por Ruben Bauer Naveira
[*]
Qual seria o impacto do anúncio de Putin das novas armas da
Rússia sobre o Brasil?
Esse impacto será grande, uma vez que o nosso país se encontra,
mais do que nunca, atrelado aos Estados Unidos.
Ao contrário dos golpes de 1964/1969, quando os militares tiveram um
projeto para governar o Brasil, o golpe de 2016 pode ser descrito como
anômico (um caos). O "projeto" dos golpistas pode ser reduzido
a duas premissas:
Manter-se no poder, evitando a qualquer custo que a esquerda volte; e
Cada grupo que se desenrasque como puder, para fazer valer os seus
interesses.
Afora isso, é notável a identificação dos golpistas
para com os interesses norte-americanos:
Foi decepado um dos cinco ramos dos BRICS (Brasil, Rússia,
Índia, China e África do Sul), enfraquecendo essa aliança
alternativa ao capitalismo hegemônico encabeçado pelos Estados
Unidos;
Foi abortado um projeto de soberania para o Brasil (lembrando que a
América Latina foi sempre um "quintal" para os Estados Unidos,
com países desprovidos de verdadeira soberania), que era para ter sido
alcançado por meio das riquezas do pré-sal, com desenvolvimento
industrial robusto, evolução das finanças públicas,
projeção geopolítica do país e
educação da população com base nos royalties. Em
vez de tudo isso, as riquezas do pré-sal vão sendo entregues a
preço irrisório às grandes corporações
multinacionais do petróleo;
Outros setores estratégicos da economia (empreiteiras, carnes
etc.), até então capazes de competir internacionalmente (como a
Embraer, que está sendo repassada à Boeing), vão sendo
desmantelados;
Projetos estratégicos para as Forças Armadas vão
sendo ou inviabilizados (submarino nuclear) ou repassados ao controle americano
(base de Alcântara). O exagero da pena de 43 anos de prisão a que
foi submetido o almirante Othon Pinheiro, pai do programa nuclear militar
brasileiro, traz a marca da ingerência americana, para que "sirva de
exemplo" ao restante do generalato;
Privatização selvagem dos ativos públicos, a
cartilha neoliberal seguida ao pé da letra;
Recursos naturais afora o petróleo, como a água doce
(aquíferos Guarani e Alter do Chão) e minerais
estratégicos, são ofertados à exploração
estrangeira;
Há uma identificação cultural profunda da classe
dominante brasileira (recuso-me a chamar essa cambada de "elite")
para com os Estados Unidos. Essa gente vai na adolescência a Orlando, na
fase adulta a Miami e na maturidade a Nova York ou à Califórnia,
imbuída de um fervor comparável ao de um muçulmano que vai
à Meca;
Juízes e procuradores à frente da chamada
Operação Lava-Jato tiveram parte significativa da sua
formação acadêmica de pós-graduação
bancada por instituições do governo americano, com vários
deles acabando cooptados pelas agências de inteligência dos EUA
para que viessem a atuar, no âmbito do judiciário brasileiro, como
agentes dos americanos.
Fato é que os golpistas de 2016 se encontram umbilicalmente atados aos
Estados Unidos. Se a longevidade dos Estados Unidos favorece a longevidade do
golpe, uma derrocada dos Estados Unidos significará fatalmente uma
derrocada do golpe.
Os EUA em crise, e sem saída
Os Estados Unidos se encontram em grave crise existencial (e isso mesmo antes
da eleição de Donald Trump). Sua economia foi tornada dependente
de um estado de guerra permanente, algo que evidentemente desagrada os
países atacados, mas desagrada também países que dependem
da paz no seu entorno para se desenvolverem, como Rússia e China.
Além disso, o nível de descolamento em relação aos
fundamentos da economia real em que se encontram hoje as
instituições financeiras americanas está em
situação mais crítica do que estava às
vésperas da grande crise de 2008.
