Os Donos do Poder: a macro-estrutura

por Samuel Pinheiro Guimarães [*]

"Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos"
Sophia de Mello Breyner
Retrato de uma Princesa Desconhecida,
Obra Poética III, Editorial Caminho

  • Disparidades, vulnerabilidades e subdesenvolvimento
  • Origens
  • A macro-estrutura hegemônica de poder e suas estratégias
  • Visões estratégicas na macro-estrutura
  • A visão economicista do mundo
  • A estratégia liberal
  • A estratégia desenvolvimentista
  • A visão política do mundo
  • A estratégia política liberal
  • A estratégia política reformista
  • A visão estratégica militar
  • A estratégia diplomática
  • A disputa entre as visões estratégicas

    . DISPARIDADES, VULNERABILIDADES E SUBDESENVOLVIMENTO

    1. As questões que atormentam o quotidiano de cada brasileiro – ignorância, pobreza, violência, poluição, racismo, corrupção, arbítrio, mistificação, desemprego, miséria e opulência – são manifestações das extraordinárias disparidades internas, das crônicas vulnerabilidades externas e do processo de subdesenvolvimento que caracterizam a sociedade brasileira. Tais disparidades, vulnerabilidades e subdesenvolvimento se encontram profundamente entrelaçados, em relações circulares de causa e efeito que são cumulativas, isto é, que se agravam mutuamente com o tempo.

    2. As disparidades e vulnerabilidades econômicas, sociais, políticas e culturais são reconhecidas por todos, todos as deploram, todos reconhecem a urgência em superá-las como imprescindível ao desenvolvimento econômico, à preservação da democracia e à construção de uma sociedade mais justa e menos desigual e, portanto, capaz de garantir a todos os brasileiros, ricos e pobres, o desfrute de uma existência agradável.

    3. As disparidades que resultam de mecanismos formais e informais de concentração e de conservação de poder em suas dimensões econômicas, políticas, ideológicas e culturais, são reconhecidas pela minoria que delas se beneficia e pela imensa maioria que delas é vítima. Porém, de um lado, os que delas se beneficiam as condenam apenas na retórica, pois defendem com vigor, na prática, os mecanismos específicos que geram aquelas disparidades. Aceitam, em geral com entusiasmo, a idéia de que se pode e se deve desenvolver ações humanitárias, de natureza privada de preferência, e de que cabe à sociedade, como um todo, se tornar solidária e assim atenuar as desigualdades e combater as injustiças.

    4. No entanto, sempre que se apresenta qualquer proposta, ou se inicia ação mais firme, de parte do Estado ou de movimentos sociais, contra os mecanismos de concentração de poder, é ela considerada como um atentado aos direitos privados em geral e uma intervenção indevida e absurda do Estado. A solução para as disparidades sociais, no entender de seus beneficiários, somente poderia vir a longo prazo, resultado da educação da massa desvalida, no fundo pobre, miserável e oprimida por não ter sido capaz de se educar. Implicitamente, as estruturas sociais, políticas e econômicas são consideradas como justas e até naturais. Por essa razão devem ser preservadas, assim como a legislação e o aparelho judicial e policial que as garantem, e podem apenas sofrer ligeiras adaptações, a serem feitas pelos representantes dos próprios beneficiários da concentração de poder, inclusive para garantir sua sobrevivência, e somente quando as tensões causadas pela exclusão social se agravam muito perigosamente.

    5. Do outro lado, a maioria da população, vítima dessas disparidades e dos mecanismos de concentração de poder que as agravam e reproduzem, não tem sido capaz de se mobilizar para promover a reversão desses mecanismos e a conseqüente redução das disparidades. A desmobilização permanente dessa massa se faz pela difusão de visões da sociedade que as responsabilizam pelas suas misérias; pela distração incessante, promovida pela mídia, através do culto ao individualismo, à violência anômica, às personalidades dos esportes e do show business; pela exploração do sexo; pelos hábitos sociais introduzidos pela televisão; pela ação de seitas religiosas que atribuem a culpa de suas desditas sociais ao indivíduo pecador que cede ao demônio; e pelo incessante vilipendiar da política e dos políticos, apresentados como corruptos, sem que se indiquem alternativas, a não ser a implícita submissão resignada da massa ao status quo e ao destino.

    6. Finalmente, a intimidação difusa das populações pobres e marginalizadas pela polícia dificulta sua organização social e política enquanto o sistema político-eleitoral garante que o controle do Estado, e portanto dos recursos sociais, da elaboração das leis e da sua execução, permaneça nas mãos dos beneficiários das disparidades. Esse vínculo entre os beneficiários das desigualdades e o sistema político-administrativo garante a conservação e até o agravamento dos mecanismos de concentração de poder e riqueza tais como, e apenas a título de exemplo, o sistema tributário altamente regressivo (i.e. que tributa mais quem ganha menos) e a extraordinária evasão, descontrolada e despudorada, de impostos praticada pelas elites econômicas.

    7. As desigualdades de renda são proclamadas por todos os institutos e agências nacionais e internacionais e o Brasil anualmente conquista as piores classificações em termos de concentração de renda. Os índices frios que medem a concentração de renda escondem a realidade das condições desumanas de vida da enorme parcela da população que se encontra abaixo da linha de pobreza, em péssimas condições de alimentação, de saúde, de higiene, de habitação, de transporte, de segurança e, na outra extremidade, o consumo faustoso, perdulário e conspícuo dos multimilionários, antigos e emergentes, que se descreve com tanto encanto e graça nas colunas sociais e nas revistas especializadas: suas jóias, festas, helicópteros e jatos, segurança privada e mansões nababescas, palácios-fortalezas em oceano de barbárie violenta e miserável. São duas realidades terríveis que não existem uma sem a outra, monstruosas irmãs siamesas que são. As desigualdades de riqueza são menos comentadas que as de renda mas são muito mais extraordinárias, como se verifica pelos índices de concentração de propriedade rural e urbana, de posse de títulos da dívida publica, da poupança bancária e das ações de empresas, sendo mais fundamentais do que as de renda para explicar as desigualdades de toda ordem.

    8. As desigualdades políticas se manifestam na influência do poder econômico no processo eleitoral, nas atividades do Legislativo, no quotidiano do Poder Executivo, nas decisões do Judiciário, na esfera penal, policial e penitenciária. No processo eleitoral, a influência do poder econômico das grandes empresas e do crime organizado se verifica no financiamento de campanhas eleitorais, que se torna necessário devido em grande parte ao custo da propaganda na televisão e à compra de votos. Esse custo torna quase inacessível o exercício efetivo da política ao cidadão que não for rico ou que não for apoiado pelo poder econômico, enquanto a remuneração dos legisladores, sempre considerada excessiva pela mídia, torna quase impossível a cidadãos assalariados e honestos se candidatar e exercer seu mandato devido às dificuldades de, ao final dele, voltar à sua atividade profissional anterior, exceto quando vinculados a entidades de classe. De outro lado, indivíduos que enriquecem em atividades privilegiadas ou ilegais, privadas ou vinculadas de alguma forma ao Estado, por contratos, isenções tributárias, créditos, etc, se candidatam ou para conquistar a imunidade parlamentar, que dificultará o exame de suas fontes de enriquecimento ilícito, ou para proteger grupos corporativos (ruralistas, donos de escolas e de hospitais, organizações religiosas etc) e assim assegurar os privilégios legais e fiscais de que gozam e que garantem seu enriquecimento pessoal e das entidades a que pertencem.

