sociais, reduzir o crédito dos bancos
públicos, leiloar propriedades do Estado e aumentar taxas para trazer o
orçamento de volta a uma situação de superávit
primário. Rapidamente o Banco Central aumentou sua taxa de juros para
14,25%. E já que a economia se encontrava estagnada, o efeito desse
pacote pró-cíclico foi de mergulhar o país numa
recessão generalizada queda nos investimentos, salários
diminuindo e o desemprego dobrando. Enquanto o PIB contraía, as receitas
fiscais diminuíam, piorando ainda mais o quadro de déficit e
dívida pública. Nenhum índice de aprovação
do governo poderia ter aguentado a rapidez de tal deterioração
econômica. Mas a crise da popularidade de Dilma não foi resultado
apenas de um resultado previsível sobre o impacto da recessão nas
condições de vida do povo. Ela também foi, ainda que seja
mais dolorido admiti-lo, o preço a ser pago por ela ter abdicado das
promessas pelas quais ela foi eleita. De forma generalizada, a
reação de seus eleitores foi de que sua vitória poderia
ser qualificada como 'estelionato', ou seja: ela enganou seus apoiadores ao
cumprir o programa dos seus adversários de campanha. E isso não
gerou apenas desilusão, mas também raiva.
Ainda que ocultas, as raízes dessa derrocada vingaram justamente no solo
do próprio modelo petista de crescimento. Inicialmente poderia se dizer
que seu sucesso dependia de dois tipos de nutrientes: um superciclo de aumento
nos preços das
commodities
e um
boom
do consumo doméstico. Entre 2005 a 2011, os ganhos comerciais do Brasil
aumentaram para mais de um terço, pois a demanda por
matéria-prima da China e de outras partes do mundo aumentou o valor das
suas principais exportações, assim como o volume de retorno
fiscal para gastos sociais. No final do segundo mandato de Lula, a fatia
correspondente da exportação de bens primários dentre as
exportações brasileiras subiu de 28 para 41%, no que o
espaço dos bens manufaturados caiu de 55 para 44%; no final do primeiro
mandato de Dilma, as matérias-primas eram responsáveis por mais
da metade do valor das exportações. Mas de 2011 em diante, os
preços das principais mercadorias comercializadas pelo país
entraram em colapso: o minério de ferro caiu de 180 Dólares para
55 Dólares a tonelada, a soja caiu de 18 Dólares a saca para 8
Dólares, o petróleo bruto despencou de 140 Dólares para 50
Dólares o barril. E reagindo ao fim da bonança do comércio
exterior, o consumo doméstico também entrou em declínio.
Durante seu governo, a principal estratégia do PT foi expandir a demanda
interna ao aumentar o poder de compra das classes populares. E isso foi
possível não apenas com o aumento do salário mínimo
e com transferências de renda para os pobres o 'Bolsa
Família' mas também por uma massiva injeção
de crédito aos consumidores. Durante a década de 2005 a 2015, o
total de débitos controlados pelo setor privado aumentou de 43% para 93%
do PIB, com empréstimos aos consumidores atingindo o dobro do
nível dos países vizinhos. Quando Dilma foi reeleita, em 2014, os
pagamentos de juros no crédito mobiliário estavam absorvendo mais
de 1/5 da renda média disponível dos brasileiros. Junto com a
exaustão do
boom das commodities
, a época de gastança também não era mais
viável. Os dois principais motores do crescimento tinham estagnado.
Em 2011, o alvo da nova matriz econômica de Mantega foi estimular a
economia a partir de um aumento nos investimentos. Mas os meios para
fazê-lo tinham diminuído. Desde 2006, os bancos estatais passaram
a aumentar gradualmente sua quantidade de empréstimos, indo de um
terço para metade de todo crédito o portfólio do
banco de desenvolvimento do governo, o BNDES, chegou a aumentar em sete vezes
seu valor desde 2007. Ao ofertar taxas preferenciais de juros para as grandes
companhias num valor muito mais alto do que os outros subsídios para as
famílias pobres, a 'Bolsa Empresarial' passou a custar ao tesouro
nacional o dobro do que custava a 'Bolsa Família'.
Favorável ao agronegócio e às construtoras, essa
expansão direta dos financiamentos públicos foi um anátema
pelo qual a classe média urbana passou a aderir a um movimento cada vez
mais violento anti-PT, com a mídia nacional amplificada pela
imprensa financista de Nova York e Londres fazendo vitupérios
sobre os perigos do estatismo. Assim, ao mudar de direção,
Mantega esperava impulsionar os investimentos do setor privado com
concessões tributárias e juros mais baixos, mas isso impactou na
redução dos investimentos nas estruturas públicas do
país, assim como pela desvalorização do Real que ajudou
nas exportações manufatureiras. Mas todos esses agrados à
indústria brasileira foram em vão. Estruturalmente, as
finanças são uma força muito maior no país. A
capitalização combinada dos dois maiores bancos privados do
Brasil, Itaú e Bradesco, é hoje duas vezes maior do que da
Petrobrás e da Vale, as duas principais empresas extrativas do
país, e com finanças muito mais saudáveis. As fortunas
desses e de outros bancos foram concebidas de acordo com o maior sistema de
juros de longo prazo do mundo um horror para os investidores, mas
verdadeiro maná para os rentistas e com um abissal
spread
bancário, com mutuários pagando de cinco a vinte vezes mais
pelos seus empréstimos. Além disso, somando-se a esse quadro,
há também o sexto maior bloco de fundos de pensão do
mundo, sem falar no maior banco de investimento da América Latina, uma
verdadeira constelação de fundos de coberta e de
private equity.
Na esperança de que isso trouxesse o setor industrial para o seu lado, o
governo confrontou os bancos ao força-los a aceitarem a recuarem o
patamar sem precedentes de 2% dos juros no final de 2012. Em São Paulo,
a Federação das Indústrias (FIESP) brevemente expressou
satisfação perante a medida, para logo depois pendurar bandeiras
em apoio aos manifestantes anti-estatistas de Junho de 2013. Os industrialistas
ficaram felizes em colher os frutos de altos rendimentos durante o
período de crescimento elevado do governo Lula, no qual virtualmente
cada grupo social viu sua posição melhorar. Mas quando isso
terminou durante o governo Dilma e as greves recomeçaram, eles
não tiveram qualquer compaixão por quem lhes favorecera
anteriormente. E não apenas as grandes empresas, assim como suas
parceiras do Norte global, se encontravam cada vez mais em
holdings
financeiros que eram afetados negativamente por conta das
políticas rentistas e por essa razão, não poderiam
dar às costas totalmente aos bancos e fundos de investimento , mas
o próprio grupo social a que pertenciam a maior parte dos
empresários era formado por uma alta classe média que tornara-se
mais numerosa, vocal e politizada do que os antigos grupos de
empresários, manifestando assim maior capacidade de
comunicação e coesão ideológica perante a sociedade
em geral. A furiosa hostilidade desse estrato para com o PT foi inevitavelmente
seguida também pelos industrialistas. Tanto os banqueiros do andar de
cima e os profissionais do andar de baixo, ambos estavam comprometidos a
derrubar um regime que agora viam como ameaça aos seus interesses
comuns, o que significou que os empresários tinham cada vez menos
autonomia.
Contra essa frente, que tipo de apoio o PT poderia esperar? Os sindicatos,
ainda que mais ativos no governo Dilma, eram apenas uma sombra do seu antigo
passado. Os pobres seguiram sendo beneficiários passivos do governo
petista, que nunca se dispôs a educa-los ou organizá-los, quanto
muito mobilizá-los em torno de uma força coletiva. Movimentos
sociais dos sem-terra e dos sem-teto foram mantidos distantes do
governo. Intelectuais acabaram sendo marginalizados. Mas não houve
apenas uma ausência de potencialização política das
energias vindas dos subalternos. Também não existiu uma
verdadeira política de redistribuição de riqueza ou de
renda: a infame estrutura tributária regressiva legada de Fernando
Henrique Cardoso para Lula, que penalizava os pobres e deixava os ricos
intocados, foi mantida. Houve, de fato, alguma distribuição que
acabou melhorando consideravelmente as condições de vida dos mais
miseráveis, mas isso foi feito de forma ainda individualizada. Com o
'Bolsa Família' tomando forma de recompensa para mães de filhos
em idade escolar, isso era um resultado esperado. Aumentos no salário
mínimo significaram também um aumento no número de
trabalhadores com 'carteira assinada', o que lhes garantiria acesso aos
direitos formais do emprego; mas não houve aumento, e pode ter havido
até mesmo uma queda, na sindicalização. Acima de tudo, com
a chegada do 'crédito consignado' os empréstimos
bancários com juros altos deduzidos diretamente dos salários
o consumo privado cresceu sem amarras e às custas dos gastos com
serviços públicos, cujas melhorias teriam sido uma forma mais
cara de estimular a economia. A compra de eletrônicos, bens de consumo e
veículos foram estimuladas (a compra de automóveis recebeu
incentivos fiscais), enquanto o suprimento de água,
pavimentação, ônibus eficientes, saneamento básico
aceitável, escolas decentes e hospitais públicos foram
negligenciados. Os bens coletivos não tinham prioridade nem
ideológica e nem prática. Logo, junto com a tão
necessária melhoria nas condições de vida
doméstica, o consumismo em sua forma mais deteriorada se espalhou nas
camadas populares através de uma hierarquia social em que a classe
média vislumbrava, ainda que por padrões internacionais, com
revistas e
shopping centers.