Como se não bastasse, a dívida multitrilionária dos
Estados Unidos (em boa parte devida às guerras) é simplesmente
impagável, e depende da emissão contínua de moeda para
continuar a ser rolada, o que por sua vez depende do resto do mundo necessitar
de dólares, o que por sua vez depende do comércio internacional
no planeta continuar a ser lastreado nesta moeda. Eis que China e Rússia
desembarcam do dólar, especialmente no que diz respeito à
mercadoria à qual o dólar é mais sensível o
petróleo , movimento este que é seguido por outros
países expressivos nesse mercado, como Venezuela e Irã.
A economia americana se tornou uma bomba-relógio, e mais cedo ou mais
tarde ela explodirá.
Quando o Iraque de Saddam Hussein e a Líbia de Muammar Gaddafi pararam
de aceitar dólares pelo seu petróleo, o céu desabou
(literalmente) sobre as suas cabeças. Mas Rússia e China
são potências nucleares. Os EUA simplesmente não
dispõem de meios para impedir que elas desembarquem do dólar
a menos que...
Armando o bote do
first strike
Se você for atirar em um urso, procure matá-lo;
se você apenas o ferir, é ele quem poderá matar
você.
(provérbio russo)
De forma crua, a manutenção do
status quo
dos Estados Unidos (leia-se: a manutenção da "ordem
mundial") requer a subjugação de Rússia e China. Isso
é algo que, a princípio, deveria poder ser alcançado pela
aplicação de
soft power
(tal como feito no Brasil por meio do golpe de 2016). Na Rússia, isso
chegou a ser obtido durante a década de 1990, tendo sido perdido
não apenas pela chegada ao poder do grupo encabeçado por Putin
(do qual faz parte gente sagaz como Vladislav Surkov), mas principalmente pela
acomodação e displicência americanas (postura que entre os
futebolistas brasileiros é conhecida como "já ganhou").
Para os americanos, a constatação de que seu
soft power
fracassara na Rússia caiu definitivamente em 2008, diante da altivez
dos russos no episódio de confrontação militar com a
Geórgia, uma ex-república soviética convertida a aliada
dos EUA. Uma vez não sendo mais exequível a
dominação
soft
, restava somente o recurso ao
hard power
(guerra). Desde então, o garrote americano em torno da Rússia
vem apertando, com os americanos se preparando para estar em
condições de lançar um ataque nuclear do tipo
first strike
(primeiro golpe), supostamente o único capaz de levar à
vitória em uma guerra nuclear.
O
first strike
consiste em um ataque de surpresa maciço, sem qualquer
indicação prévia, que leve ao extermínio da
liderança do inimigo e à destruição fulminante (em
questão de minutos) do seu arsenal nuclear, juntamente com os seus
centros de comando e controle.
Para um
first strike
contra a Rússia são inúteis as centenas de mísseis
Minuteman
nos silos subterrâneos de Montana, North Dakota e Wyoming, porque os
russos detectariam o seu lançamento em tempo para reagir. O mais
poderoso componente da tríade nuclear americana (mísseis
lançados a partir de terra, mar e ar) para um
first strike
são os mísseis
Trident
nos submarinos da classe Ohio que circundam as águas russas (atingem
Moscou em quinze minutos, tempo que para um
first strike
ainda pode ser considerado longo), mas os
Trident
são de todo modo em quantidade insuficiente para privar os russos de
qualquer chance de retaliação o objetivo final do
first strike.
Os americanos contam também com os mísseis de cruzeiro
Tomahawk
que são bem mais difíceis de detectar, mas cujo alcance é
limitado a cerca de dois mil quilômetros, e que assim precisariam ser
posicionados juntos às fronteiras da Rússia (atingiriam Moscou em
menos de dez minutos). Acontece que isso não tem como ser feito em
segredo, e poderia acabar forçando os russos a atacar primeiro, antes de
serem atacados.