    9. No processo legislativo, historicamente de um lado os grandes interesses econômicos financiam as eleições e organizam seus representantes em defesa de legislação que garanta seus privilégios enquanto o Governo, de seu lado, por meio do controle da liberação de verbas e do preenchimento de cargos, compra sistematicamente o voto de parlamentares e obtém o seu apoio. A essa troca recíproca de favores, parlamentares muitas vezes se sujeitam pela impossibilidade de fazer realizar projetos de interesse das comunidades que os elegeram sem antes conquistar a boa vontade das autoridades do Governo que, só então, liberam as verbas necessárias, apesar de estarem essas já aprovadas. Esse é um processo de corrupção da vontade política do povo mais grave do que a corrupção econômica que se expressa nas percentagens, comissões, desvios de verbas, licitações fraudulentas etc.

    10. Na administração pública, o orçamento autorizativo e não determinativo confere ao Executivo ampla liberdade de ação assim como tem sido o instrumento para convencer parlamentares. De outro lado, os grandes grupos econômicos exercem enorme influência sobre os processos decisórios, de natureza patrimonial, como no caso de privatizações, e de natureza regulamentadora, com a finalidade de se subtrair à fiscalização das agências do Estado, de evadir a tributação, em especial a do imposto de renda, e de influir sobre a elaboração das normas relativas a tarifas públicas, etc. Os grandes grupos econômicos, especialmente os grupos estrangeiros, há décadas recebem tratamento de favor junto à administração fazendária e creditícia, tal como isenções tributárias e acesso privilegiado ao crédito público e a condições extraordinárias para o pagamento de dívidas junto ao Tesouro e aos bancos oficiais.

    11. No Judiciário, grandes empresas conseguem escapar da tributação ou protelar o pagamento de impostos através de manobras legais. Na área criminal, os crimes de colarinho branco, de corrupção, fraude e sonegação são levemente punidos e seus autores muitas vezes escapam à condenação por falhas da legislação, ou de processo ou por leniência dos juizes. Enquanto isso ocorre, o fisco é implacável com a imensa maioria assalariada e a criminalidade comum não só é reprimida de forma bárbara, violenta e arbitrária como os criminosos, e às vezes indivíduos que são apenas suspeitos, quando escapam ao julgamento sumário dos esquadrões da morte, são lançados nas garras medievais do sistema penitenciário, onde vegetam, são barbarizados e muitas vezes permanecem até mesmo após cumpridas suas penas.

    12. O aparelho policial age com extrema severidade com as populações pobres, negras e mestiças e com extrema leniência com a população de classe média branca e em especial com os ricos e poderosos. Assim, a título de exemplo, pequenos intermediários do varejo do narcotráfico são sistematicamente caçados e liquidados enquanto seus organizadores, financiadores e consumidores são simplesmente ignorados pelo aparelho policial, e tanto mais quanto mais ricos forem.

    13. As desigualdades educacionais e culturais se revelam nos índices de analfabetismo, na má qualidade da escola pública, no sistema universitário gratuito, no crescente hábito das elites e classe média alta de enviar seus jovens para estudar no exterior, na degradação física e qualitativa das universidades, na expansão do ensino privado pago e ineficiente, na escassez e deficiência de formação dos professores. Contribuem para manter e agravar essas desigualdades a liberdade desbragada da televisão comercial e o custo da televisão paga, a promoção desenfreada de ídolos dos esportes, da música popular e do sexo, feita pelos meios de comunicação, e o alto preço relativo dos ingressos a qualquer espetáculo cultural de qualidade.

    14. De um lado do fosso cultural se encontra a maioria esmagadora da população, descendente de gerações e gerações de escassa ou nenhuma instrução, que se revela nos índices históricos de analfabetismo, hoje anestesiada pela mídia comercial e opiática, com reduzida capacidade de se beneficiar do precário sistema educacional público e mesmo de nele apenas permanecer devido à necessidade que tem de gerar renda (o que resulta em elevados índices de evasão), sujeita a um aprendizado ministrado por professores leigos, sem formação pedagógica adequada. Finalmente, prejudicada em seu desenvolvimento intelectual pela deficiência alimentar e sanitária e, ironia das ironias, acusada de ter baixo nível de renda por não querer se educar.

    15. Do outro lado do fosso, a minúscula minoria da população, convivendo em ambientes familiares e sociais de elevado nível cultural, com acesso a escolas secundárias de alto nível e caríssimas, à universidade gratuita ou privada de melhor qualidade e a manifestações culturais sofisticadas, capaz de financiar seus estudos no exterior, o que tem conseqüências graves para a contínua evasão de cérebros, para a distorção de imagem da sociedade brasileira e para a criação de anseios e angústias de modernização americanizante do país e correspondente desprezo pela sua própria história e por seu povo.

    16. Naturalmente, há indivíduos que conseguem superar os extraordinários obstáculos gerados pelas disparidades de toda ordem e atingir situações de destaque econômico, político e cultural. Trata-se de ínfima minoria em relação à sociedade brasileira como um todo e na realidade esses casos isolados apenas confirmam a regra da permanência e do agravamento das disparidades sociais, e resultam de circunstâncias aleatórias individuais.

    17. As vulnerabilidades externas da sociedade brasileira estão intimamente vinculadas às disparidades internas e aos processos de concentração de poder que as criam e agravam. Essas vulnerabilidades não são apenas econômicas mas também políticas e militares, ideológicas e culturais. Têm elas sua origem nos mecanismos históricos que constituíam a estrutura e a trama das relações entre o Brasil Colônia e a Metrópole portuguesa, no seio da dinâmica de expansão do capitalismo, a partir de seu centro de irradiação europeu, no impulso de formação da economia mundial.

    18. As vulnerabilidades externas se associam a visões do mundo e da sociedade brasileira, de seu funcionamento econômico e político, e afetam de forma diferenciada de um lado os setores beneficiários, e de outro os setores vítimas das disparidades internas. Essas vulnerabilidades decorrem da forma de criação e de expansão da economia capitalista brasileira e de sua inserção na economia mundial; do modo como se estruturou através dos tempos o sistema político brasileiro; de sua inserção no sistema mundial de poder; e do processo de formação da cultura brasileira, e de seus vínculos com a cultura mundial, em especial com os centros dinâmicos de elaboração e difusão.

    19. A crônica vulnerabilidade externa econômica se manifesta no comércio pela histórica importância das exportações no total da atividade econômica; pela concentração ainda elevada da pauta em poucos produtos primários ou semi-elaborados; pela dependência de importação de energia e de bens de capital. Na esfera financeira, o crônico endividamento externo cujo serviço contribui, juntamente com outras remessas, para crises periódicas de pagamentos, moratórias e finalmente submissão das políticas econômicas internas aos ditames de Governos estrangeiros e de agências internacionais.