O quão prejudicial isso foi para o PT pode ser observado através
da questão da moradia, onde necessidades individuais e coletivas mais
visivelmente se intersectam. Nela, a bolha de consumo se transformou cada vez
mais numa dramática bolha imobiliária, na qual vastas fortunas
foram feitas por empreiteiros e empresas de construção enquanto o
preço dos imóveis disparou para a maioria das pessoas que viviam
nas grandes cidades e cerca de um décimo da população
não tinham acesso a moradias adequadas. Entre 2005 a 2014, o
crédito para a especulação imobiliária e
construção civil aumentou vinte vezes; em São Paulo e no
Rio de Janeiro os preços por metro quadrado quadruplicaram. Somente no
ano de 2010, os aluguéis em São Paulo aumentaram 146%. E nesse
mesmo período, havia cerca de 6 milhões de apartamentos
desocupados, com sete milhões de famílias sem teto. E ao
invés de aumentar a oferta de casas populares, o governo financiou
construtoras privadas para construírem condomínios mediante um
belíssimo lucro em áreas periféricas, cobrando
aluguéis mais caros do que aqueles que os mais pobres poderiam pagar, ao
mesmo tempo que ele apoiava as autoridades locais e os despejos feitos em
ocupações. Diante de tudo isso, os movimentos sociais ganharam
fôlego com os sem-teto e agora são uma das principais
forças do Brasil: esses movimentos não estão dentro, mas
sim contra o PT.
Sem contar com uma força-tarefa popular capaz de lidar com a
pressão das elites do país, Dilma sem dúvida torceu para
que, após sua apertada reeleição, ao bater em retirada
economicamente, com uma política inicial de apertar os cintos semelhante
a que Lula fez nos seus primeiros anos no poder, ela poderia então
reproduzir o mesmo tipo de virada de mesa. Mas as condições
externas impediram qualquer comparação possível. A
dança dos
commodities
já se foi e uma recuperação, seja lá quando vier,
parece não ter sustentação. Pode se argumentar, observando
esse contexto, que a extensão das atuais dificuldades não deve
ser exagerada. O país está passando por uma severa
recessão, com o PIB caindo 3,7% no último ano e provavelmente a
mesma coisa acontecerá esse ano. Por outro lado, o desemprego ainda
está longe de atingir os níveis da França, o que
dirá da Espanha. A inflação é ainda mais baixa do
que os anos de FHC e o país possui mais reservas. O déficit
público é metade do déficit da Itália, ainda que
com os juros brasileiros o custo de reduzi-la seja bem maior. O déficit
fiscal ainda está abaixo da média dos Estados Unidos. Tudo isso
tende a piorar. Todavia, a atual profundidade do abismo econômico
não encontra respaldo no volume do clamor ideológico que existe
sobre ele: a oposição militante e a fixação
neoliberal possuem interesses em aumentar o grau de martírio do
país. Mas isso, por sua vez, não reduz a escala da crise a qual o
PT está agora envolto, que não é apenas econômica,
mas também política.
Pode-se dizer que as origens desse dilema residem na estrutura da
Constituição Brasileira. Em praticamente quase todos os
países da América Latina, presidências inspiradas pelo
modelo estadunidense coexistem com parlamentos aos moldes europeus: ou seja,
Executivos superpoderosos de um lado e, do outro, Legislativos eleitos por um
sistema proporcional de representação e não no
modelo distorcido de
past-the-post
, tal qual nos sistemas anglo-saxões. O resultado típico desse
modelo, ainda que não seja invariável, é uma
presidência com enormes poderes administrativos cuja fraqueza reside no
fato de que nenhum partido consegue ter uma maioria parlamentar com poder
significativo. Todavia, em nenhum lugar o Executivo se separou tanto do
Legislativo como no Brasil. Isso é porque, acima de tudo, o país
possui o mais frágil sistema partidário do continente. No Brasil,
a representação proporcional toma forma de um sistema de lista
aberta na qual os eleitores podem escolher qualquer candidato dentro de um
enorme número de indivíduos que nominalmente estão dentro
da mesma disputa, em legislaturas que geralmente recebem cerca de pouco mais
que dois milhões de votos. As consequências dessa
configuração são duais. Na maioria dos casos, eleitores
escolhem um político que eles conhecem ou acham que conhecem
ao invés de escolherem um partido do qual eles pouco ou nada
sabem, enquanto os políticos, por sua vez, precisam obter uma grande
quantia de dinheiro para financiar suas campanhas e garantir que os eleitores
se identifiquem com eles. A grande maioria dos partidos, cujos números
aumentam a cada eleição (atualmente há 28 partidos com
representação no Congresso), não possuem qualquer
coerência política, o que dirá disciplina política.
O seu propósito é simplesmente assegurar favores dos chefes do
Executivo diretamente para os seus bolsos e, claro, dar algum retorno para
assegurar a reeleição de seus correligionários, oferecendo
aos governos votos favoráveis nas diferentes câmaras.
Quando o Brasil emergiu após duas décadas de Ditadura Militar em
meados dos anos 1980, esse sistema foi criado por uma classe política
que se moldara sobre ela. Objetivamente, a sua função era (e
ainda é) neutralizar a possibilidade de que a democracia levasse
à formação de algum tipo de vontade popular que
ameaçasse a grandeza da desigualdade brasileira, ao anestesiar as
preferências eleitorais num miasma de disputas subpolíticas por
vantagens venais. Cabe ressaltar que o que acentua os problemas desse sistema
é também sua massiva desproporção
geográfica. Todo os sistemas federais exigem algum tipo de
equalização dos pesos de cada região, geralmente
envolvendo uma sobrerepresentação das áreas menores e
rurais numa câmara mais alta, às custas das áreas maiores e
mais urbanizadas, tal como o Senado dos EUA. Contudo, poucos países
chegam perto do grau de distorção criado pelos engenheiros do
sistema brasileiro, no qual a proporção dessa
sobrerepresentação entre os pequenos e maiores Estados atinge uma
proporção de 88 para 1 (nos EUA ela fica em torno de 65 para 1).
E o problema não é apenas o fato de que as três mais pobres
e atrasadas regiões controlam 3/4 dos assentos do Senado e contam com
cerca de 2/5 da população (assombradas, na maior parte, pelos
mais tradicionais 'caciques' que dominam as clientelas mais submissas). Mas de
forma única, eles também comandam a Câmara dos Deputados.
Ou seja, ao invés de corrigir esse problema conservador do sistema, a
democratização o aumentou, criando inclusive novos estados com
população pequena, desequilibrando ainda mais o cenário.
Nesse cenário, ao contrário de outros países da
América Latina que emergiram do domínio dos militares nos anos
1980, nenhum partido político do período anterior à
ditadura sobreviveu. Na verdade, o palco foi inicialmente ocupado por duas
forças derivadas das invenções dos generais: o partido da
oposição permitida, o Movimento Democrático Brasileiro
(MDB), e seu partido de situação, a Aliança Renovadora
Nacional (ARENA) ridicularizados por serem vistos como os partidos do
'sim' e do 'sim senhor'. O primeiro posteriormente renomeou-se como Partido do
Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e boa parte do segundo se
transformou em Partido da Frente Liberal (PFL). Com a saída dos
militares, o primeiro governo estável de fato só aconteceu com a
presidência de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, nascida de um pacto de
uma dissidência do PMDB que ele ajudara a criar, nominalmente
social-democrática, mas na realidade social-liberal (o PSDB), cujo
eleitorado se concentrava nas regiões Sul e Sudeste. Ao lado do PSDB
estava o nominalmente liberal, mas na realidade conservador PFL, cuja base se
encontrava nas regiões Norte e Nordeste. Esse foi um pacto entre os
oponentes moderados e os tradicionais ornamentos da Ditadura e conseguiu
construir uma grande maioria no Congresso, agindo a serviço daquele que
se tornaria o principal programa neoliberal do país, afinado com o
Consenso de Washington. Enquanto candidato presidencial, Cardoso tomado
pelo grande capital como uma garantia contra radicalizações
recebeu enormes quantias de dinheiro: os ricos sabem reconhecer seus
amigos. O custo relativo de suas campanhas, num país mais pobre, foi
maior até mesmo que os gastos das campanhas de Clinton no mesmo
período. Concorrendo contra ele estava Lula, diante de uma montanha de
dinheiro que financiava a campanha de Cardoso. Mas assim que assumiu o cargo,
FHC geralmente não precisou de dinheiro para comprar o apoio do
Congresso embora exista pelo menos uma notável
exceção nessa afirmativa pois sua coalizão com os
clãs das oligarquias do Nordeste, ainda que sujeitas às suas
disputas regionais, não era meramente oportunista, mas sim baseada numa
parceria natural para objetivos comuns. O acordo foi estável e, nos anos
recentes, foi muito elogiado por admiradores de Cardoso no Brasil e nos
países anglófonos, considerado um modelo de 'presidencialismo de
coalizão', tomado inclusive como um exemplo esperançoso para o
resto do mundo, em lugares onde os modelos de governo europeu ou americano
raramente conseguem vingar.
