Os dragões da maldade contra o santo guerreiro
por Marco Antonio V. dos Santos
[*]
Desde que se inaugurou o governo Lula, os quadros do PT instalados nos
aparelhos ideológicos de Estado iniciaram um movimento, repetindo mil
vezes o bordão de que o governo Lula representava a luta da
"esquerda contra a direita", o "Santo Guerreiro" contra os
"dragões da maldade"
[NR 1]
, ou seja, as elites nacionais e internacionais, os banqueiros de toda origem,
o capital financeiro internacional et caterva.
Durante a campanha eleitoral para a presidência da República, em
2006, e principalmente no segundo turno, esses militantes da (mal) chamada
"esquerda" e apoiadores do governo de Lula e do PT um espectro
que vai de Delfim Netto (soba da ditadura militar e participante da
"missa negra"
que assinou o AI-5) ao PCdoB intensificaram a faina de
redigir artigos, panfletos eleitorais sobre a luta entre "esquerda e
direita" que, afirmavam, estava sendo travada no país naquele
momento. Essa prolífica produção de meias-verdades e de
inverdades inteiras, de fatos distorcidos ou ocultados, que permanece na
disputa pela composição do governo e pelo seu programa no segundo
mandato
[1]
, recebeu uma significativa contribuição com a
publicação do artigo
"Lula é muitos"
, de Antonio
Negri e Giuseppe Cocco, na
Folha de S.Paulo
do último dia 18 de dezembro. Como o artigo de Negri e seu parceiro
representa o supra-sumo desta corrente que se avoluma até hoje, fazer
sua crítica é válido para revelar as
alucinações que os interesses do capital podem provocar neste
setor da camada média que se coloca a serviço do capital.
"Lula é muitos"
A idéia central do artigo de Negri e Cocco é de uma
"radicalização democrática", uma "maior
mobilização democrática", revelada pelo governo Lula;
governo, segundo os autores, "não apenas 'representante' dos
movimentos mas também, em parte, sua expressão".
Expressão essa que, por sua vez, também se torna possível
a partir do governo, inclusive na forma da "pressão social que
renova continuamente sua legitimidade".
A partir desse eixo delirante analisa alguns aspectos do governo de Lula e do
PT em meio a expressões (conceitos?) como "rizomaticamente",
"movimento horizontal de mobilização
democrática", "decisionista", política externa
"pós-nacional e pós-soberana", "nacionalismo
identitário". Como diria Lênin, um palavrório vazio
para iludir e enganar a consciência dos operários e das massas
trabalhadoras...
"A elite treme"
Segundo Negri e Cocco, "a elite treme" com a reeleição
de Lula, pois "Lula foge ao controle dos poderes fortes da elite
cínica e racista" e
"dessa vez,
sua eleição não foi homologada por nenhum
'satisfecit'
prévio do establishment" (negrito nosso). Será mesmo?
Sabemos, desde Marx, que o capitalista interessa enquanto
personificação do capital. Ou seja, ao invés da
análise crítica se perder em estéreis discussões em
torno de elites, personalidades, etc, interessa saber a quais classes
pertencem cada discurso e cada ação. Para nós, isso
significa fazer a análise concreta da situação concreta,
do ponto de vista da luta de classes do proletariado e demais classes oprimidas.
Neste caso, o importante não são as cartas de um FHC, os
discursos decorados de um Alckmin ou as diatribes de um ACM durante a campanha
eleitoral de resto cartas do "mesmo" baralho, que tiveram suas
capacidades de administrar o Estado em prol da burguesia superadas por Lula e
pelo PT mas sim quais os interesses objetivos da classe dominante,
especialmente do capital financeiro, e como eles vêm sendo atendidos
durante o governo de Lula e do PT.
É deste ponto de vista, materialista e dialético, que procedemos
a crítica, agora sim, radical, do artigo de Negri e Cocco.
Lucros bancários e especulação financeira desenfreada
"O lucro dos bancos dobra em quatro anos"
noticiou a
Gazeta Mercantil
em sua principal manchete de capa, no último dia 6 de dezembro. A
matéria informa que o lucro dos 50 maiores bancos atuantes no
país passou de R$12,7 mil milhões, de janeiro a setembro de 2003,
para R$23,4 mil milhões, no mesmo período de 2006.