    20. A vulnerabilidade política e militar decorre da inexistência ou insuficiência de produção doméstica de material bélico e de pesquisa tecnológica na área de armamentos; da convicção ideológica em certas elites da escassez de poder e da conseqüente, ainda que inconfessada, necessidade de alinhamento político; e, finalmente, do complexo de inferioridade político-militar, de natureza e origem colonial, que inclui o medo do pecado mortal que é, para a Colônia, ter armas.

    21. A vulnerabilidade cultural decorre do atraso cultural e da valorização excessiva da cultura dos centros europeus e hoje americanos em combinação com a desvalorização e o desprezo sistemático das manifestações culturais brasileiras pela mídia (e por muitos intelectuais de qualquer tendência política) e da ausência de política cultural que as promova, preserve e defenda, em especial naquelas áreas em que a atividade cultural passou a ser objeto da produção e consumo massificado de interesse das mega-empresas internacionais de entretenimento.

    22. O subdesenvolvimento econômico brasileiro não é um estado mas sim um processo, que se revela em toda a sua força e significado na crescente diferença entre a renda per capita brasileira e a dos países altamente desenvolvidos e pela extrema e persistente concentração de renda e riqueza. Apesar dos estudos que afirmam ter sido o Brasil o país que mais cresceu nos últimos cem anos, a realidade é que se em termos absolutos o Brasil é a oitava nação do mundo em produção (em paridade de poder de compra), em contraste, em termos relativos, sua renda per capita é a 85ª e o país não se distingue nem pela capacidade de gerar novas tecnologias nem por descobertas científicas, nem por exportar bens de alto valor agregado o que significaria ser competitivo nos setores de ponta da economia capitalista. Por outro lado, a distância entre a renda per capita dos países altamente desenvolvidos e a do Brasil cresceu de cerca de US$ 1.500 (1950) para US$ 20.000 (1999) o que sugere claramente a existência de um processo de subdesenvolvimento relativo.

    23. Essa diferença crescente de renda e de capacidade científica e tecnológica entre o Brasil e os países altamente desenvolvidos é particularmente grave no atual momento da evolução do capitalismo. Caracteriza-se esse momento pela aceleração do progresso científico e tecnológico; pela transformação profunda dos processos de produzir e de guerrear, em especial devido aos progressos da informática, da biotecnologia, da nanotecnologia e da robótica; pela concentração de poder político, militar, tecnológico e econômico, e finalmente pela consolidação das estruturas hegemônicas de poder, através de uma crescente normatização internacional restritiva da autonomia de ação dos Estados que integram a periferia do sistema mundial, tais como o Brasil.

    24. Esse processo de subdesenvolvimento está estreitamente vinculado às desigualdades sociais extremas e à crônica vulnerabilidade externa que determinam, por sua vez, a precariedade da situação dos fatores de produção no Brasil — capital, recursos naturais, trabalho e tecnologia — e das principais instituições sociais, tais como o sistema político-partidário, a administração pública, as forças armadas, a imprensa e o sistema educacional. Ademais, a flagrante ampliação do hiato que separa o Brasil dos países altamente desenvolvidos tem causado de um lado uma sensação de impotência, desânimo e pessimismo e, de outro lado, uma espécie de justificativa para aqueles setores no centro do sistema nacional que abdicaram de sua responsabilidade de defender e promover a autonomia da sociedade brasileira, de enfrentar os desafios internacionais e de resistir a ação subordinadora das estruturas hegemônicas de poder.

    ORIGENS

    25. As extraordinárias desigualdades sociais – de natureza econômica, cultural e política – estão intimamente relacionadas com a crônica vulnerabilidade externa, de natureza comercial e financeira, mas também política e militar, em um processo de causação circular, e estão elas na origem das dificuldades em superar o subdesenvolvimento, tanto em seu aspecto de insuficiente produção como de distorcida distribuição. Importa assim lançar alguma luz sobre suas origens e sobre seu impacto sobre a formação da macro-estrutura de poder.

    26. As origens remotas das desigualdades econômicas de hoje se encontram no sistema de exploração que a Metrópole portuguesa impôs à Colônia brasileira, fundado na escravidão, no latifúndio, no monopólio comercial parasitário de trânsito e na proibição às atividades manufatureiras mesmo as mais simples, todos mecanismos óbvios de concentração de riqueza, tanto em favor da Metrópole como das classes proprietárias, dos homens livres e dos comerciantes reinóis na Colônia.

    27. O esforço de manter em perfeita ignorância sucessivas gerações de negros escravos, proibindo-os de aprender a ler e de construir relações de família, a proibição de imprensa e de cursos superiores no Brasil, o controle da educação pelas ordens religiosas, imbuídas do conservadorismo social e anti-científico da Contra-Reforma, se encontram entre as causas mais profundas do atraso e das desigualdades culturais extremas.

    28. As atuais desigualdades políticas se originaram no regime, por definição, desigual da Colônia; no controle e na repressão do Estado português e de seus representantes no Brasil sobre quaisquer veleidades de maior autonomia de parte dos brasileiros; nos estatutos jurídicos de concessão de terras; na escravidão e na vinculação entre propriedade, profissão e direito de participação política.

    29. A crônica vulnerabilidade externa decorre do sistema de exploração econômica que sempre teve como objetivo principal sustentar não só a Corte, mas toda a sociedade portuguesa, caracterizada por disseminado parasitismo, através do exercício predatório de atividades produtivas na Colônia que gerassem tributos e oportunidades de comércio de intermediação para Lisboa.

    30. Essas desigualdades se instalam e se enraízam desde os primórdios da colonização, estando expressas de imediato na situação subordinada do indígena, sujeito à escravização, à incorporação cultural forçada e ao extermínio, nos privilégios políticos e econômicos dos donatários hereditários e dos capitães-gerais, no sistema de concessão de terras, na reserva das funções públicas a portugueses, no regime escravocrata fundado na violência privada.

    31. Apesar da sucessão de ciclos econômicos e de regimes políticos, os mecanismos sociais que consagravam as desigualdades e as acentuavam simplesmente permaneceram intocados quando da passagem fortuita do Brasil de Colônia a Reino Unido, da transição familiar de Reino a Império e mais tarde da Monarquia à artificial proclamação da República.

    32. Muitas foram as revoltas e rebeliões dos oprimidos contra o sistema econômico e político colonial mas sobreviveu ele a essas revoltas, as dominou pela violência e as fez esquecer do povo. A proclamação da Independência e o Império não significaram uma ruptura com os mecanismos de geração de desigualdades na medida em que mantiveram portugueses em posições de poder político por algum tempo, e econômico por longo tempo, não promoveram a educação geral da população mesmo a livre, preservaram intacto o sistema de propriedade e exploração econômica e, em conseqüência, a causa estrutural da opressão, das desigualdades, das revoltas e do atraso econômico do país.