Ainda assim, os cofres das campanhas de FHC estavam 'limpos' no sentido dos
financiamentos americanos, onde os
Super PACs
compram votos, e sua coalizão era ideologicamente sólida,
já que uma vez eleito, nem seus objetivos e tampouco os de seus aliados
poderiam ser atingidos por outros meios. Tanto seu vice-presidente, Marco
Maciel, assim como seu mais poderoso aliado no Congresso, Antônio Carlos
Magalhães, eram verdadeiros eixos da política repressiva no
Nordeste ambos instalados pela Ditadura como governadores, o primeiro em
Pernambuco e o segundo na Bahia, algo feito tão logo eles apoiaram a
derrubada do regime democrático em 1964 e sem nenhuma
intenção de alterar esses métodos tradicionais. ACM, como
gostava de ser chamado, bravateava: 'Eu ganho eleições com um
saco de dinheiro na mão e um chicote na outra'. Seu filho, Luís
Eduardo, era o político favorito de Cardoso no Congresso, o delfim
apontado para sucedê-lo e assim seria se não tivesse morrido
precocemente. O próprio FHC, que por um bom tempo sustentou que a
reforma do sistema partidário era uma prioridade para o Brasil e
prometeu entrega-la, mudou de ideia tão logo chegou no Palácio do
Planalto, afirmando que a maior prioridade era revisar a
Constituição para que ele próprio pudesse ser reeleito
para um segundo mandato. Abandonando qualquer tentativa de racionalizar ou
democratizar a ordem política, ele presidiu e para isso, sim, foi
necessário uma campanha direta de subornos a deputados para
comprar uma super-maioria no Congresso requerida para passar a emenda da
reeleição.
Quando Lula foi finalmente eleito em 2002, o PT estava numa
posição diferente. Assim que ele passou a reassegurar que
não atacaria bancos e empresas, e tão logo pareceu que sua
vitória era certa, essas companhias passaram a financiá-lo, ainda
que numa escala menor do que a de seu predecessor. Mas dentro do Congresso ele
não possuía aliados naturais que tivessem muita expressão.
O PT, apesar de toda a moderação da campanha de Lula na
presidência, era visto e ainda é como um partido
radical, posicionado à esquerda do verdadeiro pântano que domina o
Legislativo. Lá, ele nunca conseguiu mais do que 1/5 dos deputados,
somando uma votação três vezes menor do que a do
próprio Lula. Como garantir algum tipo de maioria funcional para
apoiá-lo em meio a esse verdadeiro
marais
? O método tradicional, concretizado numa escala heroica durante a
primeira presidência civil após a Ditadura a de José
Sarney, outro antigo lacaio dos generais , era o de comprar apoios
distribuindo ministérios e cargos de confiança para aqueles que
tivessem interesse e pudessem trazer consigo a maior quantidade de votos.
Inicialmente isso ocorreu dentro das facções de seu
próprio partido, o PMDB, a maior e mais fisiológica entidade
política do país e que, uma década depois, tornara-se a
fossa na qual desaguavam todas os riachos da corrupção
política. O caminho clássico para o PT era então fazer
acordos com essa criatura, alocando para eles uma boa parte de seus
ministérios e agências estatais. Todavia, essa
solução fora rejeitada pelo partido há uma disputa
sobre quem, dentro da cúpula, estava a favor e quem estava contra
pois havia receio de que as consequências seriam criar um peso-morto
ideológico dentro do governo que poderia neutralizar o momentum
progressista que se criara. Ao invés disso, a decisão foi de
costurar um grupo de apoiadores de uma densa camada de partidos pequenos, sem
conceder assim muito terreno para um deles em específico, mas pagando-os
com dinheiro em troca de apoio na câmara num esquema de propina. De fato,
o PT tentou compensar a falta de parceiros naturais (algo que FHC não
teve que lidar) e sua recusa em retomar o sistema concebido por Sarney, criando
assim um sistema de estímulos materiais para cooperações
dentro do Congresso e por uma moeda de troca mais barata: ou seja, usando de
mesadas para não usar de lugares específicos dentro do governo.
Quando esse esquema veio à tona em 2005, o chamado escândalo do
'Mensalão' (ou seja, de pagamentos mensais aos deputados) fez com que
Lula perdesse o apoio do eleitorado de classe média e por muito pouco
não terminou precocemente com sua primeira presidência. Tão
logo ele sobrevivera e fora triunfantemente reeleito no ano seguinte, o PT
não teve outra escolha senão recuar e aceitar a
solução que tanto temia em abraçar: o PMDB então
entrou no bloco do governo, garantindo assim alguns importantes
ministérios e postos centrais no Congresso, e assim permaneceu
até o primeiro mandato de Dilma e no primeiro ano do segundo mandato.
Contudo, isso não significa que a corrupção tenha
diminuído e sim que ela aumentou drasticamente. Isso não apenas
porque o PMDB era o campeão do saque dos recursos públicos em
âmbitos municipais e estaduais (por décadas o partido inclusive
abandonara as disputas presidenciais), mas também porque um gigantesco
pote de mel, maior do que tudo que se podia imaginar, estava se concretizando
com a expansão da Petrobrás, a empresa de petróleo estatal
cujas atividades equivalem a 10% do PIB nacional; nesse momento, uma
capitalização a tornaria a quarta mais valiosa empresa do mundo.
A construção de novas refinarias, petrolíferas,
poços, plataformas, complexos petroquímicos oferecia vastas
oportunidades para retribuições e logo um esquema acabou sendo
estabelecido. Leilões seriam tomados por um verdadeiro cartel composto
pelas principais empreiteiras do país, mas os contratos eram cobrados a
partir de grandes somas de dinheiro que iam direto para os bolsos dos diretores
da Petrobrás e para os partidos políticos que estivessem
envolvidos calcula-se cerca de 3 mil milhões de Dólares em
subornos. Esse tipo de prática não era novidade na
história da companhia, sendo que FHC preferiu fingir que ela não
acontecia, e até a primavera de 2013, a companhia desfrutou da
costumeira impunidade oriunda da riqueza e do poder no Brasil.
O que mudou nisso tudo foram três efeitos pós-Mensalão. A
delação premiada foi introduzida no Brasil; a prisão
cautelar, um antigo poder judiciário usado para lotar as cadeias do
país com pobres, tornou-se pela primeira vez um instrumento
aceitável para dobrar aqueles de classes superiores; e as
sentenças na primeira instância não podiam mais ser
deferidas por intervenção do Supremo, o que permitia apressar as
prisões. Os dois primeiros efeitos foram as mesmas armas que os
magistrados italianos utilizaram para derrubar a classe política e
empresarial italiana nos escândalos da
Tangentopoli
, nos anos 1990. Mas o terceiro efeito eles nunca conseguiram. Inclusive no
Brasil foi criada uma forma de extrair confissões daqueles sob
prisão preventiva: ameaçar a estender o mesmo tratamento
às esposas e filhos. Em 2013, gravações feitas num caixa
de uma empresa de lavagem de carros (um 'lava-jato') em Brasília levou
à prisão de um contrabandista com longa ficha criminal. Mantido
em Curitiba, na região Sul, para proteger sua família, esse
'doleiro' passou a revelar a escala do sistema de corrupção da
Petrobrás, na qual ele havia sido um dos principais
intermediários na transferência de recursos entre contratantes,
diretores e políticos dentro e fora do país. Num primeiro
momento, as acusações caíram sobre nove das principais
construtoras e empreiteiras do Brasil, com seus famosos chefes e diretores
sendo presos, junto com outros três diretores da Petrobrás, em
investigações que atingiram ainda mais de cinquenta
políticos, tanto deputados e senadores como até mesmo
governadores.
Os três principais partidos envolvidos eles eram sete no total
foram o PMDB, o Partido Progressista (PP, um partido oriundo da
Ditadura) e o PT. Quem ganhou mais no esquema ainda não está
claro. Mas já que não existiam ilusões sobre os dois
primeiros, foi a exposição do terceiro que realmente ganhou
relevância política. O 'Mensalão' foi somente uns trocados
em comparação com a enormidade do 'Petrolão', enquanto o
primeiro não teve nenhum benefício privado para políticos
do PT, o segundo, por sua vez, apagou completamente os limites entre fundos de
campanha e enriquecimento pessoal. Dentre outros detalhes, veio à tona
que o próprio chefe da Casa Civil de Lula, José Dirceu (o
arquiteto por trás da formação do PT enquanto partido),
que havia sido afastado por conta de seu envolvimento no 'Mensalão',
havia insistido que uma parte do 'Petrolão' fosse dirigida para suas
próprias contas bancárias. Se o grosso dessas
retribuições eram utilizadas para financiar as campanhas e o
aparato do partido, a presença contínua de grandes somas de
dinheiro clandestino não tinha como não corromper aqueles que
botavam suas mãos nele. O sociólogo Chico de Oliveira alertara,
antes mesmo do 'Petrolão' ter sido descoberto, que o PT estava
caminhando a passos largos para um processo de transfiguração
numa aberrante espécie taxonômica de vida política, algo
que não mais podia ser visto como uma metáfora.