Esse resultado só não foi maior, chegando perto dos R$30 mil
milhões, porque Itaú, Bradesco e Unibanco amortizaram
integralmente, em um único trimestre (o que poderia ser diluído
em até cinco anos), suas aquisições recentes dentro do
movimento de centralização de capital financeiro em curso no
Brasil na última década.
Esse procedimento contábil reduz não apenas o lucro declarado dos
bancos que dele se utilizam como reduz também, e essa é a
razão de sua existência, seu imposto de renda a pagar!
Só essas últimas amortizações incluem:
Itaú-BankBoston, R$2,7 mil milhões; Bradesco-vários
bancos, R$2,1 mil milhões; Unibanco-vários bancos, R$464
milhões, de acordo com Maria Christina Carvalho, em "Ágio
distorce resultado dos bancos" (jornal
Valor Econômico,
10.11.2006). Na mesma medida em que reduz o lucro do terceiro trimestre, esse
procedimento projeta lucros "espetaculares" para o final do ano.
Por outro lado, a especulação financeira corre solta no
país. Somos cotidianamente informados de que a Bolsa de Valores de
São Paulo (Bovespa) bate recorde atrás de recorde. Isso no
país que nos últimos anos só supera o Haiti em
matéria de crescimento econômico dentre os países da
América Latina e do Caribe, o que deve se repetir em 2007, de acordo com
a CEPAL (FSP, 15.12.2006, pg. B4).
Realmente, "Lula...", Mantega, luminar da "Escola do ABC"
considerada pela "nossa esquerda" como superior à
"Escola de Chicago" em matéria de neoliberalismo
Meirelles, et caterva, "fogem ao controle"...
Observando o gráfico ao lado, percebe-se que o índice Bovespa
quadruplicou de 2003 a 2006. Só em 2003, primeiro ano do governo de Lula
e do PT, a Bovespa duplicou seu índice. Para quem não lembra,
recordemos que 2003 foi um ano marcado pela recessão no primeiro
semestre, com o PIB crescendo apenas 0,5% no ano.
O que ocorreu para gerar esses resultados tão discrepantes? Simples. Com
as definições da equipe econômica (Palocci, Meirelles, Levy
[2]
, Lisboa e cia.), de aumentos do superávit fiscal e dos juros, o
capital financeiro percebeu que
o governo já se havia ajoelhado como prometera
.
Quem ganhou mais que a especulação financeira?
Mas a definição da política econômica
pró-capital financeiro não é ainda toda a estória.
Há um outro fator que estimula esse comportamento fortemente
especulativo das ações. Certamente não são as
perspectivas de crescimento do país. Nem tampouco exclusivamente a
redução dos juros pelo Banco Central, que ainda permanecem em 13%
ao ano, ou pouco menos de 9% descontada a inflação. Aliás,
como vimos dizendo, o "crescimento" do país que tanto alegra a
tal "esquerda desenvolvimentista" (sic!) não passa, na
verdade, do processo de "acomodação" da
formação econômico-social brasileira às
mudanças da economia mundial, do imperialismo. Processo que, diga-se a
bem da verdade, iniciou-se no governo de Fernando Collor, coisa que o hoje
senador reivindica analisando seu apoio ao governo Lula em entrevista à
Folha de S.Paulo (entrevista com Fernando Collor.
"Agenda econômica de 1990 continua, diz Collor"
. Fernanda Krakovics e Valdo Cruz.
FSP.
01.02.2007).
O motor do desempenho do mercado acionário, parte da política
econômica neoliberal, são os fortes ingressos do capital
estrangeiro explicitamente estimulados pelo governo de Lula e do PT. De um
montante total de US$7,8 mil milhões no começo do governo Lula, o
valor da carteira de capitais estrangeiros investidos em ações
atingiu US$83 mil milhões ao final do primeiro mandato, um
indescritível crescimento de 968%!!!
