Os antecedentes da tormenta indicam por onde recomeçar
Um golpe não começa na véspera; tampouco tem
desdobramentos plenamente identificáveis na manhã seguinte.
Uma derrota progressista pode ser devastadora para o destino de uma
nação, a sorte do seu povo e a qualidade do seu desenvolvimento.
Mas a resistência que engendra pode inaugurar um novo marco de
consciência política.
Pode redefinir a correlação de forças, as formas de luta e
de organização e coloca-las num patamar mais avançado, mas
não menos abrangente.
Apesar dos votos dedicados à família, a Deus e até a um
torturador Bolsonaro ofereceu sua escolha a Brilhante Ustra e ao golpe
de 64 a transparência da história pulsou forte no Brasil
nesta noite de 17 de abril de 2016.
Guardadas sóbrias exceções, os que condenaram Dilma
filiam-se a agendas e valores imiscíveis com o mapa histórico que
desponta da Revolução Francesa e fez dos direitos sociais
universais o guia generoso e libertário da humanidade.
A violência conservadora, como ocorre em todos os golpes contra governos
progressistas, apunhalou a democracia para atingir o interesse popular.
Mais adiante tentará aleijar a soberania nacional descartando-a como
anacronismo populista.
A ética, a responsabilidade fiscal, serviram de guarnição
das aparências.
O golpe nasceu de um ménage à trois entre a escória
liderada por Cunha, o ódio inoculado pela mídia na classe
média e o plano de arrocho e entreguismo do PSDB
O cinismo foi o grande vencedor da jornada triste que banhou o país de
lufadas adicionais de incerteza e turbulência.
Votos decisivos ao impeachment 'por irresponsabilidade fiscal da Presidenta da
República' vieram das bancadas inclua-se a do PSDB que
patrocinaram as pautas bombas, estas sim suficientes para quebrar a
nação.
E não é necessário desfiar o prontuário completo do
operador Eduardo Cunha, para adicionar ao cinismo a hipocrisia.
Hipócritas de punhos de renda jornalistas, políticos,
intelectuais, ministros do STF assistiram a todo esse processo
emprestando pertinência formal ao estupro coletivo da democracia na arena
das bestas-feras.
Por mérito, a cusparada histórica do deputado Jean Wyllys num
fascista que o insultara e que homenagearia um torturador e o golpe de
64 no seu voto pela derrubada da Presidenta Dilma , deveria ser estendida
aos demais protagonistas do espetáculo degradante.
Entre eles, certamente a mídia.
Coube a ela amalgamar o movimento regressivo de longas raízes
históricas que se prepara agora afastado o obstáculo
inicial para assaltar a Constituição Cidadã naquilo
que ela fez de melhor: legitimar os direitos sociais reprimidos pela
ditadura 24 anos antes da sua promulgação, em novembro de 1988.
Faz parte do jogo de espelhos que Temer jure fidelidade ao Bolsa
Família, a exemplo do que já prometera ao mandato de Dilma, pouco
meses atrás.
O fato é que os acontecimentos em marcha vieram reafirmar a
rigidez da fronteira onde acaba a tolerância do dinheiro e do mercado com
o projeto de construção de uma sociedade mais justa na oitava
maior economia do planeta e principal referência da luta pelo
desenvolvimento no mundo ocidental.
'A democracia prometeu mais do que o capitalismo está disposto a
conceder', martela diuturnamente o jogral midiático, em todo o ciclo
iniciado em 2002.
O alvo são os direitos sociais abrigados na Carta de 1988, que o PT
criticou na origem pelas suas limitações (a questão
agrária, uma das mais graves), mas da qual se fez o mais fiel
guardião quando chegou ao poder.
O mercado entendeu que a crise econômica global diante da qual o
governo esgotou os sistemas de contrapesos fiscais do país abriu
a oportunidade para um acerto de contas com o 'populismo constituinte de 1988'.
A frente golpista uniu a escória política, a mídia, o
dinheiro grosso local e internacional e os sem voto num pacto feito de sistemas
de compensações complementares.
Esse que agora se desenha abusadamente aos olhos da sociedade e com a
cumplicidade do jornalismo da indignação seletiva.
Cunha terá sua anistia, em troca de devolver o poder pleno ao mercado,
via corrupção política da qual se acusa o PT.
O PSDB volta ao poder sem precisar se submeter à urna.
O STF, depois de se acoelhar de forma indecente na preservação do
livre movimento de Cunha, poderá falar grosso com Moro, e assim encerrar
a Lava Jato.