A solução que os americanos encontraram foi instalar um escudo
antimísseis (ABM) "contra o Irã", nas bases da OTAN de
Deveselu na Romênia (ABM inaugurado em 2016) e Redzikowo na Polônia
(ABM a ser inaugurado agora em 2018). Acontece que os lançadores dos
ABM, que são do modelo
Mk-41
, podem rapidamente ser convertidos (em questão de minutos) em
lançadores de
Tomahawks.
O "escudo antimísseis contra o Irã" não passa
assim de um pretexto na preparação para o
first strike
algo que Moscou percebe claramente. Aquilo que os americanos
seguramente conseguiram foi dar provas aos russos de que estão se
preparando para atacá-los.
Então, no dia 26 de abril de 2017, o Vice-Chefe do Estado-Maior das
Forças Armadas da Rússia, general Viktor Poznihir,
declarou
ter o comando militar russo concluído que os Estados Unidos preparam um
ataque
first strike
contra a Rússia.
O que seria de se esperar? Que alguma alta autoridade americana se dirigisse ao
presidente Putin, publicamente, procurando desmentir essa conclusão, ou
ao menos chamando os russos para sentar e conversar a respeito de uma
situação de tamanha gravidade. Mas, o que de fato aconteceu?
Nada. Silêncio.
Analistas militares estimam que
levaria ainda alguns anos
para os americanos poderem dispor de mísseis nas fronteiras da
Rússia em quantidade suficiente para um
first strike
bem-sucedido. Não obstante isso, os russos estão
desde logo
esbravejando.
O fato é que jamais (até agora) foi viável um
first strike
, seja pelos Estados Unidos seja pela Rússia. Ambos contam com uma
quantidade de ogivas que em muito excede ao que seria preciso para destruir
toda a Terra mais de uma vez, e assim sempre lhes sobraria capacidade de
retaliação significativa, por mais extenso que tenha sido o
first strike
sofrido.
O que nos conduz ao anúncio, por Putin, das novas armas russas.
Os possíveis efeitos do anúncio de Putin: guerra à vista?
Há cinquenta anos atrás, as ruas de Leningrado me ensinaram uma
coisa:
se uma luta for inevitável, acerte o primeiro golpe.
(Vladimir Putin)
O que Putin quis e conseguiu com o seu anúncio das novas
armas foi deixar absolutamente claro aos americanos que eles não
serão capazes de efetuar um
first strike
, nem agora nem nunca. Muito pelo contrário, dentro de mais alguns anos
seriam os russos quem, em tese, poderiam vir a fazê-lo, desde que
além dessas suas novas armas de ataque viessem também a
desenvolver, em adição aos seus excepcionais
S-500
já em produção, mais outros mísseis defensivos
tecnologicamente avançados (ver
aqui
) que compusessem um efetivo escudo de proteção capaz de
neutralizar qualquer retaliação americana.
O
timing
do anúncio de Putin revela, porém, um problema: das seis novas
armas anunciadas, três ainda estão em fase final de testes (o
míssil balístico intercontinental
Sarmat
, o míssil hipersônico Mach.10
Kinzhal
e o veículo submersível intercontinental não tripulado de
propulsão nuclear), duas acabaram de concluir os testes e ingressam
agora na fase de produção (a "asa planadora" Mach.20
Avangard
e o míssil de cruzeiro intercontinental de propulsão nuclear), e
apenas as armas a laser (sobre as quais não foram divulgados detalhes)
já estão sendo distribuídas às unidades militares.
Ora, quanto tempo mais levará até que tenham sido produzidas
quantidades suficientes dessas armas, de modo a que os arsenais russos sejam
satisfatoriamente abastecidos? Um ano, dois, três? Ter feito esse
anúncio agora apenas atiçou o inimigo a atacar o quanto antes
antes que essas novas armas estejam disponíveis em quantidades
suficientes para subjugar a América. Em resposta ao anúncio de
Putin, o secretário de Defesa americano, general James Mattis,
declarou
não sem alguma razão que essas novas armas "
ainda
estão anos distantes
" de ameaçar os Estados Unidos (grifo meu).