[2]
Liderando o ataque ao 'Petrolão', a equipe investigativa de Curitiba se
tornou, assim como os juízes e policiais de Milão que os
inspiravam, verdadeiras estrelas midiáticas. Jovens, de cara limpa,
queixos quadrados, beneficiando-se de seu treinamento legal em Harvard, o juiz
Sergio Moro e o promotor Deltan Dallagnol pareciam saídos direto de um
desses seriados americanos de tribunais. Sobre o seu zelo no combate à
corrupção e o valor do choque que aplicaram nas elites
políticas e empresariais do país, não havia
dúvidas. Mas assim como na Itália, objetivos e métodos nem
sempre coincidiram. A delação premiada e a prisão
preventiva sem acusações combinaram induzimento e
intimidação: instrumentos obtusos em busca da verdade e da
justiça, mas no Brasil eles estavam dentro da lei. Contudo, o vazamento
de informações, ou às vezes até de
suspeições, por parte dos investigadores para a imprensa,
não é: eles são claramente ilegais. Na Itália, eles
foram constantemente utilizados pela equipe de Milão e foram usados
ainda mais ostensivamente pela equipe de Curitiba. Desde o início os
vazamentos pareciam seletivos: eles almejavam o PT e, persistentemente,
ainda que não exclusivamente, pois os estilhaços se espalhavam
aparecendo nas principais revistas da bateria anti-governo, como o
semanário
Veja,
que após semanas de exposição fez uma
edição a ser lançada poucas horas antes da
eleição de 2014 com as imagens de Lula e Dilma sob uma sinistra
meia-luz com tons de vermelho e negro com a exclamação "Eles
sabiam de tudo!", alertando os eleitores para quem eram as verdadeiras
mentes criminosas por trás do 'Petrolão'.
Mas será que o fato dos magistrados terem alimentado a mídia com
vazamentos significa que seus objetivos eram os mesmos, ou seja, que eram fruto
tal como o PT sustentou de uma operação comum?
Pode-se dizer que o judiciário brasileiro, assim como seus colegas de
promotoria e Polícia Federal, compartilha muito da identidade de classe
média brasileira, cujas camadas eles pertencem, com suas
preferências e preconceitos de classe típicos. Nenhum partido
operário, por mais emoliente que seja, consegue atrair simpatia
particular desse meio. Mas será que os vazamentos contra o PT são
resultado de uma aversão militante, ou fruto de uma ideia de que
não há melhor forma de enfatizar os horrores da
corrupção do que pegar aquela que é a principal
força política do país por mais de uma década, que
inclusive é justamente aquela que a mídia, por suas
próprias razões, estaria mais disposta a divulgar as
revelações? Histórias que atingissem o PMDB seriam banais
e o PSDB poderia ser poupado, em âmbito nacional, pois sendo um partido
de oposição teria menor acesso aos cofres públicos,
independente do seu domínio dentro dos estados.
O escândalo da Lava Jato estourou de fato na primavera de 2014 e
sucessivas prisões e acusações chegaram às
manchetes durante a corrida presidencial no outono. A virada econômica de
Dilma, tão logo eleita, pode ser vista em parte como conduzida pela
esperança de aplacar a opinião neoliberal o suficiente para que a
mídia moderasse seu discurso sobre o PT, que estava sendo tratado como
uma gangue de ladrões. Mas se foi isso de fato, ela foi em vão.
Superando até mesmo o PSDB na virulência de seus ataques, uma nova
direita passou a ganhar proeminência nas manifestações
massivas contra Dilma em março de 2015. No Brasil, o slogan tradicional
da direita era "Deus, Família e Liberdade", verdadeiros
banners
do conservadorismo que clamou pelo golpe militar que gerou a Ditadura de 1964.
Meio século depois, os gritos dos manifestantes mudaram. Recrutados a
partir de uma geração mais jovem de militantes de classe
média, uma nova direita e geralmente com orgulho de afirmar-se
assim passou a falar menos em termos de religiosidade, menos ainda em
termos de família e reinterpretou o sentido de liberdade. Para eles, o
livre mercado era a base necessária para todas as outras liberdades,
concebendo assim o Estado como uma espécie de hidra de muitas
cabeças. Essa política se iniciou não nas
instituições da ordem decadente, mas sim nas ruas e nas
praças, onde cidadãos poderiam se reunir contra um regime de
parasitas e ladrões. Surfando na onda das manifestações
massivas contra Dilma, os dois principais grupos dessa direita radical
'Vem Pra Rua' e 'Movimento Brasil Livre' modelaram suas táticas
assimilando elementos do 'Movimento Passe Livre',
um movimento de extrema-esquerda que desencadeou os protestos de 2013,
inclusive com o MBL deliberadamente fazendo um acrônimo com o MPL. Ambas
organizações da direita eram pequenas, mas dependiam de um
intenso trabalho de mobilização de massas por meio da internet. O
Brasil possui mais viciados em Facebook do que qualquer outro país,
perdendo somente para os Estados Unidos, e tanto o 'Vem Pra Rua' como o 'MBL' e
outros grupos da direita o 'Revoltados On-Line' (ROL) é outro
movimento proeminente vem conseguindo mobilizar a
população com muito mais sucesso do que a esquerda, embora seja
importante levar em consideração o previsível perfil de
classe de quem adentra na rede social de Zuckerberg. Até então, o
efeito multiplicador desses grupos de direita tem sido muito maior.
No horizonte de toda essa situação, há também a
ambígua nébula de uma nova religião. Mais de 20% dos
brasileiros atualmente são convertidos a alguma variedade de
protestantismo evangélico. Seguindo o padrão da Igreja da
Unificação do Reverendo Moon, muitas delas certamente as
maiores são verdadeiros balcões de negócios que
ficam ordenhando o dinheiro de seus fiéis para erigir verdadeiros
impérios financeiros para os seus fundadores. A fortuna de Edir Macedo,
o líder da Igreja Universal do Reino de Deus, cujo gigantesco e
kitsch
Templo de Salomão na região do Brás em São Paulo
próximo do menos grotesco, mas ainda impressionante templo da
rival Assembleia de Deus, numa espécie de
Wall Street
religiosa onde ocorrem performances de melodramáticos exorcismos
nos telões e em que os fiéis cantam e oram, ultrapassa mais de
mil milhões de Dólares. Parte desse império se associa
também ao controle da segunda maior rede de televisão do
país. Atualmente bastante próspera nas periferias, a
organização de Macedo prega uma "teologia da
prosperidade", prometendo sucesso material na Terra, ao invés de
mera salvação celestial. Diferente dos evangelistas americanos,
as Igrejas Evangélicas no Brasil não possuem perfis
ideológicos muito específicos além de assuntos como aborto
e direitos LGBT. Macedo chegou a apoiar FHC como uma forma de impedir o
comunismo, mas nas eleições seguintes apoiou Lula e desde
então vem criando sua própria organização
política. Mas muitas dessas igrejas operam no descrédito dos
partidos brasileiros: elas são veículos a serem contratados,
trocando votos por favores, com a diferença de que elas apoiam
candidatos de qualquer partido a bancada evangélica no Congresso,
cerca de 18% dos deputados, inclui congressistas de 22 partidos. Seus
principais interesses residem em garantir concessões de rádio e
televisão, evasão fiscal para igrejas e acesso à
zoneamento urbano para a construção de monumentos
faraônicos.
Ao mesmo tempo, ainda que mais passivas e promíscuas do que seus iguais
nos Estados Unidos, essas Igrejas formam um reservatório conservador
para os agressivos líderes da direita no Congresso. Sintomaticamente, o
presidente da Frente Evangélica é um musculoso pastor e
ex-policial que senta na bancada do PSDB. Ali também se encontra o
Presidente da Câmara dos Deputados, eleito em fevereiro de 2015
esse sendo o cargo mais importante do Congresso e o terceiro da linha
sucessória depois do vice-presidente , o deputado Eduardo Cunha,
um corretor da bolsa evangélico do Rio e líder da bancada do
PMDB. Geralmente identificado como o mais perigoso inimigo de Dilma ela
inclusive tentou impedir sua eleição seu jeito garboso e
modos imperturbáveis escondem um excepcionalmente talentoso e cruel
político, um mestre nas artes obscuras da manipulação
parlamentar e na administração, uma pessoa a quem grandes
números do chamado "baixo clero" do Congresso tornaram-se
dependentes de seus favores desde que assumiu o cargo, enquanto outros vivem
acuados diante de sua força sem conseguir enfrenta-lo. E tão logo
as manifestações nas ruas clamaram pelo impeachment de Dilma, ele
logo tornou-se o ponta de lança dentro do Legislativo que garantiria a
saída da presidente, sob o pretexto de que antes das
eleições ela havia transferido, de forma imprópria, fundos
dos bancos estatais para contas federais.
Atingindo um crescendo no mês de setembro, o movimento para depô-la
atingiu números impressionantes, configurando diferentes forças e
personagens que se entrecruzavam de diferentes formas, desde os "jovens
turcos" do MBL e ROL posando para fotos com Cunha, até pilares da
lei como Moro e Dallagnol (que também é evangélico)
encontrando-se com políticos do PSDB e lobistas pró-impeachment,
sem contar também com a imprensa atacando virulentamente o PT e o
Planalto com novas denúncias diárias. Ou Dilma havia ilegalmente
legado um déficit nas contas do Estado para seguir sendo reeleita, ou
ela havia permitido grandes injeções de verbas ilegais para
financiar sua campanha eleitoral
ou ambos em qualquer caso,
material suficiente para acelerar o processo de retirada dela da
presidência enquanto afronta a probidade pública. Naquele momento,
cerca de 80% da população queria que ela fosse embora.