    33. Em situação econômica interna sempre precária, e com o objetivo de garantir a arrecadação de tributos e de ampliar os lucros do monopólio comercial, Portugal impedia o surgimento de atividades produtivas concorrentes da sua escassa produção doméstica ou das manufaturas que intermediava entre os centros manufatureiros avançados europeus e o Brasil. Assim sufocava o desenvolvimento das forças produtivas na Colônia, já de si amortecidas pela dispersão populacional, dificuldades de transporte e efeitos nocivos da escravidão e do preconceito social em relação às atividades manuais e mecânicas de artesanato e manufatura, consideradas indignas de homens livres.

    34. A simplicidade técnica e a eventual exaustão das atividades econômicas na Colônia – extrativas, agrícolas e mineradoras – se aliavam às restrições artificiais e dificuldades naturais que se antepunham ao desenvolvimento das manufaturas para abastecer o incipiente mercado interno. Essa conjugação de circunstâncias faria com que a economia brasileira dependesse fortemente do comércio exterior e sofresse, desde a Colônia, com as variações de demanda externa e com o surgimento de concorrentes à sua produção. Assim, a política colonial portuguesa, ao estimular a monocultura latifundiária e escravista de exportação e ao impedir a diversificação de atividades na Colônia, levava à exaustão cíclica das atividades primárias e a mantinha cronicamente vulnerável do ângulo comercial.

    35. A face financeira da persistente vulnerabilidade externa decorre do processo de endividamento perene do Estado português, perdulário e parasita, que dependia das casas bancárias estrangeiras para financiar a atividade produtiva e comercial nas Colônias e a armação das frotas indispensáveis à defesa do sistema de arrecadação de tributos e de comércio. Os métodos vexatórios e extorsivos de arrecadação de tributos estiveram sempre vinculados à essa crônica vulnerabilidade externa do Estado português e mais tarde do Estado brasileiro e à necessidade de extrair recursos da população para fazer face ao serviço e à amortização de empréstimos. A variação de fortuna de um sistema econômico vulnerável levava, na crise comercial, a agravar o endividamento para manter os faustosos padrões de consumo da Corte e de sobrevivência da própria sociedade portuguesa, cuja economia interna não se havia desenvolvido por se ter tornado parasita do sistema colonial selvagem de pirataria e predação nas Índias e, posteriormente, da exploração do braço escravo no Brasil e dos lucros extraordinários do monopólio comercial, em especial do tráfico de escravos.

    36. Essa situação de crônica vulnerabilidade externa comercial e financeira, típica do império colonial português, transferiu-se para o Brasil no ato de seu nascimento como nação livre. Para conseguir ter sua independência reconhecida por Portugal e pelas Grandes Potências européias da Santa Aliança, reacionária e restauradora, teve o Brasil de assumir, por tratado solene, importante dívida de Portugal para com a Grã-Bretanha, Potência aliada e protetora do Estado português e interessada em se expandir, sem intermediário, no Brasil.

    37. Durante o Império, foram assumidos pelo Estado brasileiro pesados empréstimos para financiar campanhas militares, como a da Cisplatina, em especial junto às casas bancárias inglesas que contavam sempre com o apoio político da Coroa britânica. Com a Primeira República, a política de valorização do café, fundada em empréstimos externos, foi poderoso instrumento de concentração de renda e a principal causa do endividamento externo do Estado brasileiro. A Velha e carcomida República, por escassez de recursos mas em especial por motivos ideológicos, pouco atuaria para promover a diversificação da economia ainda que fosse apenas através da construção de modesta infra-estrutura física e social.

    38. Essa situação não se modificou em seus traços básicos apesar dos surtos de atividade manufatureira, como ocorreu na época da Tarifa Alves Branco e da Primeira Guerra Mundial, e das políticas de industrialização e de construção da infra-estrutura física, como foram os Governos Vargas e Kubitschek. Pelo contrário, as disparidades sociais foram se agravando e multiplicando até atingir os extremos dos dias de hoje, pois a população cresceu e se urbanizou e os mecanismos de concentração de renda e poder se desenvolveram mais rapidamente do que as tentativas de redistribuição e desconcentração. Quanto ao ângulo externo, apesar da preocupação e dos esforços periódicos de diversificação de exportações e de mercados, a vulnerabilidade comercial permaneceu. Renovou-se a pauta de exportações mas sua característica se mantém até hoje: predominam os bens primários (onde a soja, suco de laranja e minério de ferro substituíram em importância produtos tradicionais, como o café), acrescidos hoje das commodities industriais como têxteis, aço e calçados. Aumentou, de outro lado, com a industrialização, a necessidade de importar para expandir a produção e manter níveis de consumo em momentos de crise, fazendo com que a balança comercial, na ausência de políticas ativas, apresente forte tendência ao déficit, o que gera políticas de baixo crescimento. A vulnerabilidade financeira se agravou na medida em que a tomada de empréstimos públicos e privados foi incentivada acriticamente e em que o estímulo ao ingresso desordenado de capitais especulativos e de investimentos diretos foi de tal ordem que hoje sua influência e participação na economia é maior do que em qualquer época. O serviço dos compromissos brasileiros com juros, amortizações e lucros passou a depender de um esforço permanente, intenso e angustiado para captar novos recursos, o que vem a contribuir em última instância, por seus efeitos sobre a política de juros e de corte de investimentos públicos, para a estagnação econômica, e para a subordinação das políticas de toda ordem, e não apenas econômicas, à orientação das agências internacionais e às sugestões dos governos das Grandes Potências, em especial dos Estados Unidos.

    A MACRO-ESTRUTURA HEGEMÔNICA DE PODER E SUAS ESTRATÉGIAS

    39. Assim, devido à forma como se organizaram a propriedade da terra, o mercado de trabalho, com base na escravidão, e o poder político e foram superados ciclos e crises, foi-se formando no Brasil ao longo da sua história uma macro-estrutura hegemônica de poder, constituída por grupos extraordinariamente minoritários, que se beneficiam desse sistema de disparidades e vulnerabilidades. Ademais, à medida em que se incorporaram novas etnias à sociedade, se diversificou a atividade econômica, se construiu a infra-estrutura, se ocupou o território, se integraram as desarticuladas regiões em um mercado único e se urbanizou a sociedade, foram surgindo novos grupos de interesse. Esses grupos se incorporam gradualmente à macro-estrutura de poder, buscando espaço para influir e executar políticas em seu próprio beneficio, em disputa e cooperação com os grupos dela já integrantes.

    40. De outro lado, e em contraposição a essa macro-estrutura, os mesmos fatores geraram uma enorme periferia de populações dispersas, desarticuladas, oprimidas e miseráveis no campo e nas cidades. Entre a macro-estrutura e sua periferia, foi-se formando uma camada de profissionais liberais, intelectuais, pequenos comerciantes e industriais, funcionários públicos, empregados no comércio, artesãos e operários qualificados que almejam integrar aquela macro-estrutura, com ela se identificam ideologicamente, desprezam a massa negra, mestiça e branca pobre, operária, trabalhadora ou marginalizada, e se beneficiam de pequenos privilégios.