Por que então Putin fez o anúncio justamente agora? A resposta
só os russos sabem, mas entendo que eles sentiram que precisavam
intimidar, e rápido, os americanos. Estariam os Estados Unidos na
iminência de atacar a Rússia nesta primavera de 2018? (por
razões climáticas, a Rússia foi sempre atacada ao final da
primavera, após ter secado a lama decorrente do degelo do inverno
anterior e antes que chegasse a neve do inverno seguinte; Napoleão
invadiu a Rússia a 24 de junho de 1812, e os exércitos de Hitler
a invadiram a 22 de junho de 1941; o verão no hemisfério norte se
inicia este ano em 21 de junho).
O que os Estados Unidos almejam é mais que meramente sobreviver,
é conservar a sua
identidade.
Esta identidade se baseia na permanente acumulação de riquezas,
o que, na prática, significa a espoliação do restante do
mundo. Para que os Estados Unidos pudessem conviver com a Rússia e a
China em um mundo gerido em comum (mundo multipolar), eles precisariam abrir
mão dessa sua identidade e encontrar uma nova, que desse conta de
assimilar a sua perda de poder e o seu empobrecimento (a inviabilidade para
rolar a dívida dos EUA acarretaria o fim do dólar, com a
pulverização de todos os depósitos nessa moeda)
isso para não falar em outros desdobramentos cruciais, como o fim do
apoio incondicional americano a Israel. Algo assim não teria como
acontecer pacificamente, especialmente porque os americanos se acostumaram a
acreditar serem imbatíveis militarmente.
Para que possa haver um processo de atualização da identidade,
seja para uma única pessoa (renovação da psique) ou para
uma sociedade inteira (renovação da cultura), é preciso em
primeiro lugar que haja desconforto (numa situação
confortável não há porque questionar a identidade). O
desconforto será sempre enfrentado, numa linha de "piloto
automático", por maneiras que resguardem a identidade, desde que
não se atinja um ponto em que isso deixe de funcionar. Caso
aconteça, poderão então advir três desfechos:
abrir-se "por bem" para uma atualização da identidade,
de forma reflexiva; aceitar "por mal" uma atualização
da identidade, de forma traumática; ou, no limite, aferrar-se cegamente
à identidade, contra a realidade o que arrisca terminar levando
à morte.
Paradoxalmente, o único caminho seguro para que os Estados Unidos
viessem a conservar a sua condição de superpotência deveria
provir de algum processo de renovação "por bem" da sua
identidade, com a aceitação da realidade de um mundo multipolar e
a construção, em conjunto com Rússia e China, de uma nova
ordem mundial. Se, no entanto, os americanos insistirem na
direção de uma subjugação militar de Rússia
e China, uma eventual derrota (daí a importância das novas armas
russas) significará o fim de seu gigantesco aparato, com o
desmantelamento das suas centenas de bases militares espalhadas por todo o
globo.
O problema é que os americanos se encontram por demais aferrados
à sua identidade
("somos a
única nação indispensável
no mundo"),
e assim vejo como impraticável qualquer renovação
"por bem" dessa identidade.
A Rússia tem até aqui apostado numa estratégia de ganhar
tempo (estratégia esta que se encontra muito bem exposta no artigo de
The Saker, que foi o
texto anterior publicado nesta série
): mais cedo ou mais tarde os Estados Unidos entrarão em
desintegração econômica pelas próprias pernas (com
um "empurrãozinho" da China, é claro), então, se
até lá a guerra puder ser evitada, tanto melhor. A Rússia
tem assim adotado uma tática evasiva, "engolindo sapos" e
evitando embarcar nas provocações militares dos EUA, ou ainda
respondendo de forma autocontida, de modo a evitar escalar um conflito. O tempo
corre a favor da Rússia, que pacientemente aguarda pelo
inevitável colapso americano enquanto produz volumes maiores das novas
armas caso venha a guerra.