Nesse meio tempo, uma bomba explodiu. Em meados de outubro, as autoridades
suíças notificaram o Procurador Geral da República em
Brasília de que Cunha tinha nada mais do que quatro contas secretas na
Suíça e outra logo em seguida foi descoberta nos Estados
Unidos uma delas no nome de sua esposa, outra no nome de uma companhia
empresa-fantasma em Cingapura que recebia direto de outra empresa-fantasma da
Nova Zelândia. O valor total era de 16 milhões de Dólares,
ou trinta e sete vezes mais a riqueza que ele havia declarado no Brasil.
À disposição do casal também havia duas companhias
locais e, desafiando o escárnio, uma delas se chamava Jesus.com
além de uma frota de nove limusines e caminhonetes no Rio de
Janeiro. As evidências de que ele acumulava propinas da Petrobrás
começaram a se acumular. Mesmo para a mais obediente imprensa isso era
demais. No Congresso, uma comédia às avessas tinha início.
Segundo a Constituição Brasileira, o Presidente da Câmara
possui o poder solene de dar início à moção de
impeachment presidencial. Por meses o PSDB ficou cortejando Cunha,
conferenciando com ele em conclaves íntimos sobre as táticas e o
momento do processo. A revelação da sua caixa-forte na
Suíça, com muito mais evidências do que aquelas que
caíam sobre Dilma, tornou-se um profundo constrangimento para o partido.
O que deveria ser feito? Cunha ainda controlava as chaves para o impeachment,
que se fosse bem-sucedido poderia até mesmo anular as
eleições de 2014 e garantir, assim, a vitória de Neves. O
partido então se silenciou sobre as ondas que vinham de Berna, no que
vale mencionar que o próprio Cunha ainda não havia se pronunciado
e era tomado como inocente até que se provasse o contrário. Mas
seus apoiadores na mídia não conseguiram conter os
questionamentos: como pode o partido da moralidade dar cobertura para tamanha
criminalidade? Diante do clamor, o PSDB foi forçado a bater em retirada
e tirar o apoio ao Presidente da Câmara um pequeno partido
socialista independente, a essa altura do jogo, havia entrado com recurso para
tirar Cunha da Câmara
[3]
. Ao perceber que o PSDB deixara de lhe dar apoio, Cunha rapidamente fez um
jogo de dupla-face. Negociando a portas fechadas, ele ofereceu trancar o
impeachment de Dilma se o PT o protegesse das tentativas de
anulação de seu mandato e expulsão do Congresso. E isso
rapidamente aconteceu. Os ministros do PT, tanto desavergonhados quanto os
políticos do PSDB, concordaram em auxiliá-lo a manter-se no
cargo, desde que ele não fizesse nenhum movimento contra Dilma. Esse
surreal carrossel foi demais para as bases do partido que estavam afastadas do
Congresso e o acordo teve de ser cancelado. Por um breve momento, pareceu que a
posição de Cunha era insustentável e a causa do
impeachment estava tão desgastada pela sua exposição que
havia, portanto, quase nenhuma chance de ela passar.
Nos bastidores, contudo, o principal repositório das esperanças
de acabar com o PT não tinha desistido. Desde o início da crise,
FHC tornou-se onipresente na mídia sua imagem estava em toda
parte, numa enxurrada de entrevistas, artigos, discursos, diários.
Bastante estimado pelos barões da mídia e seus lacaios, sua
renovada proeminência era fruto de um cálculo político mais
imediato de ambas as partes. Apresentado como o estadista ancião da
República, a cuja sabedoria se deve a estabilidade atingida, editores e
jornalistas esforçaram-se para construí-lo como um pensador de
renome internacional, a voz da sanidade e da responsabilidade diante das
mazelas do país, inclusive com a imprensa e a academia anglófona
cotejando-o, engolindo todo esse coro de sicofantia. A razão para toda
essa apoteose é bastante simples: a presidência de Cardoso
administrou ao Brasil uma generosa dose de administração
pró-mercado, um remédio que parecia ser mais urgente do que nunca
diante do escárnio populista do PT. O próprio Cardoso, que quando
presidente lamentou a "enorme dificuldade" de que "o Brasil
não gostava do sistema capitalista", estava tranquilo em exercer
esse papel. Mas ele também tinha uma questão pessoal no meio de
todos esses holofotes. Quando ele saiu da presidência, seu índice
de aprovação não era muito mais alto do que o de Dilma
hoje, e por oito anos ele sofreu uma dura comparação com Lula, um
presidente muito mais popular que repudiou seu legado e transformou o
país de forma decisiva, assegurando ao PT mandatos que duraram o dobro
do seu.
Isso foi algo duro de suportar. Será que a aura do pensador poderia
suportar a perda de seu prestígio como governantes? Objetivamente, o
segundo mandato foi e isso é bastante normal menos popular
do que o primeiro. Na busca pela presidência, Cardoso sacrificou
não apenas suas antigas convicções, que inclusive eram
marxistas e socialistas, mas com o tempo até mesmo seus padrões
intelectuais. A banalidade dessa mudança chega a ser disparatada
bromas elogiosas para os efeitos da globalização e ansiedade com
seus efeitos colaterais. Em raras ocasiões ele acabava sendo sincero:
"Eu devo admitir que, ainda que meu lado intelectual seja forte, eu sou
basicamente um
Homo politicus
", disse ele certa vez. Mas subjetivamente, a vaidade atingida pelo
apelo político grandioso de um ex-operário sem
educação formal não permite que pretensões
mais cerebrais sejam colocadas de lado. Tingido pelo verde e amarelo da
Academia Brasileira de Letras, uma cópia tropical da versão
original e pomposa dos franceses com uma espada a seu lado, ele declarou
que o sociólogo e o presidente nunca divergiram, demonstrando uma
carreira coerente e uma administração criativa, inteiramente em
sintonia uma com a outra.
Por anos ele teve motivos para reclamar que, enquanto oposição, o
próprio PSDB foi insuficientemente leal à memória de seu
líder máximo, evitando qualquer defesa mais vigorosa de sua
modernização nacional e seu corajoso programa de
privatizações. Agora, contudo, diante da crise do 'lulopetismo'
seu uso mais desdenhoso, implicando algo ainda focado nas bases, mais
demagógico do que o mero suporte petista, ou 'petismo' fica claro
o quão certo Cardoso esteve todo esse tempo. Se houve algo de bom
durante o governo do PT, isso se deve à herança deixada por FHC.
Se houve algo desastroso e terrível, então a culpa não
é dele, pois havia alertado a todos o que aconteceria. Era tempo de
erguer novamente as bandeiras de 1994 e 1998, sem qualquer
inibição, colocando assim um fim ao desgoverno do PT. Ainda que
ele mesmo não tivesse evocado o impeachment, ele o reconhecia como um
processo legítimo, desde que tivesse base legal para isso. E ainda que
não tivesse, Dilma ainda poderia ser removida politicamente. Mas
e aqui os cálculos de Cardoso mostram-se diferentes daqueles feitos pela
nova geração de políticos do PSDB no Congresso, ansiosos
para tomar o poder rapidamente era melhor esperar pelo
Judiciário, que poderia ser tido como um instrumento para que a
Justiça Política fosse cumprida.
Essa confiança vinha das íntimas conexões entre os
juízes mais veteranos e estava longe de estar errada. Indicado para
presidir o caso contra Dilma no Supremo Tribunal Eleitoral estava Gilmar
Mendes, um parceiro próximo indicado pelo próprio Cardoso para o
Supremo Tribunal Federal, ocupando este lugar até os dias de hoje
e que nunca fez nenhum segredo sobre o seu desgosto para com o PT. Mas Dilma
era o alvo menos importante. Para FHC, o alvo crucial a ser destruído
era Lula e não apenas por questão de vingança, embora isso
tenha sido muito saboreado no âmbito privado, mas porque havia risco,
dada sua antiga popularidade, de que ele voltasse em 2018 supondo que
Dilma sobrevivesse até então, algo que assustava o PSDB e seu
programa de orientar o país novamente para uma
modernização responsável. E tão logo as deixas de
Cardoso começaram a encontrar eco, uma série de vazamentos feitos
pela força tarefa da Lava Jato passaram a aparecer na imprensa,
implicando Lula em dúbias transações financeiras de tipo
pessoal: viagens em jatos empresariais, palestras remuneradas por empreiteiras,
apartamentos confortáveis, melhorias num sítio, sem falar nos
ganhos obscuros de um de seus filhos. Logo em seguida veio a apreensão
de um amigo milionário fazendeiro, acusado de repassar as
retribuições de um contrato da Petrobrás para o tesoureiro
do PT. Aparentemente, a rede estava se fechando sobre ele.