    41. A manutenção de sistema tão, e cada vez mais, desigual socialmente e de tamanha concentração de poder, em situação de recorrentes crises externas com profundos reflexos internos, somente foi possível graças a uma combinação de esquemas de força, de desarticulação social e de persuasão ideológica. Somente a convicção íntima da maioria da população de que aqueles sistemas de extorsiva exploração econômica da Colônia pela Metrópole, dos escravos pelos senhores, de opressão política da população brasileira pelas autoridades do Estado, portuguesas e depois nacionais, eram naturais e os melhores possíveis, aliado ao uso implacável da força contra os que se rebelavam, poderia ter assegurado a sobrevivência daqueles sistemas durante a Colônia e o Império e seus sucessores no Século XX. As ideologias fundamentais elaboradas na macro-estrutura para justificar as extraordinárias desigualdades sociais, as visões do funcionamento e do desenvolvimento desejável para a sociedade brasileira, as interpretações de situações conjunturais e as políticas propostas para enfrentá-las são essenciais para compreender como um sistema tão desigual desde seus primórdios pode persistir no tempo e sobreviver às crises que o atingiram ciclicamente e às próprias tentativas de reformá-lo.

    42. O poder da macro-estrutura hegemônica da sociedade brasileira tem sua última instância no sistema jurídico, policial e penitenciário que permitia a repressão violenta e implacável daqueles que se rebelavam contra a autoridade portuguesa e mais tarde contra suas herdeiras, as autoridades imperiais e republicanas da República Velha e do Estado Novo; do regime democrático da Constituição de 1946, da Ditadura e da Nova República de 1985.

    43. Os aspectos jurídicos principais foram o estatuto da escravidão; o poder de vida e morte reconhecido pelo Estado aos grandes proprietários rurais sobre seus escravos, dependentes e familiares; a dificuldade de acesso à propriedade agrária, consagrada na Lei de Terras de 1850; a vinculação, após a Independência, do poder político à propriedade e à renda e nos tempos atuais a consagração da violência como forma aceitável de comportamento das autoridades do Estado em relação à população pobre, negra e mestiça, considerada e tratada a priori, em razão de sua aparência étnica e econômica, como criminosa.

    44. O tratamento arbitrário, violento e desumano, porém legal, que foi dado durante cerca de 350 anos aos escravos e à população mestiça e branca pobre, os quais eram vítimas dos senhores e do Estado quando fugiam ou se rebelavam, e mais tarde da polícia, com o objetivo de mantê-los disciplinados e sujeitos à exploração de sua força de trabalho e subordinados aos caprichos dos ex-senhores, simplesmente permaneceu após a Abolição, tendo sido herdado pelas instituições descendentes daquelas.

    45. Assim, a violência se consagrou na prática como forma do Estado se relacionar com a enorme maioria da população. As classes, grupos e categorias privilegiadas que integram a macro-estrutura de poder e as classes médias, que se sentem vítimas, de fato ou potenciais, da revolta anômica e cada vez mais armada dos oprimidos, aceitam e aprovam socialmente a violência do Estado, através da polícia, da justiça e do sistema penitenciário, cujas prisões apresentam condições semelhantes às das senzalas, senão piores.

    46. Todavia, a violência exercida de forma onipresente e quotidiana teria custo altíssimo e seria insuficiente para manter em paz razoável um sistema tão desigual e com tamanhos extremos de miséria e riqueza ostentada. A persuasão e a convicção ideológica se tornam assim essenciais para que todos os grupos — beneficiários, vítimas ou marginais — se convençam da inevitabilidade e até da benemerência do sistema e assim possam uns gozar e outros suportar as injustiças, enquanto mantêm suas consciências, tranqüilas umas, anestesiadas outras.

    47. A persuasão ideológica se verifica através da construção, manipulação e difusão de quatro teorias que justificam as desigualdades sociais extraordinárias. Segundo a primeira dessas teorias as desigualdades existem verdadeiramente mas são naturais e, portanto, justas; a segunda afirma que as desigualdades existem de fato e são lamentáveis mas que os culpados pelas desigualdades são os próprios oprimidos; a terceira aceita a existência das desigualdades, as lamenta e culpa, de forma vaga, a sociedade como um todo mas argumenta que somente podem ser superadas a longo prazo; finalmente, a última teoria diz que as desigualdades existem, são profundamente injustas, mas que são pouco importantes para o cristão verdadeiro, que tem diante de si o desafio e a tarefa essencial e árdua de conquistar a Vida Eterna.

    48. A teoria da superioridade natural das raças puras e a maldição dos mestiços, que reuniriam os defeitos das raças de que descendem sem herdar-lhes as qualidades, conduziria às conclusões científicas sobre a preguiça, a ociosidade, a incapacidade técnica e empresarial, a luxúria e outros vícios que caracterizariam o povo brasileiro e que explicariam sua privação, pobreza e barbárie. Essa teoria , como as demais, desvia a atenção dos temas da propriedade, da opressão política, da omissão do Estado, da violência da escravidão e do trabalho assalariado sem proteção, causas verdadeiras do estado deplorável da massa da população. Alguns levariam ao extremo o argumento da raça, a ponto de especular sobre qual teria sido o destino do Brasil se, ao invés de ter sido colonizado por portugueses, raça ibérica inferior e mestiça, o tivesse sido por holandeses ou ingleses.

    49. A ideologia da raça pura esteve sempre ligada intimamente à ideologia de superioridade de civilização. O exercício do domínio sobre índios, negros, pobres e mestiços se justificaria mais pela civilização do que pela raça e pela missão de converter à modernidade tais seres de civilizações (ou situações) inferiores e arcaicas. Assim, o sucesso dos brancos europeus e de seus descendentes em acumular capital e em deter o controle político do sistema não se deveria à violência dos regimes de escravidão, da propriedade e da Colônia mas sim à sua superioridade étnica e também civilizacional.

    50. A ideologia de superioridade da raça branca, apesar da origem mestiça dos portugueses, permaneceu durante toda a Colônia e o Império e foi confirmada pelas teorias do francês Gobineau, que privou da amizade do Imperador D. Pedro II, o rei-filósofo, que serviram para justificar políticas de imigração que tinham a finalidade explícita de promover o branqueamento gradual da sociedade brasileira. Os imigrantes sofreram restrições legais para ter acesso à propriedade rural, pois se os ideólogos do branqueamento os apreciavam como brancos os latifundiários e seus representantes no Parlamento os desejavam principalmente como mão-de-obra barata. Esses imigrantes se identificaram rapidamente com os grupos dominantes (enquanto os elementos contestatários entre os imigrantes, em especial os anarquistas, foram em devido tempo expulsos do país) em contraposição à enorme maioria negra e mestiça, dela procurando manter distância.