Receio, porém, que mais cedo ou mais tarde os americanos acabarão
por ir à guerra mesmo contra a Rússia nuclearizada, em nome da
preservação do seu
status quo
e da sua identidade. A intimidação de Putin com seu discurso
poderá até (?) reduzir os riscos de uma guerra nuclear total, mas
não tem como funcionar para compelir os americanos a qualquer
atualização pacífica da sua identidade disfuncional.
O que está em aberto é se o eventual enfrentamento entre
americanos e russos escalará até a guerra nuclear total, ou se
terminará com a capitulação de um dos lados (ainda que
para isso venham a ser detonadas algumas bombas nucleares).
Considero bastante improvável uma capitulação da
Rússia. Com seus S-500, S-400 e demais sistemas de defesa a
Rússia tem como se proteger razoavelmente bem de um ataque convencional
ou mesmo de um ataque nuclear restrito, ao passo que poderia infligir danos
consideravelmente maiores ao território dos Estados Unidos por meio das
suas novas armas, mesmo que em início de produção
(especialmente se vierem a ser usadas em um ataque nuclear restrito).
De todo modo, se acontecer da Rússia perder (por
"Rússia", leia-se "Rússia mais China", porque
elas estão militarmente aliadas contra os americanos, embora não
assumam isso), isto significaria uma tirania mundial americana, o 1984 de
George Orwell em plenitude. Mas não há de acontecer.
Já os americanos somente capitulariam se bastante machucados, e
possivelmente esse seja o "plano B" dos russos (o "plano A"
sendo a desintegração dos Estados Unidos como um processo
espontâneo, sem que chegue a haver guerra).
O problema com esse "plano B" é o elevado risco de escalada
até uma guerra nuclear total.
Probabilidades de a guerra vir a se tornar nuclear
|
Repórter:
Sr. Einstein, agora que foi inventada a bomba atômica, como o Sr. acha
que será a Terceira Guerra Mundial?
Albert Einstein:
A Terceira eu não sei. Sei como vai ser a Quarta.
R:
A Quarta?
AE:
Sim. A pau e pedra.
(adaptação)
|
Os americanos estão conscientes de que, mesmo que lancem um
first strike
contra a Rússia, acabarão também destruídos. Os
russos estão conscientes de que, mesmo que lancem um
first strike
contra os Estados Unidos, acabarão também destruídos.
Nenhum
first strike
, ainda que em total surpresa (algo que dificilmente ocorreria), teria como
inviabilizar a retaliação do oponente.
Se assim o é, por uma questão de inteligência, por uma
questão de razoabilidade, por uma questão de moral, por uma
questão de dignidade ou mesmo por simples questão de
decência, uma guerra nuclear total era para ser o menos provável
dentre todos os cenários. Desgraçadamente, não é.
No dia 02 de fevereiro de 2018 o Pentágono divulgou a
nova doutrina nuclear dos Estados Unidos
, que estipula a produção de novas ogivas nucleares
"táticas", ou seja, de baixa potência (ainda assim,
qualquer bomba nuclear "tática" será mais potente do
que as que foram lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki), para serem usadas
nas guerras "de varejo" americanas. Essa nova doutrina estabelece
ainda que os Estados Unidos poderão fazer uso de armas nucleares para
responder a quaisquer ataques "
que levem a vítimas em massa
" (até uma ação terrorista poderia ser isto) ou "
que visem infraestrutura crítica
" (até um ataque cibernético poderia ser isto).