Rapidamente, durante a primeira semana de março, uma força-tarefa
da Polícia Federal chegou na porta da casa de Lula às seis da
manhã, levando-o sob custódia para ser interrogado no aeroporto
de São Paulo. A imprensa, informada de antemão, estava esperando
do lado de fora para invadir com suas câmeras, esperando obter o
máximo de publicidade. O pretexto para todo esse show é de que se
Lula fosse convidado a dar esclarecimentos, ele poderia ter se recusado. Na
semana seguinte, a maior manifestação no Brasil após a
Ditadura de acordo com a polícia, com 3,7 milhões de
pessoas nas ruas clamou por justiça contra Lula e impeachment
para Dilma. Três dias depois, Dilma apontou Lula como 'chefe da Casa
Civil' de seu governo algo equivalente a um Primeiro Ministro. Como
ministro, Lula teria imunidade perante as acusações de Moro em
Curitiba, possibilitando que ele, assim como os demais membros do governo,
respondesse somente ao Supremo Tribunal. Moro não perdeu tempo. Na mesma
tarde, ele publicou as gravações de uma conversa telefônica
entre Lula e Dilma, na qual ela disse a ele que mandaria os papéis
necessários para que ele assinasse e assumisse, "se
necessário". Sua fala foi ambígua. Mas o escândalo
midiático foi ensurdecedor: aqui, apanhada com a boca na botija, estava
uma manobra para fugir da Justiça e salvar Lula, deixando-o longe do
alcance da lei. Dentro de 24 horas, um juiz em Brasília impediu a
nomeação um juiz que, como se soube mais tarde, havia
postado imagens nas redes sociais de quando ele estava nas
manifestações pelo impeachment, ostentando alegremente uma
camiseta do PSDB. Mas esse juiz rapidamente foi apoiado por Gilmar Mendes e,
naquela mesma noite, o PMDB anunciou que estava saindo do governo, no qual ele
controlava a vice-presidência e outros seis ministérios,
pavimentando o caminho para uma rápida deposição de Dilma
no Congresso.
Nessa dramática escalada da crise política, o protagonista
central era o Judiciário. A noção de que a
operação de Moro estava agindo de forma imparcial em Curitiba,
inicialmente defensável, acabou sendo prejudicada com a cobertura
gratuita e espetaculosa da imprensa sobre a condução coercitiva
de Lula, o que acabou ainda sendo seguida por uma mensagem pública
saudando as manifestações a favor do impeachment: "o Brasil
está nas ruas", anunciou o juiz. "Sinto-me tocado".
Contudo, ao publicar as gravações da conversa entre Lula e Dilma,
horas depois do grampo ter sido anulado pela Justiça, ele violou a lei
duas vezes: violou o sigilo das interceptações, ainda que fosse
permitido o grampo, e sem falar também no princípio da
confidencialidade que supostamente protegia as comunicações da
chefe do Executivo. Ficou tão evidente que essas coisas eram
ilegalidades que logo Moro foi repreendido pelo juiz do Supremo
responsável por Moro, mas sem qualquer sanção efetiva.
Ainda que "inapropriado", seu superior notou delicadamente que a
ação do juiz havia atingido seu objetivo.
Na maioria das democracias contemporâneas, a separação dos
poderes é uma ficção bem-educada, com os Supremos
Tribunais no que o caso americano é uma importante
exceção curvando-se perante os governos. Os
contorcionismos do Tribunal Constitucional Alemão geralmente
visto como exemplo de independência judicial ao sustentar as
violações do país tanto no
Grundgesetz
e no Tratado de Maastricht e favorecer os diferentes regimes de Berlim pode ser
visto como uma norma geral. No Brasil, a politização do
Judiciário é uma tradição longínqua. A
figura inverosímil de Gilmar Mendes é talvez um caso extremo,
ainda que seja revelador. Como presidente, Fernando Henrique Cardoso defendeu
seu amigo de acusações criminais ao lhe promover como Ministro
antes de elevá-lo ao STF e Mendes agora se volta contra Dilma por
ela fazer o mesmo com Lula. Ao colocá-lo no posto e tentando evitar
chamar atenção, FHC entrava pelo prédio sorrateiramente
pelo edifício da garagem, encontrando Mendes no estacionamento. Bastante
militante em relação ao PSDB 'tucano demais', considerando
que a ave é o símbolo do partido até mesmo para
Eliane Catanhêde, uma respeitável jornalista de direita, Mendes
geralmente era visto almoçando com proeminentes líderes do
partido após ter sido absolvido das acusações e o juiz
não hesitou em utilizar dinheiro público para 'alistar' seus
subordinados a partir de uma escola privada de advocacia que ele possui, algo
feito enquanto ele já era juiz no maior tribunal da nação.
Seus ataques contra o PT são constantes.
Sergio Moro, por sua vez, é de uma geração mais jovem e
vinho de outra pipa. Os Estados Unidos, país que ele visita com
regularidade, é sua principal referência. Um sujeito trabalhador e
provinciano, ele considera que nada deve aos sistemas de patronagem e
compadrio. Mas vale destacar que, quando Moro tinha pouco mais de 30 anos, ele
demonstrou também sua indiferença com os princípios
básicos das leis e das regras num artigo exaltando o exemplo dos
magistrados italianos nos anos 1990, "Considerações sobre a
Operação Mani Pulite", nos termos que antecipariam seus
procedimentos uma década depois. Recusando-se a pesquisar na literatura
mais extensiva sobre a
Tagentopoli
, ele utilizou somente duas eulogias feitas pela equipe de Milão e que
foram traduzidos para o inglês, citados sem qualquer dose de
reflexão crítica, inclusive confiando no depoimento de um chefe
da máfia que vivia com um salário do Estado enquanto delator,
ainda que ele tenha sido rejeitado pela corte. A presunção da
inocência não poderia ser tida como 'absoluta', tal como ele
declarara: ela era apenas um 'instrumento pragmático' que poderia ser
desfeita de acordo com a vontade do magistrado. Ele celebrou os vazamentos
seletivos para a mídia como forma de 'pressão sobre os acusados',
usados quando 'os meios legítimos não podem ser atingidos por
outros métodos'.
O perigo de ter um Judiciário atuando nesse espírito é o
mesmo no Brasil do que foi na Itália: uma campanha absolutamente
necessária contra a corrupção se torna tão
infectada com o desdém pelo devido processo, com um conluio tão
inescrupuloso com a mídia, que ao invés de instalar qualquer nova
ética de legalidade, ela acaba confirmando o longo desrespeito social
pela lei. Berlusconi e seus herdeiros são a prova viva disso. Todavia, a
cena no Brasil difere da situação na Itália por dois
aspectos. Não há nem Berlusconi ou Rinzi no horizonte brasileiro.
Moro, cuja celebridade agora excede qualquer um dos seus modelos italianos, sem
dúvida está sendo solicitado para suprir o vazio político,
caso a Lava Jato faça de fato uma limpeza sobre a velha ordem. Mas o
medíocre destino de Antonio di Pietro, o mais popular dos magistrados de
Milão, pode ser lido como um aviso para Moro, por mais puritana que seja
a sua aparência, evitar a tentação de envolver-se na
política. O espaço para uma ascensão meteórica
também tende a ser menor, pois há uma diferença crucial
entre as duas cruzadas contra a corrupção. O assalto feito pela
Tagentopoli
foi direcionado contra os principais partidos do país, a Democracia
Cristã e o Partido Socialista, que estiveram no poder durante trinta
anos. A Lava Jato, por sua vez, não parece estar focada nos partidos
tradicionais do poder político no Brasil que, diga-se de passagem,
estão bastante divididos, mas sim nos sistemas que possibilitaram que
eles chegassem lá. Nesse ponto, ela parece mirar somente num alvo e,
sendo assim, mais manipuladora.
Tal manipulação pode ser acentuada naquilo que se considera como
a segunda diferença entre a Itália dos anos 1990 e o Brasil de
hoje. Quando a
Tagentopoli
atingiu o sistema político, a mídia italiana formou um
cenário homogêneo. Jornais independentes passaram a apoiar o
Judiciário de Milão em toda parte. O chefe do conglomerado
midiático do
Olivetti
, De Benedetti, cujo jornal recebeu a maior parte dos vazamentos, acusou
duramente os democratas cristãos e socialistas ao mesmo tempo em que
ficou quieto sobre as implicações em outros partidos. O
império de jornais e televisão de Berlusconi enalteceu e instigou
os magistrados. E o resultado foi que, com o passar do tempo, havia ainda mais
questionamentos sobre as ações de diferentes esferas do
Judiciário muitas delas bastante corajosas, enquanto outras eram
mais dúbias do que no Brasil. Ali a mídia tem sido
bastante monolítica e partidária em sua hostilidade anti-PT e
nada crítica quanto à estratégia de vazamentos e
pressões vindas de Curitiba, do qual a imprensa age como sua porta-voz.
O Brasil possui alguns dos melhores jornalistas do mundo, cujos textos vem
analisando a atual crise num nível intelectual e literário que
vai além do que fazem o
Guardian
ou o
New York Times
. Mas tais vozes são sufocadas por uma enorme floresta de conformistas
que nada mais fazem do que ecoar as visões de patrocinadores e editores.