(veja o gráfico)
Como é realmente difícil de acreditar, convidamos os
céticos a visitarem o sítio da Comissão de Valores
Mobiliários (CVM), no link:
www.cvm.gov.br
. Na página inicial,
selecionem "Dados e Publicações CVM", depois
"Informativo CVM", das várias planilhas eletrônicas
disponíveis, selecione em "Investimento Externo" a planilha
"Valor da Carteira". Os menos céticos podem acessar direto a
página
www.cvm.gov.br/port/public/ASE/icvm/base_financeira/Valor.xls
.
Com uma "mãe" dessas, que elite precisa de "
'satisfecit'
prévio"?
No entanto, a mais descarada medida de favorecimento ao capital financeiro
do ponto de vista dos seus resultados para os especuladores
internacionais, é claro foi a isenção de imposto de
renda e de CPMF para que comprem títulos da dívida pública
brasileira, efetivada por medida provisória (MP 281) em fevereiro de
2006, atualmente
Lei 11.312/2006
. Os dados do gráfico abaixo mostram
como gostaram do presente, já que essa renúncia fiscal do governo
Lula se transforma, automaticamente, em gordos lucros a serem embolsados. Ou
seja, a isenção permitindo ao capital financeiro deixar de pagar
impostos vira lucro direto "na veia", como diria a ministra Dilma. O
que nunca antes na história deste país, para usar o jargão
de Lula, havia ultrapassado os US$700 milhões de acordo com o Banco
Central, atingiu US$11 mil milhões em 2006, um crescimento de 1.503% em
um único ano!!!
Ou seja, o capital financeiro, o capital monopolista, nunca teve, nem tem agora
porque "tremer", ou imaginar que algo "saiu do seu
controle" no governo de Lula e do PT. Todas as medidas acima, para
não falar dos sempre mencionados juros da dívida pública e
das taxas de juros recordes do Banco Central presidido pelo
ex-presidente mundial do BankBoston, do qual recebe "aposentadoria"
de US$750 mil por ano (FSP, 12.01.2003, pg. B1) e deputado federal eleito pelo
PSDB, nunca é demais lembrar representam lucros recordes para a
especulação, contribuem para a redução do
investimento produtivo, apreciam a taxa de câmbio e limitam o crescimento
do país defendido pelos "desenvolvimentistas".
Capitulação, ou beijando a cruz
Depois disso, dessa experiência de administração
extremamente favorável aos interesses do capital estrangeiro no primeiro
mandato, é certo que a reeleição de Lula não
necessitou, "dessa vez", do beneplácito do sistema financeiro
e das classes dominantes, "establishment" no dizer de Negri e Cocco.
O que esses autores não mencionam, no entanto, é que isso
já foi necessário, nas eleições de 2002.
Naquele momento, quando o "establishment" exigiu o compromisso de
Lula e do PT com a política neoliberal, eles não se furtaram a
escrever a "Carta ao Povo Brasileiro", mais conhecida como Carta aos
Banqueiros de todo o Mundo, na qual se comprometeram a não romper
contratos ou, em português claro, a não mexer com os lucros do
capital financeiro, principalmente sob a forma de juros da dívida
pública.
Para quem não lembra mais, dois trechos significativos: "Premissa
dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos
e obrigações do país"; e "Vamos preservar o
superávit primário o quanto for necessário para impedir
que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade
do governo de honrar os seus compromissos". A carta pode ser consultada em
http://www.pt.org.br/site/assets/carta_ao_povo_brasileiro.pdf
.
Ou seja, quando foi necessária a anuência explícita das
classes dominantes, Lula e o PT não se furtaram a pedir claramente esta
aprovação. Beijar a cruz, na feliz expressão de Paulo
Arantes. Ou capitulação, no dizer mais direto de Francisco de
Oliveira
[3]
.
Ao invés da ficção criada por Negri e Cocco, temos no
país o que Francisco de Oliveira define, em
entrevista
à
Gazeta
Mercantil
(7/12/2006, pg. A-6), como "uma hegemonia ao avesso. Quem
dá a direção para onde vai a sociedade, simbolicamente,
são os dominados, mas o poder, de fato, está com os de cima. ...