A
resposta de Putin
veio dentro do seu discurso de primeiro de março:
Nossa doutrina nuclear estabelece que a Rússia se reserva o direito de
usar armas nucleares somente em resposta a um ataque nuclear ou a um ataque com
outras armas de destruição em massa contra nós ou contra
nossos aliados, ou a um ataque convencional contra nós que ameace a
própria existência da nação
(...)
É meu dever deixar claro isto: qualquer uso de armas nucleares contra a
Rússia ou seus aliados, seja ele em pequena escala, em média
escala ou em qualquer outra escala, será tratado como um ataque nuclear
ao nosso país. A resposta será instantânea, e com todas as
consequências relevantes.
Por "aliados da Rússia", leia-se Síria e Irã (em
um recado que é extensivo a Israel).
Há também uma diferença de natureza: Enquanto as
lideranças russa e chinesa são razoavelmente homogêneas, a
ponto de poderem ser personificadas em um único dirigente (Putin, e Xi
Jinping), a liderança americana poderia ser descrita (para usar aqui uma
expressão suave) como um saco de gatos. As diversas esferas de poder
(como a Casa Branca, o Pentágono, o Departamento de Estado e as
agências de inteligência) têm imensas dificuldades em atuar
de forma coerente e coordenada (para uma análise desse fenômeno,
ver
aqui
), e mesmo no interior de cada uma delas a coesão é baixa,
chegando ao ponto de militares de campo (por exemplo na Síria) virem a
"interpretar" a seu próprio modo (novamente sendo suave aqui)
as ordens dos seus superiores em Washington.
Num contexto altamente instável, em que uma única
ação mais contundente pode desencadear uma resposta nuclear
maciça, uma tal fragmentação torna exponenciais os riscos.
Enquanto isso, na Rússia, é devido à coesão de
poder que é possível a Putin por exemplo
vocalizar
(e assim se fazer obedecer ao longo da cadeia de comando) a obviedade de que
não pode chegar a haver guerra nuclear total, porque isso significaria
(também) a destruição da Rússia. Pelo lado
americano não se ouve nada sequer parecido, em um atestado coletivo de
descolamento da realidade.
Nessa mesma oportunidade, Putin saiu-se com a seguinte frase de efeito (assista
no
vídeo
):
"na qualidade de um cidadão russo e de chefe de Estado da
Rússia, eu pergunto a mim mesmo: Para que nós
iríamos querer um mundo no
qual a Rússia já não mais existisse?".
Para bom entendedor...
Uma medida bastante confiável para o risco que cada país atribui
às probabilidades de haver guerra nuclear consiste nas medidas que adota
para proteger a sua população dessa eventualidade.
As autoridades russas revelaram, às vésperas de virem a conduzir
um
exercício de defesa civil
por quatro dias seguidos (de 04 a 07 de outubro de 2016) em que o país
inteiro parou, quando
quarenta milhões
de pessoas foram treinadas a se dirigir cada uma ao seu respectivo abrigo
nuclear e a como nele permanecer por longo tempo, que haviam acabado de ser
construídos novos abrigos nucleares para mais
doze milhões
de pessoas, em adição ao estoque de abrigos herdado da era
soviética.
Até mesmo um país tradicionalmente neutro (não faz parte
da OTAN), a Suécia, decidiu também
iniciar um programa
massivo de construção de abrigos nucleares para sua
população.
Já nos Estados Unidos, nem uma palavra se ouve sobre o risco de o
país vir a sofrer um ataque nuclear. Bem entendido, nem uma palavra
é ouvida pelos 99% (em um atestado de que não há interesse
real em protegê-los), porque o assim chamado 1%, para quem a
informação crítica chega cristalinamente, tem se devotado
freneticamente a construir os seus próprios abrigos (de alto luxo,
é claro), de preferência em lugares ermos e habitados (leia-se:
esparsamente habitados) por gente branca, como Canadá, Argentina
(Patagônia) e Nova Zelândia (ver, por exemplo,
aqui
e
aqui
).