Comparar a cobertura da mídia sobre qualquer vazamento que prejudique o
PT com o tratamento dado às informações ou rumores que
afetam a oposição é uma forma de medir a extensão
da sua política de dois pesos e duas medidas. Enquanto a Lava Jato
estava se desenrolando, veio à tona um pujante exemplo. Em 1989, num dos
mais famosos momentos decisivos da história moderna brasileira, Lula
que na época era visto como um perigoso radical pelas elites
estava perto de assegurar uma vitória em sua primeira corrida
presidencial, quando dias antes da eleição, uma ex-namorada sua
apareceu na televisão em nome de Collor, paga pelo próprio
irmão de Collor, acusando Lula de querer que ela abortasse de um filho
de ambos. Aquele momento, amplificado até o limite pela mídia,
foi fundamental na sua derrota eleitoral. Dois anos depois, Cardoso na
época um proeminente senador do PSDB, já cotado como futuro
candidato à presidência ficou conhecido no meio
político por ter uma amante trabalhando na mesma rede de
televisão que prejudicou a campanha de Lula, a TV Globo. Quando ela teve
um filho do ex-senador, ela saiu do país e foi mandada para Portugal. Em
meados de 1994, depois de ter sido ministro da Fazenda, Cardoso estava
disputando a presidência e o trabalho dela passou a ser somente nominal,
ainda que a Globo seguisse pagando seu salário. Tão logo FHC foi
eleito, seu braço direito, o jovem Magalhães, instruiu-a a
não retornar para o Brasil por medo de comprometer sua
reeleição. Quando a Globo a tirou da folha de pagamento, um
trabalho ficcional foi feito para ela, fazendo pesquisas de mercado na Europa
para uma cadeia de lojas
duty-free
que recebera do próprio FHC direitos monopolísticos nos
aeroportos brasileiros. Por meio dessa firma, ela teria lavado cerca de cem mil
dólares via uma conta bancária nas Ilhas Cayman teria sido
pensão alimentícia ou suborno para ficar calada? A
história veio à tona em fevereiro, em meio ao furacão das
denúncias sobre as reformas no sítio de Lula. A mídia fez
de tudo para que isso recebesse o mínimo possível de cobertura. A
firma agora está sob investigação por
transação criminosa. Cardoso protege sua inocência. E
ninguém espera que ele sofra qualquer inconveniência.
Será que isso pode ser generalizado para toda a oposição?
Moro lançou seus grampos [escutas telefónicas]
incendiários no dia 16 de março. Uma semana depois, a
polícia de São Paulo invadiu a casa de um dos executivos da
Odebrecht, a maior empreiteira da América Latina, cujo diretor
recém havia sido sentenciado por 19 anos pelo crime de suborno. Na casa
os policiais encontraram uma lista com 316 políticos com quantias de
dinheiro ligadas aos seus nomes. Estavam inclusas figuras tradicionais do PSDB,
do PMDB e de vários outros partidos um verdadeiro panorama da
classe política brasileira. Objetivamente falando, essa lista produzia
muito mais barulho do que a conversa entre Lula e Dilma. Mas era um barulho
menos conveniente: diretamente de Curitiba, Moro rapidamente tomou uma
posição contrária, ordenando que as listas fossem
colocadas sob sigilo para impedir qualquer especulação. Ainda
assim, o alarme havia soado: a Lava Jato poderia sair do controle. Se Dilma
tinha que cair, era preciso fazê-lo antes que as listas da Odebrecht
pudessem ameaçar seus próprios acusadores. Poucos dias depois, o
PMDB anunciara que abandonava o governo e começaria uma contagem de
votos a favor do impeachment. Os 3/5 de votos necessários na
Câmara dos Deputados, algo que parecia muito difícil de atingir no
início das discussões, agora estava mais perto do alcance. A
opinião pública passou a perceber a farsa de um Congresso cheio
de ladrões, tendo Cunha à sua frente, solenemente derrubando uma
presidente por crime de responsabilidade fiscal.
Quais são as chances de Dilma resistir a esse desfecho e as perspectivas
caso o impeachment não aconteça? As esperanças do Planalto
residem em duas contingências: de que com suficiente apoio no Congresso
se possa bloquear o impeachment, oferecendo assim mais ministérios e
cargos para partidos menores que não conseguiriam acesso ao governo
antes, visando com isso reverter a saída do PMDB; e a outra, de que com
muitas manifestações em defesa do governo possam desestimular as
grandes manifestações feitas a favor do impeachment. Ambos
objetivos exigem o retorno de Lula para Brasília, de onde ele poderia
ainda que lhe seja negado o direito de ocupar formalmente o
ministério informalmente cumprir ambas tarefas que lhe foram
atribuídas, ou seja, de aproximar-se de deputados relutantes para o
campo governista e de estimular o apoio popular vindo das ruas. Mas o
cenário está mudando e isso tudo parece cada vez mais distante.
As relações entre Lula e Dilma se fragilizaram desde que ela
optou pela austeridade após sua reeleição. Culpando-a pela
falta de habilidade política e pela sua recusa em aceitar conselhos,
Lula falaria, no âmbito privado, que "ela foi minha Chefe da Casa
Civil e ela ainda age como uma, e não como uma presidente", ou
então que "ela é como se fosse a minha filha, que sempre diz
pra mim que me ama, mas nunca presta atenção no que eu falo pra
ela". Mas é duvidoso se faria alguma diferença a
flexibilidade tática, ainda que importante, diante das dificuldades
enfrentadas por ela. Desde o início, sua segunda presidência foi
apanhada em um círculo vicioso de escândalos políticos e
indicadores econômicos deteriorados, cuja interação forma
um obstáculo nada fácil de superar para recuperar sua autoridade.
O problema da Petrobrás, com inúmeras delações, vem
gerando demissões em massa de trabalhadores; o mesmo vem acontecendo com
as empreiteiras cujos diretores e executivos estão na cadeia. A
incerteza sobre onde soprará a Lava Jato tem feito os investidores mais
temerosos e deixado o mercado financeiro assustado: em novembro, o chefe do
fundo bilionário BTG-Pactual, o maior banco de investimento do
continente, a menina dos olhos do
Financial Times
e do
Economist
, foi levado algemado para a delegacia. No Congresso, o corte de gastos
neoliberal e o aumento tributário proposto pelo governo foi derrubado
pelo próprio neoliberal PSDB, buscando criar todo um constrangimento
político: o orçamento de 2016 sequer foi aprovado. Mesmo que um
virtuoso trabalho de base feito nos corredores do poder possa conseguir colocar
temporariamente o impeachment em xeque, ele não conseguiria resolver o
temível impasse do atual governo.
A mobilização popular para impedir a saída de Dilma, da
forma como está pensada, também tem problemas. Mas isso
está conectado diretamente aos legados dos governos do PT. O partido
está numa frágil posição para convocar seus
beneficiários para defende-lo por pelo menos três razões. A
primeira é simplesmente porque se a corrupção fez com que
a classe média perdesse a simpatia que o partido antes desfrutou, a
austeridade alienou a base de classes populares que tinham conquistado. As
manifestações feitas para impedir o impeachment foram, até
agora, muito menos impressionantes do que aquelas feitas por aqueles que querem
que ele aconteça. Os manifestantes têm sido arregimentados
principalmente entre funcionários públicos e sindicatos: os
pobres ainda não têm comparecido nessas
manifestações. A força rural do Nordeste onde o PT se
consolidou estão ainda socialmente dispersos, enquanto as grandes
cidades do Sul e Sudeste são as fortalezas da nova direita no momento.
Há também a inevitável desmoralização do
partido conforme sucessivos escândalos surgem com o seu nome, criando um
sentido de culpa coletiva difusa, ainda que não explícita, mas
que enfraquece qualquer espírito de luta. E por fim, mas
fundamentalmente, na época que Lula chegou ao poder, o partido tornou-se
uma máquina eleitoral, financiada principalmente por
doações de grandes corporações, ao invés de
como ele era em seu início pelas doações de
membros e simpatizantes, com eles inclusive aderindo passivamente ao nome de
seu líder, sem qualquer vontade de construir uma ação
coletiva com os eleitores. A mobilização ativa que fez o PT ser
uma força nas regiões urbanas e industriais do Brasil tornou-se
uma memória distante conforme o partido passou a ganhar força em
regiões sem indústrias, enraizadas numa tradição de
submissão à autoridade e medo da desordem. Isso foi uma cultura
política entendida por Lula e que ele não fez nenhuma tentativa
séria de termina-la. Segundo sua própria visão, ele
considerava que mudar isso teria um custo potencial alto demais. Para ajudar as
massas ele buscou harmonia com as elites, para as quais qualquer
polarização vigorosa era um tabu. Em 2002 ele finalmente ganhou a
presidência, na sua quarta tentativa, com um slogan de "paz e
amor". Em 2016, diante de um linchamento político, ele ainda seguiu
falando essas palavras para uma multidão que esperava por algo mais
combativo.
Tal descompasso entre partir para o ataque e o discurso de responsabilidade
é uma marca comum de um padrão que, desde a virada do
século, vem distinguindo a política do Brasil em
relação à América Latina. O país não
é o único que viu um conflito de classes se tornar uma crise. Mas
em nenhum lugar isso foi tão unilateral como no Brasil. Mesmo quando
Lula estava no auge de seu prestígio enquanto estava na
presidência, sempre houve uma assimetria entre as políticas
moderadas e comodistas do PT e a hostilidade de uma classe média
enragé
e da mídia contra ele. Nos últimos dezoito meses, essa
expressão de abominação unilateral se tornou ainda mais
violenta. Um vereador do PMDB no interior de São Paulo falou
publicamente que Lula deveria ser morto como uma cobra, tendo que pisar em sua
cabeça.