    51. De seu lado, a religião católica exercia profunda influência no sentido de neutralizar os sentimentos e anseios de rebelião das populações oprimidas, negras, brancas ou mestiças, através da negação da importância dos bens materiais e da afirmação da superioridade absoluta do objetivo de alcançar a Vida Eterna. Naquela Vida, no Paraíso, os humildes e oprimidos viriam a ser até superiores aos cruéis senhores brancos devido a seus sofrimentos nesta terra, os quais deveriam ser aceitos com grata resignação, pois a eles eram submetidos pela vontade divina, para provar a sua fé. Essa influência neutralizadora da revolta social contra a opressão foi exercida com exclusividade pela Igreja Católica enquanto teve ela o monopólio de religião oficial, mas hoje sua ala conservadora tem concorrentes e colaboradores na pregação de certas seitas protestantes em acelerada expansão. O oprimido, diante da promessa de Vida Eterna e de valorização de sua condição de oprimido neste mundo, se refugia no individualismo da fé e aceita as injustiças sociais como inarredáveis e alheias a seu interesse principal, que é a salvação individual. É difícil exagerar a importância da religião conservadora como instrumento para manter, durante séculos, o regime opressor da estrutura hegemônica de poder e mais fácil, conhecendo essa função, compreender a atual omissão do Estado diante da proliferação de seitas e das práticas mercantis e empresariais ilegais e escandalosas praticadas por alguns dirigentes dessas seitas.

    52. As organizações religiosas conservadoras aliam tradicionalmente à pregação da salvação individual a necessidade da prática de boas obras as quais aliviam, em nível individual, as dores de consciência e os sentimentos de culpa e, em nível político, contribuem para reduzir as tensões e para a sobrevivência da estrutura hegemônica de poder. Essas boas obras se organizam pela ação altruísta de indivíduos generosos, porém ingênuos, e pela ação maquiavélica de indivíduos privilegiados. Os sistemas de assistência laica ou religiosa às populações mais carentes evoluíram desde as coloniais Santas Casas de Misericórdia, até às obras de beneficência e campanhas de caridade privada, aos esquemas oficiais do Estado do Bem Estar Social, e às práticas modernas de comunidade solidária, de parcerias entre Estado e iniciativa privada.

    53. A despolitização da massa dos excluídos (e mesmo das classes médias) é estratégia importante para a sobrevivência e expansão da estrutura hegemônica de poder. O argumento diz que a política e o Estado são as causas da opressão que sofre o povo e que essas atividades políticas e de governo são exercidas sempre por corruptos e corruptores. O homem de bem delas não deve participar pois de um lado não adianta, pois os mesmos são sempre eleitos, e por outro lado corre o risco de se corromper. Deve ele entregar-se de corpo e alma ao esforço individual de progredir material e espiritualmente e deixar a política (e o exercício do poder) para os outros.

    54. Hoje em dia a mídia, em especial a televisão, compartilha com as religiões conservadoras o exercício dessa função quotidiana de despolitização, através do estímulo incessante ao individualismo e ao consumo; da exaltação dos bem sucedidos economicamente em atividades pop, tais como desportistas e artistas, em especial se forem oriundos da massa oprimida; da promoção do antagonismo e rejeição à política; da denúncia estridente mas descontínua dos escândalos de corrupção. Essa seria a causa de todos os males da sociedade, e não os mecanismos de concentração de poder e renda, e assim seriam suficientes para resolvê-los reformas superficiais moralizadoras das instituições e do processo político. A mídia, enquanto promove o antagonismo à política e exalta o individualismo e o consumismo, paradoxalmente culpa o povo pela fragilidade da democracia e das instituições no Brasil devido a sua pequena participação nas atividades políticas.

    55. As ideologias fundamentais não só justificam o sistema político, econômico e social, absolvem seus beneficiários e as instituições que geram e reproduzem benefícios e privilégios, como podem até exaltar características especiais da sociedade brasileira que viriam, quiçá, a ser sua original contribuição para a humanidade tais como a cordialidade, a igualdade racial, o jeitinho etc. Finalmente, oferecem uma esperança a todos na miragem da educação que redimiria aqueles que, por sua própria culpa, não podem ainda participar dos privilégios da sociedade brasileira e que, se e quando educados (ou seus descendentes), poderiam deles se beneficiar como indivíduos. Outra esperança sem esforço e sem lógica que o Estado organiza para tributar mais é a miragem impossível da loteria, de que participam dezenas de milhões por semana.

    56. As ideologias fundamentais para explicar as desigualdades, – superioridade civilizacional, de raça, de mérito e a promessa do Céu – justificariam o domínio econômico e político dos portugueses sobre índios, negros e brasileiros, e mais tarde, a partir da Independência, dos grandes latifundiários e comerciantes sobre a massa de escravos, mestiços e pobres. A República Velha não transformou esse estado ideológico de coisas pois não afetou a base dessas ideologias que justificavam de diversos modos a superioridade e domínio dos latifundiários e seu direito de controlar, de forma oligárquica e plutocrática, a república e a democracia. A crise de 1929 e a Revolução de 30 vêm pela primeira vez colocar em cheque o esquema de poder político dos latifundiários e das oligarquias políticas rurais. Todavia, a Revolução de 30 não chegou a tocar na questão da propriedade agrária e das relações de trabalho no campo ainda que tenha procurado criar as bases para mitigar a longo prazo a vulnerabilidade externa e para reduzir as disparidades e os instrumentos de opressão mais gritantes e arcaicos na esfera econômica, ao promulgar a legislação de proteção ao trabalho urbano, e na esfera política, ao instituir o voto secreto e o sufrágio feminino.

    57. Essas ideologias fundamentais, que justificavam a concentração de poder, permaneceram latentes e permearam toda a evolução da sociedade brasileira. Até hoje, apesar de parecerem tão arcaicas, constituem a origem de preconceitos e estereótipos sobre o sistema econômico e político brasileiro e podem ser vislumbradas a todo momento, sob disfarces vários, no pano de fundo do debate político e social. Em relação a elas se elaboram as visões estratégicas para desenvolver o país, propostas pelos diversos grupos que compõem a estrutura hegemônica de poder e, finalmente, as interpretações da conjuntura que grupos específicos articulam em sua disputa pelo centro de poder da estrutura. Em todas essas visões e interpretações conjunturais é possível identificar elementos e fragmentos daquelas teorias.

    VISÕES ESTRATÉGICAS NA MACRO-ESTRUTURA

    58. No âmago da estrutura hegemônica de poder, formada pelo complexo arcabouço da legislação, dos organismos e da alta burocracia do Estado e dos múltiplos vínculos entre grandes proprietários, partidos conservadores, associações civis e de classe e organizações religiosas conservadoras, e que se articula em configurações oligárquicas e corporativas regionais, setoriais e nacionais, surgem diversas visões sobre as estratégias de desenvolvimento da sociedade brasileira e de sua inserção no mundo.

    59. As estratégias que aparecem, predominam e eventualmente vão se substituindo na tarefa de orientar a estrutura hegemônica em seus esforços de manter seu domínio e controle sobre o sistema social e de expandir seu poder, inclusive em nível mundial, necessitam conquistar adeptos no seio dos diversos grupos da estrutura e da sociedade em geral. Por essa razão, elas não se apresentam sob os rótulos de estratégia agrária ou industrial ou militar e assim por diante, mas sob denominações desvinculadas da natureza íntima dos grupos de interesse onde surgem, onde predominam (apesar de neles não serem as únicas) e a cujos interesses servem e assim se chamam de liberal; desenvolvimentista; nacionalista; cosmopolita etc. Essas estratégias podem ser descritas e agrupadas sob dois tipos básicos de visão do mundo, quais sejam a visão economicista e a visão política, assim denominadas devido ao enfoque que privilegiam em sua análise.