Para tentar chamar a atenção dos 99% quanto a isso que eles
serão os últimos a saber (talvez só quando os
mísseis estiverem sendo disparados) mas que o 1% já sabe
há muito tempo, Eric Zuesse escreveu um
artigo
no qual lista nada menos do que
onze
outras referências (
uma
,
duas
,
três
,
quatro
,
cinco
,
seis
,
sete
,
oito
,
nove
,
dez
,
onze
) quanto a estarem os ricos preparando os seus abrigos, além de propor
ao leitor o desafio de digitar a seguinte linha para pesquisa no Google (eu fiz
e fiquei impressionado):
billionaires moving to "new zealand".
Mudando de exemplo sem mudar de assunto, a poderosa indústria
farmacêutica americana vem-se dedicando a pesquisar e desenvolver
novos medicamentos
para... tratar os efeitos da exposição à radioatividade.
Implicações para o Brasil
Disse que não chamo a classe dominante brasileira de elite porque, para
começo de conversa, uma elite em um país desenvolve sua
identidade própria (mesmo que seja para a dominação), da
qual faz parte algum grau de identificação para com esse
país e seus destinos.
Aqui, não. A classe dominante (refiro-me aos verdadeiramente ricos, que
são os únicos beneficiários de fato do golpe de 2016, a
classe média tendo sido usada e em seguida descartada ver mais
sobre isto
aqui
) já há muito não possui mais qualquer
identificação para com o Brasil. Essa classe dominante mora no
exterior, tanto guarda quanto gasta o seu dinheiro no exterior, educa os seus
filhos no exterior, e a única relação que ainda
mantém com o Brasil é para daqui extrair a riqueza dela. Claro
que, para isso, ela precisa que os seus prepostos atuem aqui dentro, instalados
em especial nos três poderes do Estado.
A classe dominante brasileira abdicou voluntariamente de qualquer
vínculo afetivo com o Brasil, e assim abdicou também de manter
qualquer identidade própria (que teria de ser derivada de tais
vínculos, extintos). Ela preferiu se deixar assimilar pelo país
hospedeiro, os Estados Unidos. Preferiu assumir como sua a identidade
americana. Adotou para si a visão de mundo americana, a cultura
americana, os valores americanos, os modelos econômicos americanos e
até mesmo os instrumentos de dominação americanos
("meritocracia" e que tais).
É por isso que o golpe de 2016 não tem um projeto para o
país: ele não precisa ter.
Se tivesse preferido continuar brasileira, como sempre havia sido até
por volta da década de 1980, a classe dominante poderia agora contar com
uma sobrevida. Mas, atrelada até a raiz dos cabelos que se fez aos
americanos, a sua derrocada se dará na esteira da derrocada dos Estados
Unidos.
O anúncio das novas armas por Putin veio explicitar perante o mundo uma
realidade nova, que até então somente era conhecida, ou
pressentida, em círculos bastante restritos: os Estados Unidos já
não detêm mais a supremacia militar no planeta, e, assim, os seus
dias de superpotência estão contados. Como contados estão
os dias de dominação sobre a população brasileira
pela classe dominante daqui.
É claro que isso não terá como se dar pacificamente. Mas
é inexorável.
Mas, e se houver guerra nuclear?
Bem, nesse caso esqueça-se a classe dominante brasileira, porque
enquanto tal ela simplesmente terá deixado de existir assim como
tudo o mais que instituído haja também já não
existirá.
Mas, como assim, se o Brasil não tiver sido atacado?
No capitalismo contemporâneo, Brasil incluído, a maior parcela da
economia é fictícia (finanças) ao contrário de real
(indústria, serviços, agricultura), além do que essa
parcela real se encontra subordinada à (e dependente da)
fictícia. As finanças são uma ficção que
funciona apenas porque as pessoas acreditam na sua concretude: enquanto o
lastro da economia real é físico (máquinas,
edificações, estoques de produtos e de matérias-primas,
terras etc.), as finanças encontram-se lastreadas unicamente na
credulidade das pessoas (dito em termos mais técnicos, trata-se de uma
convenção social algo seguido pelas pessoas porque acatado
por elas).