[4]
No Rio Grande do Sul, no Sul do país, uma pediatra se recusou a atender
uma criança de um ano porque a mãe era uma 'petista', e foi
absolvida de infração ética pelo Conselho Regional de
Medicina e pela Associação de Médicos. O juiz do Supremo
Tribunal, Teori Zavascki, responsável por ter repreendido Moro, foi
presenteado com uma série de faixas e cartazes que o chamavam de
"traidor" e "pilantra do PT", enquanto manifestantes
cantavam sua canção símbolo que fala que o
"capitalismo veio pra ficar". Conforme aproxima-se do Dia D do
impeachment, os militantes fanáticos vêm recebendo
endereços de deputados indecisos ao redor do país e
intimidando-os, acampando em frente de suas casas. Meticulosamente deve-se
dizer que o mercado de ações vem mantendo um ritmo: ele subiu
quando Lula foi preso, caiu quando ele foi feito ministro e subindo novamente
quando a sua posse foi impedida.
Um golpe teatral (um
coup de théâtre
) ainda é possível, com uma virada de eventos salvando Dilma no
último minuto
[NR]
, mesmo que não pareça que isso irá acontecer. A maior
probabilidade é de que se forme um regime liderado pelo vice-presidente
que a abandonou, o veterano sepulcral do PMDB comparado com o mordomo de
um filme de terror Michel Temer. De fala mansa e cerimonioso, ele
preparou o caminho alguns meses atrás, criando um programa para deixar
claro que o país estaria seguro assim que ele assumisse. Seu pacote
trata-se de um plano de estabilização convencional, agilizando
privatizações, reforma da previdência e abolindo os gastos
mandatórios constitucionais em saúde e educação,
acompanhados de promessas de cuidar dos menos afortunados. Se Dilma sofrer o
impeachment, tendo uma maioria de 3/5 do Congresso lhe apoiando, Temer
não teria nenhum problema em formar um governo de coalizão junto
com PMDB, PSDB e uma grande quantidade de partidos nanicos, colocando uma
pitada de tecnocratas em ministérios centrais. Já que tal
combinação poderia passar uma série de leis, às
quais Dilma não pode, e isso garantiria o retorno da confiança do
mercado, isso certamente traria melhorias aos indicadores econômicos
feitos pelos mercados financeiros, não importa o quanto isso custaria
aos pobres. Mas dada a conjuntura global adversa e a teimosa baixa taxa de
investimentos que persiste no Brasil desde o fim da Ditadura, é
difícil ver qualquer alívio para o país num horizonte
futuro.
Politicamente também a estabilidade não estaria garantida. Uma
questão óbvia que surge é se será que o choque do
impeachment irá sufocar o que resta do espírito de luta daqueles
que apoiam Dilma, ou o contrário, ou seja, que isso provoque uma
resistência ainda mais feroz contra as elites do país. Ambas
alternativas não são fáceis para a fileira dos vitoriosos
se eles de fato conseguirem o impeachment da presidenta. Um juiz do
Supremo Tribunal Federal ordenou que Cunha também colocasse em
votação o impeachment de Temer, usando da mesma referência
legal do impeachment da Dilma, já que quando ela estava fora do
país, ele também assinou os decretos de responsabilidade fiscal
que são atribuídos a ela algo que pegaria desprevenido
aqueles que querem derrubá-la e esperam instalar Temer como presidente
rapidamente. Caso esse ataque seja evitado, outro curioso problema se avizinha.
Ainda está pendente no Supremo Tribunal Eleitoral uma
acusação de que a campanha de 2014 de Dilma e Temer violaram o
regulamento eleitoral, uma acusação trazida pelo PSDB quando
ainda esperava forçar uma situação de novas
eleições. Se levada adiante, a ação derrubaria
ambos. O processo não pode mais ser retirado e seria um constrangimento
se o impeachment de Dilma fosse concretizado e Temer tomasse o poder. Mas desde
que Gilmar Mendes se torne presidente do Supremo em maio, a Justiça
brasileira provavelmente superará essa questão sem dificuldade.
Mas, claro, uma interrogação maior surge sobre qual o impacto
subsequente que a Lava Jato poderia ter sobre os deputados
pró-impeachment. Acelerar o procedimento do impeachment serviu para
desviar os olhares da opinião pública sobre a lista da Odebrecht.
Mas essas listas podem ser apagadas da consciência da
população após o impeachment? Dentro de suas fileiras,
toda a classe política está em risco. Será que a
Justiça brasileira também poderia minimizar essa dificuldade, nos
interesses, digamos, de uma reconciliação nacional?
Que o Partido dos Trabalhadores tenha se juntado, por uma
transformação ocorrida internamente, às deformadas
fileiras do resto da fauna política brasileira PMDB, PSDB, PP e o
restante da corja não pode ser negado. Até agora, dois
presidentes do partido, dois tesoureiros, um presidente e um vice-presidente da
Câmara dos Deputados e o líder do partido no Senado foram todos
presos, afundados na lama da corrupção que desconhece fronteiras
políticas. De forma emblemática, o último dos
notáveis e com a delação mais volumosa, o senador
Delcídio do Amaral era um refugiado do PSDB, uma importante engrenagem
do partido de FHC nas operações da Petrobrás. Mais da
metade do Congresso está na lista de pagamento das empreiteiras, cujas
doações financiam suas campanhas eleitorais. A
degradação do sistema político se tornou tão
evidente que no outono passado o STF que está longe de ser algum
tipo de areópago da integridade imparcial finalmente decidiu que
o financiamento privado de campanha era matéria inconstitucional e
proibiu as empresas de doarem para as campanhas. O Congresso imediatamente
reagiu com emendas constitucionais para permitir as doações, mas
o assunto segue congelado na Câmara. Se confirmada a decisão do
Supremo sem ser driblada, a decisão permitirá uma espécie
de revolução no funcionamento da democracia brasileira: a
única coisa inequivocamente positiva em meio a toda essa crise.
O Partido dos Trabalhadores acreditou, durante determinado período, que
ele poderia se valer da ordem institucional brasileira para beneficiar os
pobres sem prejudicar os ricos e até mesmo contando com a ajuda
deles. E de fato houve benefícios aos pobres, tal como eles se
propuseram. Mas uma vez aceito o preço de entrar num sistema
político moribundo, a porta para voltarem atrás fechou-se. O
próprio partido passou a definhar, tornando-se um enclave do Estado, sem
qualquer autocrítica ou direção estratégica,
tão cego que chegou a ostracizar André Singer, seu melhor
pensador, para colocar uma mistura de marqueteiros e relações
públicas, tornando-se tão insensíveis que passaram a
conceber o lucro, não importa de onde viesse, como
condição para o poder político. Suas conquistas ainda
permanecerão. Mas se o partido terá o mesmo destino, isso
é uma questão em aberto. Na América do Sul, um ciclo
está chegando ao fim. Por uma década e meia, sem a pressão
direta dos Estados Unidos, fortalecidos pelo
boom
das
commodities,
e amparando-se em grandes reservas de tradição popular, o
continente foi a única parte do mundo em que movimentos sociais rebeldes
coexistiram com governos heterodoxos. No despertar de 2008, há agora
cada vez mais desses movimentos. Mas não há mais nenhum desses
governos. Uma exceção global está chegando ao seu fim e
sem nenhum sinal de mudança positiva no horizonte.
16/Abril/2016
NT
[1]
André Singer escreveu a principal análise sobre esse conjunto de
medidas e seu desenrolar no artigo 'Cutucando onças com varas curtas'
(Novos Estudos 102, jul. de 2015), um ensaio que pode ser lido como um
epílogo de seu estudo sobre a trajetória do PT,
Os sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador
(2012), que investiga a mudança do seu eleitorado após 2005,
conforme ele perdera o apoio das classes médias e passou a ganhar a
confiança dos pobres, que antigamente, com medo de desordem, votavam
contra o partido. Numa combinação de sobriedade crítica e
lealdade ao PT, Singer é talvez seu mais preparado intelectual e
talvez possa se argumentar que seja o mais impressionante pensador social de
sua geração na América Latina. Secretário de
comunicação de Lula durante o primeiro mandato, desde que ele se
tornou professor universitário acabou sendo mentalmente descartado pelo
PT, que não demonstrara nenhum interesse sobre o seu trabalho.
[2]
Perry Anderson refere-se aqui ao ensaio de Francisco de Oliveira, "O
Ornitorrinco", que envolveu uma reatualização de seu ensaio
"Crítica à razão dualista".
[3]
O autor refere-se aqui ao pedido do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
[4]
Perry Anderson refere-se aqui ao caso do vereador de Araraquara, Roberval
Fraiz.
[NR] Este artigo foi escrito antes da votação do impeachment na
câmara baixa do parlamento. Resistir.info publica-o devido aos elementos
informativos que contém, mas isso não significa endosso
à totalidade da sua análise.
O original encontra-se em
www.lrb.co.uk/v38/n08/perry-anderson/crisis-in-brazil
e a tradução de Fernando Pureza em
http://blogjunho.com.br/crise-no-brasil/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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