Os de baixo estão governando para os de cima" (
Gazeta Mercantil,
07.12.2006, pg. A-6). Não os de baixo propriamente..., porém
como diz Francisco de Oliveira, "simbolicamente".
"Agora, a única frustração que eu tenho é que
os ricos não estejam votando em mim. Porque eles ganharam dinheiro como
ninguém no meu governo."
(Lula.
FSP,
18.09.2006, pg. A6)
De fato, nunca dantes na história deste país, para continuar com
o jargão de Lula, os capitalistas ganharam tanto dinheiro, seja com a
especulação financeira, seja com os juros ou com as
exportações de commodities.
De acordo com a revista "Exame Melhores e Maiores", de julho
de 2006, as 500 maiores empresas que atuam no país tiveram, em 2005, seu
maior lucro histórico. Utilizando o dólar com valor constante de
2005, de US$2,56 mil milhões de lucros apurados em 2002, elas atingiram
US$36,78 mil milhões em 2005 (pg. 58), um aumento de 1.334% em
três anos.
Os fatos são inquestionáveis. O governo de Lula e do PT aplicou,
durante todo seu primeiro mandato, a política econômica
neoliberal, com tanto vigor quanto FHC, Fernando Collor, senão maior,
como diz o próprio Collor. Todos os elementos da política
econômica neoliberal estão presentes: arrocho monetário,
com os maiores juros do mundo decorrentes das "metas para a
inflação"; arrocho fiscal, com aumento no superávit
primário e corte dos investimentos públicos; câmbio
apreciado, repetindo os níveis da época das bandas cambiais de
Gustavo Franco; além das várias medidas que favorecem o capital
financeiro e demais frações da classe dominante.
Ao contrário do delírio de Negri e Cocco, achamos que os
elementos apresentados acima comprovam o que já vimos dizendo há
algum tempo: "que Lula e o PT no governo continuariam aplicando a mesma
política do imperialismo iniciada por Collor e continuada por FHC em
seus dois mandatos" e "que o PT representa os interesses das classes
dominantes no geral, e de alguns de seus setores em particular hoje os
setores mais estreitamente ligados ao imperialismo"
(Eleições. Por Que Lula?)
, dos quais o capital financeiro e o capital internacional, principalmente.
Notas:
[1] O rascunho inicial deste artigo já estava pronto ao final de 2006.
Assim, ainda não dispúnhamos de informações
concretas sobre o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC),
anunciado no discurso de posse de Lula, em 1º de janeiro de 2007, e
divulgado três semanas depois.
Outro artigo, em elaboração, analisará em detalhes o PAC e
mostrará que essa mesma e falsa disputa "direita e esquerda"
contamina a análise concreta de seus objetivos e impactos.
Esses, por sua vez, são ao mesmo tempo perfeitamente adequados ao
processo de
"regressão a uma situação colonial de novo tipo"
que analisamos/criticamos/denunciamos em nosso sítio no
Boletim do CeCAC de Março/Abril de 2006
e mantêm o capital financeiro em sua situação
inatacável.
[2] Joaquim Levy é um "Chicago boy", ex-funcionário do
FMI, que, herdado da equipe econômica de FHC, comandou o arrocho fiscal
do primeiro mandato de Lula. Agora ele foi "tirado" de seu emprego em
Washington para repetir sua política no governo do estado do Rio de
Janeiro.
[3] Ver ARANTES, Paulo E. Beijando a Cruz.
Revista Reportagem,
abril de 2003. Republicado em ARANTES.
Zero À Esquerda.
SP: Conrad Editora
(Coleção Baderna), 2004, pp. 301-306. E também OLIVEIRA,
Francisco de. O Momento Lênin.
Novos Estudos Cebrap,
nº 75, julho de 2006.
Nota de resistir.info:
[NR 1] Alusão ao filme "O dragão da maldade contra o santo
guerreiro", de Glauber Rocha (1939-1981).
15/fevereiro/2007
[*]
Economista. Presidente do Centro Cultural Antonio Carlos Carvalho (CeCAC) -
Rio de Janeiro.
O original encontra-se em
http://www.cecac.org.br/MATERIAS/SantoGuerreiro2007.htm
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|