A Chevron e a Shell terão o pré-sal prometido por Serra e pelo
PSDB; a Globo renovará sua concessão facilmente a partir de
2018...
Vai por aí a engrenagem posta em funcionamento, a partir deste domingo.
O ciclo em que o golpismo tratará a democracia social como um estorvo
está longe de se encerrar com a conclusão do processo do
impeachment.
A lambança golpista, por mais que gere uma euforia imediata nos mercados
especulativos, não resolverá as grandes pendências
nacionais, emolduradas por um pano de fundo desafiador.
O mundo vive a mais longa, incerta e frágil convalescença
[NR]
de uma crise capitalista desde 1929.
Tudo o que foi subtraído do Estado e do trabalho no período
anterior à explosão as subprimes, em 2008
regulações, direitos, soberania etc mostra agora a sua
falta.
Desprovida de alavancas contracíclicas a economia global não
decola e agora arrasta as nações em desenvolvimento para o ralo
corrosivo da estagnação.
Sobram paradoxos.
O da superprodução de capital fictício, em
metástase especulativa, o mais evidente deles.
Seu contraponto histórico é a anemia do investimento e do emprego
urbi et orbi.
Ficções de livre comércio rondam esse cenário como
a panaceia recorrente dos carrascos de direitos sociais.
Acordos de livre comércio como o acalentado pelos gurus
econômicos do golpe em condições de
contração sistêmica, como é o caso, formam um jogo
de soma zero, que apenas transfere demanda de um ponto a outro. No caso, a gula
persegue o mercado de massa brasileiro que, sozinho, tem escala e densidade
para integrar o G 20.
Nessa voçoroca da soberania, o emprego gerado numa economia é a
vaga subtraída na outra.
Igual circularidade se observa no deslocamento dos passivos do setor privado
para o Estado, após um longo ciclo de farra financeira.
O setor privado 'ajustou-se', diz o colunismo abestalhado de toxina neoliberal.
Omite-se que o ônus foi transferido aos governos.
Fala-se pelos cotovelos da gastança fiscal petista. Oculta-se que a
relação dívida pública/PIB nas economias mais ricas
saltou de 78% para 105% desde 2008.
Em contrapartida, a participação dos salários no PIB
global recuou: hoje é 10% inferior à média dos anos
80.
Esse torniquete estreitou sobremaneira a margem de manobra de políticas
associadas a projetos de desenvolvimento com repartição de renda,
como os implementados na América Latina.
O Brasil é o caso mais exposto porque foi justamente quem chegou mais
longe nesse processo.
Como atesta o Banco Mundial, a pobreza extrema no Brasil caiu 64% entre 2001 e
2013, passando de 13,6% para 4,9% da população.
Nada igual ocorreu na América Latina.
Atingido pela queda nos preços e no volume embarcado de minérios
e grãos, o país sofreu também com a retração
nas exportações de manufaturados (adicionalmente solapadas pelo
câmbio desastrosamente valorizado), antes vendidos a parceiros
latino-americanos, em idêntico apuro.
É nessa moldura que a coalizão conservadora lançou-se ao
golpe de Estado. Com determinação virulenta e bem sucedida, como
se vê.
Entre outras razões, porque conseguiu impor o seu diagnóstico e a
sua pauta como referência dominante do debate sobre a crise aqui e no
resto do sistema capitalista.
Sim, não é propriamente uma surpresa que as ideias dominantes de
uma época sejam as ideias das classes dominantes.
Desde 1846, quando Marx e Engels assentaram seu vigamento filosófico nas
páginas de 'A ideologia alemã', o peso material das ideias ganhou
o devido destaque na luta de classes.
Mas no Brasil esse poder de agendamento tornou-se asfixiante
Para um conservadorismo derrotado quatro vezes consecutivas pelo voto popular
nas disputas presidenciais desde 2002, tornou-se a ferramenta decisiva na
desconstrução de um adversário que não se guarneceu
para enfrentamento equivalente.
Pior que isso, subestimou a sua importância.
A bordo de um economicismo conveniente, delegou-se às gondolas do
supermercado a tarefa de traduzir avanços sociais e econômicos do
período em mudança na correlação de forças.
Nesse oco político o golpismo encontrou o espaço para um
recadastramento histórico.
Recuperar o tempo e o poder perdidos convoca o desassombro e a
convergência progressista.
O episódio das ditas pedaladas evidenciou essa dificuldade de se
defender do algoz, sem romper com o círculo de giz que ele
traçara no chão.
Por que o governo hesitou tanto em convocar imediatamente uma rede nacional,
para explicar o que as ditas 'pedaladas' representavam de fato?