Após uma guerra nuclear que devaste o hemisfério norte nada disso
se sustentará mais, nem no Brasil nem em lugar nenhum. O que move o
mundo, e lhe dá sentido, é a atividade econômica, muito
mais que as instituições (cuja razão de ser é
manter o mundo tal como já está). Se a economia colapsar, as
instituições colapsam junto. Claro que muita gente
acreditará poder continuar vivendo tal como havia sido até
então, e assim tentará manter o mundo tal como instituído,
mas não haverá mais como.
O que tiver restado da humanidade
se
vier a sobreviver ao inverno nuclear terá que se reinventar. Em
termos tecnológicos muito se poderá aproveitar, mas, em termos
institucionais, praticamente tudo terá que ser recriado: Humanidade
dois-ponto-zero.
Como
canta Morrissey
, "because if it's not love then it's the bomb that will bring us
together".
Ademais, nada garante que o Brasil não seja atacado. Se de
antemão é óbvio para todo mundo que o que terá
sobrado após uma guerra nuclear será pouca coisa além da
América do Sul, as mesmas mentes que decidem pela
construção de abrigos de alto luxo para o 1% enquanto se lixam
para o destino dos 99% podem também querer "despovoar" este
nosso continente posto ser a América do Sul uma região com
maciça concentração urbana em regiões
metropolitanas antes de se mudarem para cá. E para esse emprego
já foram inventadas as bombas de nêutrons, aquelas que matam as
pessoas mas preservam os prédios, por meio de um tipo de radioatividade
que desaparece em questão de dias depois de ter condenado à morte
quem a ela tiver sido exposto. De sociopatas, se pode esperar absolutamente
qualquer coisa.
Mesmo que o Brasil não seja atacado, há algo que se deve
recomendar a todo mundo:
que cada um tenha um lugar para onde ir
, um lugar que, quanto mais ermo (despovoado), melhor. Se a economia e a
sociedade vierem a entrar em colapso, todo mundo vai entrar em choque ao mesmo
tempo, e o pior lugar para se estar vai ser numa metrópole ou grande
cidade amontoado com mais milhares ou milhões de pessoas, todas elas em
parafuso.
Poucos dentre nós podem estar conscientes disso, mas, venha ou
não a guerra nuclear, já estamos todos vivendo os tempos mais
fantásticos e ao mesmo tempo mais terríveis de toda a
História da humanidade. Seremos todos protagonistas, ou ao menos
testemunhas, dos eventos os mais extraordinários. A cada um, coragem,
garra, sabedoria, e sorte.
Agradeço a Dario Achkar do
Blog do Alok
e ao Coletivo Vila Vudu pela parceria na montagem desta série.
26/Março/2018
[*]
Autor de
Uma nova utopia para o Brasil
. Este é o quinto e último artigo da série "As
novas armas da Rússia", que busca apresentar ao público
brasileiro a nova realidade mundial inaugurada pelo discurso do presidente da
Rússia Vladimir Putin no dia primeiro de março, o qual marca uma
ruptura histórica de consequências imensuráveis para todo o
mundo inclusive o Brasil: os Estados Unidos já não
detêm mais a supremacia militar no planeta, e os seus dias de
superpotência estão contados.
Esta série é composta pelos seguintes artigos:
As novas armas da Rússia (1): O discurso histórico de Putin
(transcrição do discurso)
As novas armas da Rússia (2): Resumo das armas
(compilação pela equipe do site
SouthFront.org
)
As novas armas da Rússia (3): Implicações militares
(análise por Andrei Martyanov)
As novas armas da Rússia (4): Implicações políticas
(análise por The Saker)
O original encontra-se em
jornalggn.com.br/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.