    A VISÃO ECONOMICISTA DO MUNDO

    60. Em sua interpretação da realidade brasileira e do mundo a visão economicista atribui a mais alta prioridade à organização e à dinâmica econômica da sociedade nacional e do sistema internacional.

    61. Segundo esta visão, o indivíduo, como produtor e consumidor, tem maior importância do que o indivíduo como cidadão ou do que o indivíduo como ser cultural. O interesse fundamental da sociedade deve ser o aumento incessante da produção e do consumo de bens materiais, o qual é identificado com o bem estar dos indivíduos que, por sua vez, seriam tanto mais felizes quanto mais bens pudessem consumir. A felicidade e a prosperidade econômica dos indivíduos necessariamente leva à paz e ao convívio harmônico no seio de cada sociedade, cujo bem-estar é a soma do bem estar dos indivíduos que a compõem. Sociedades prósperas são sociedades felizes e a harmonia universal decorreria dessa prosperidade das sociedades nacionais.

    62. De acordo com essa lógica, os fenômenos econômicos têm maior importância do que os políticos, culturais, sociais e éticos e o funcionamento da economia nacional e internacional aparece como a causa determinante das questões políticas e sociais. Os eventos internacionais e nacionais podem ser explicados pelas suas causas econômicas e suas conseqüências principais são também de natureza econômica, ficando relegadas a um segundo plano as causas e as conseqüências sociais e políticas. Assim, a análise econômica da situação nacional e internacional deve e pode fornecer a base suficiente para a definição das políticas de Estado para enfrentar não só as questões econômicas como as de natureza política e social específicas.

    63. A visão economicista da sociedade brasileira aceita a premissa da teoria econômica clássica que isola, para fins de análise, por serem exógenos, os fatores não-econômicos, já que os considera implicitamente como estáveis ou irrelevantes, na medida em que a estrutura política e social que existe seria, por definição, natural, adequada e justa em seus fundamentos e funcionamento, cabendo eventualmente apenas pequenos ajustes para corrigir os efeitos daninhos de eventuais intervenções humanas equivocadas.

    A ESTRATÉGIA LIBERAL

    64. A estratégia liberal para o desenvolvimento brasileiro é essencialmente cosmopolita e mercantil. Considera o mundo, a humanidade como um todo, como o ângulo privilegiado e correto de análise das questões pois as preocupações nacionais, os nacionalismos, o enfoque nacional para analisar e resolver problemas econômicos e políticos estaria na origem dos conflitos, das guerras e das desigualdades e, portanto, do sofrimento da humanidade.

    65. Essa visão teria sua origem em Cobden, economista inglês da escola de Manchester, que defendia ardorosamente por volta de 1850 a tese de que o aumento do comércio e dos vínculos econômicos entre países, além de serem essenciais para a eficiência do sistema econômico de cada país e do mundo, contribuiriam para a paz entre os povos. Assim, os obstáculos ao comércio não somente reduziriam a eficiência do sistema econômico mundial mas, ao causar fricções e competição desleal entre os Estados, em última análise provocariam as guerras.

    66. A estratégia liberal no Brasil tem duas versões principais. A versão tradicional tem sua origem mais remota na luta contra o monopólio colonial de comércio, que estrangulou o desenvolvimento econômico e era a peça chave de exploração da sociedade colonial durante trezentos anos, até 1808, quando o Príncipe Regente ao chegar à Bahia, com a Corte portuguesa transferida para o Brasil, decreta a Abertura dos Portos às Nações Amigas, medida que enfrentou a oposição da Grã-Bretanha, que já gozava de tratamento comercial privilegiado, situação que aliás recuperou com os Tratados de 1810.

    67. A estratégia liberal tradicional considera que o Brasil deve se concentrar na exploração estrita de suas vantagens comparativas e aí ser eficiente e competitivo. Os reiterados esforços de industrialização através de políticas de substituição de importações foram sempre, no mínimo, um equívoco pois a atividade industrial não teria hoje, não teve no passado e não poderia vir a ter bases sólidas no Brasil, pois não será capaz de competir, com eficiência e sem proteção do Estado, com a indústria em acelerada expansão nos países mais avançados.

    68. Assim, devem a sociedade e o Estado brasileiros dedicar toda sua atenção e o melhor de seus esforços a procurar aproveitar as vantagens comparativas óbvias de solo, extensão territorial e clima para produzir bens agrícolas e, quando possível e no limite, manufaturas deles derivados, exportá-los competitivamente e importar os bens que não pode produzir com eficiência.

    69. Qualquer restrição ao comércio, importador ou exportador, qualquer controle cambial, é visto como distorsivo e artificial, assim como qualquer intervenção do Estado, de forma direta ou indireta, na esfera econômica, em especial qualquer iniciativa de política industrial, que seria injusta porque privilegiaria alguns setores e empresários privados, e equivocada, pois distorceria o sistema de preços e a estrutura econômica, prejudicando os consumidores em geral.

    70. A estratégia liberal em sua versão tradicional advoga toda a prioridade ao comércio exterior, à liberdade de câmbio, à ausência de ação do Estado, pois quando ocorre ela distorce o comércio, e defende tarifas baixas e não-discriminatórias. Os setores sociais onde ela se origina e onde tem maior influência e trânsito são os setores conservadores da classe média, as entidades de profissionais liberais, os latifundiários e as associações comerciais de importadores e exportadores, os rentistas e, de uma forma geral, tem ampla aceitação entre o que a mídia chama de consumidores.

    71. A versão moderna da estratégia liberal, chamada de neo-liberal, argumenta que a economia brasileira talvez seja hoje competitiva em algumas linhas de atividade industrial, a que chama de nichos. A melhor política para identificar esses nichos, eventualmente eficientes e competitivos, seria um programa vigoroso de liberalização comercial. Essa liberalização, além de abrir a economia e torná-la mais atraente e confiável ao capital estrangeiro, financeiro ou de investimento, submeterá as empresas brasileiras à competição, controlará a inflação e terá um efeito-demonstração positivo, forçando a indústria e o consumidor a se modernizarem.

    72. Essa versão moderna é levada a admitir (pois o parque industrial brasileiro ainda que para ela indesejável é uma realidade inamovível e não algo a ser criado) que, além de commodities agrícolas, o Brasil pode e deve produzir apenas commodities industriais, isto é, bens industriais de tecnologia simples e que sejam em essência fabricados a partir de matérias-primas abundantes no país, tal como ocorre nos casos da agroindústria e da siderurgia. Por isso, assim como no passado não deveria o Brasil ter se aventurado na indústria, hoje, devido a seu nível inferior de capacidade e eficiência industrial, não pode e não deve procurar investir nos setores industriais de tecnologia de ponta. Tais tentativas levariam a desperdícios lamentáveis pois nesses setores seria o Brasil de um lado intrinsecamente não-competitivo, e de outro poderia com vantagem e sem dificuldade importar tais produtos de alta tecnologia dos países líderes da economia mundial.