Ou seja, que a Caixa quitou programas sociais em dia, sendo ressarcida em
seguida sem alterar o orçamento, portanto.
Por que o governo não escancarou imediatamente o golpismo
intrínseco à 'escandalização' da
operação contábil corriqueira, com fins sociais
irrepreensíveis? E por que temeu confronta-la, por exemplo, com a
derrama dos juros (8% do PIB) sobre o cofre do Estado escândalo
que nenhum advogado do ajuste fiscal argui?
Em 757 dias úteis, até o final de 2014, o saldo do Bolsa
Família na CEF [Caixa Económica Federal] só ficou negativo
em 72 dias. O pagamento de juros aos rentistas da dívida pública,
no entanto, drenou o equivalente a mais de 15% do PIB nesse período,
deslocando recurso fiscal escasso para os cofres abarrotados da pátria
financeira.
Os que golpearam Dilma 'em nome do povo' neste domingo, avocariam esse mandato
se o povo verdadeiro tivesse sido conscientizado das disputas fiscais efetivas
no caixa da República?
'Governo é metade realizações, metade ideia. Por muito que
fizer, um governo que não trava a luta das ideias, sempre
figurará aos olhos da sociedade com quem fez muito pouco', lembrou em
recente viagem ao Brasil, o vice presidente da Bolívia, Álvaro
García Linera
A negligência com a luta das ideias foi a tônica nos últimos
12 anos de avanços notáveis no plano social que, todavia,
não se traduziram em engajamento político correspondente de seus
beneficiários.
A democracia, portanto, não se tonificou de novos protagonistas
organizados e de novos canais de participação. Manteve-se
refém de um Congresso capaz de produzir e legitimar um déspota
como Eduardo Cunha a quem coube, afinal, fazer o ajuste entre as duas
realidades.
O economista Márcio Pochmann enxergou pioneiramente os riscos
implícitos na assimetria entre avanços econômicos e sociais
desprovidos do respectivo cimento organizativo e ideológico.
'Cerca de 22 milhões de trabalhadores ascenderam socialmente, desde
2003,' lembrava ele já em 2013, 'mas não houve mudança na
taxa de sindicalização no país: de cada dez destes
trabalhadores, só dois se filiaram a algum sindicato. O mesmo aconteceu
com os estudantes beneficiados pelos programas do governo federal e com os
beneficiários do Minha Casa, Minha Vida', espetou na sua lista dos
antecedentes da tormenta, que por fim eclodiria já na campanha de 2014,
ainda assim subestimada.
Marilena Chauí já se observou neste espaço
que sempre atuou na contracorrente da rendição ideológica
dos últimos anos, ensina que "a ideologia é o processo pelo
qual as ideias da classe dominante se tornam ideias de todas as classes
sociais"
'Esse fenômeno', diz a filósofa, 'de manutenção
(adoção) das ideias dominantes, mesmo quando se está
lutando contra a classe dominante, é o aspecto fundamental daquilo que
Gramsci denomina de hegemonia, ou o poder espiritual da classe dominante'.
Por isso ele dizia que, sublinha a professora, se num determinado momento os
trabalhadores de um país precisam lutar usando a bandeira do
nacionalismo, por exemplo, a primeira coisa a fazer é redefinir toda a
ideia de nação (...) e elaborar uma ideia do nacional que seja
idêntica à de popular.
'Precisam, portanto, contrapor, à ideia dominante de
nação, uma outra, popular, que negue a primeira', sintetiza
Chauí.
O ciclo golpeado neste domingo esteve longe de proceder a essa
mutação.
Está claro que um sistema político que fica refém de Cunha
e de sua matilha precisa ser revitalizado com maior participação
social.
Se quiser implodir a resiliência golpista, as forças
progressistas terão que se atirar de forma unida no debate das ideias
para dota-las de um projeto com peso material capaz de impulsionar o
passo seguinte da luta por democracia, igualdade e desenvolvimento no
país.
Se o fizer, a derrota deste domingo poderá ser revertida muito mais cedo
do que supõe a histeria de um golpismo eufórico, mas incapaz de
oferecer respostas aos brasileiros, que não a trágica aposta
dobrada em um neoliberalismo mundialmente despedaçado.
18/Abril/2016
[NR] A opinião é do autor. Resistir.info considera que
não está em "convalescença" e sim no
início de uma depressão.
Ver também:
Porque o senador Aloysio Nunes foi a Washington um dia depois da votação do impeachment?
[*]
Jornalista.
O original encontra-se em
cartamaior.com.br/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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