    73. Essa estratégia neo-liberal para o desenvolvimento brasileiro advogou com firmeza o fim da política nacional de informática, e não atribui maior atenção à biotecnologia nem aos programas de pesquisa científica e tecnológica. Ora, esses setores constituem hoje os aspectos que caracterizam a nova revolução não apenas industrial, mas de toda a economia e esses programas se encontram no centro da estratégia econômica dos Governos dos países altamente desenvolvidos. O argumento que apresentam os neo-liberais é que, se houver real interesse e possibilidade, as inversões nos setores industriais de ponta serão feitas naturalmente pelo capital estrangeiro, que trará a tecnologia mais avançada ou, caso isto não venha a ocorrer, mesmo a tecnologia mais avançada poderia ser adquirida no mercado pelas empresas brasileiras que dela necessitassem.

    74. De acordo com a estratégia liberal, tradicional ou moderna, o desenvolvimento industrial deve ocorrer, se ocorrer, de forma natural, não se devendo, como se tentou equivocadamente no passado, estimular investimentos em geral, procurar induzir investimentos em determinados setores ou disciplinar sua ação, e assim a própria existência de uma política industrial é anátema para a estratégia neo-liberal.

    A ESTRATÉGIA DESENVOLVIMENTISTA

    75. A estratégia desenvolvimentista reconhece a importância do setor externo para a economia brasileira mas considera que o cerne da estratégia de desenvolvimento deve ser a expansão estimulada do mercado interno e a diversificação do parque produtivo no Brasil.

    76. A estratégia desenvolvimentista inicia sua argumentação afirmando que a demanda e o consumo de produtos primários nos centros mais desenvolvidos não acompanha proporcionalmente o crescimento da renda enquanto que aqueles bens estão sujeitos a flutuações de preços súbitas e amplas, o que afeta a capacidade nacional de importar e portanto de investir, inclusive na infra-estrutura, com graves repercussões sobre o nível interno de emprego e renda e a estabilidade social do país.

    77. Assim, a dependência excessiva da produção e exportação de produtos primários torna a capacidade de gerar divisas para importar a gama de bens que a sociedade brasileira crescentemente demanda permanente ou pelo menos periodicamente insuficiente, com graves conseqüências.

    78. Por outro lado, diz a estratégia desenvolvimentista, o processamento industrial agrega valor, qualifica a mão-de-obra, educa a cidadania e beneficia a sociedade, enquanto que o crescimento demográfico e a urbanização rápida fazem com que a geração de empregos para ocupar de forma produtiva a população tenha de ser urbana e em grande parte no setor industrial ou no setor de serviços o qual, aliás, se vincula estreitamente às atividades industriais.

    79. Todavia, por razões óbvias, a indústria nascente é menos competitiva e sujeita à concorrência leal ou desleal dos produtores (e exportadores) tradicionais que desejam manter e expandir o mercado brasileiro para seus produtos. Assim, o que se verifica é que os tradicionais supridores do Brasil, aberta ou veladamente, têm resistido de forma sistemática às tentativas de industrialização, desde os tempos da Colônia. É forçoso concluir que somente a ação do Estado pode permitir o desenvolvimento industrial integrado e sustentado, em especial à medida que se oligopolizam e se cartelizam os mercados em nível mundial, com o surgimento de mega-empresas multinacionais.

    80. Ademais, quanto mais nova e menos conhecida uma tecnologia menor a competição no mercado do produto a que corresponde e maiores os lucros da empresa que a controla; portanto, os detentores de tecnologias mais avançadas, não de conhecimento geral, não a vendem, nem a transferem nem a alugam e daí mais um argumento para justificar a ação do Estado.

    81. A versão da estratégia desenvolvimentista que considera indispensável a cooperação do capital estrangeiro considera que o crescimento acelerado da economia brasileira depende de uma massa tal de investimentos, e portanto de poupança, que não são disponíveis no Brasil. O capital estrangeiro permitiria aumentar o total da poupança disponível no país para investimento, sem que fosse necessário alterar as taxas de poupança e de tributação e, portanto, sem aumentar a influência e a participação do Estado na economia, o que seria a seu ver indesejável. O investimento estrangeiro ademais traria consigo a tecnologia mais avançada de produção que, de outra forma, não seria possível ao Brasil utilizar. Finalmente, as empresas multinacionais adotariam práticas modernas de organização empresarial e remuneram melhor seus funcionários, o que teria efeitos sociais importantes ao influenciar o comportamento das empresas brasileiras.

    82. Em resposta aos que argumentam ou previnem contra os riscos do excesso de influência do capital estrangeiro na sociedade brasileira, essa versão afirma que o capital estrangeiro moderno, em sua forma multinacional, não tem pátria e portanto ele se comporta exatamente como o capitalista nacional e que, nos casos em que sua atividade pudesse vir a trazer risco para a segurança econômica nacional, o Estado brasileiro sempre poderia fazer uso de seu direito legítimo de desapropriação.

    83. A origem dessa versão da estratégia desenvolvimentista pode ser encontrada nas associações de empresários de setores tradicionais, nas empresas vinculadas, na qualidade de fornecedoras, compradoras, ou licenciadas, a empresas estrangeiras, e em setores da classe média tais como profissionais liberais vinculados de uma forma ou de outra ao capital estrangeiro e intelectuais imbuídos de preconceitos em relação à capacidade do empresário brasileiro.

    84. A versão da estratégia desenvolvimentista que advoga que o capital nacional deve ter papel central na construção da indústria brasileira considera que, para alcançar níveis cada vez mais elevados e integrados de desenvolvimento, o capital estrangeiro não seria suficiente. O capital estrangeiro somente estaria, a seu juízo, interessado nos setores mais lucrativos da economia, de menor risco e de retorno mais rápido e assim, apesar de seus efeitos iniciais benéficos, tenderia a promover a acumulação de capital no exterior e não no Brasil, o que tornaria a taxa de expansão da capacidade instalada inferior à que seria possível. Por outro lado, a certos tipos de tecnologia em certos setores industriais o Brasil somente poderia ter acesso se realizasse um esforço de pesquisa e de investimento próprio, o que tornaria necessária a ação do Estado para permitir o desenvolvimento industrial nas áreas de ponta e, portanto, uma política industrial e comercial que privilegiasse o capital nacional. Nos casos estratégicos, seria indispensável a realização de investimentos diretos do Estado, em associação, sempre que possível, com o capital nacional.

    85. Finalmente, as empresas estrangeiras não teriam interesse em exportar a partir do Brasil para certos destinos devido a sua estratégia global de divisão de mercados, o que limita a possibilidade de diversificação da pauta e de mercados do comércio brasileiro e sua capacidade de gerar divisas enquanto que, no âmbito da disputa global de mercados, as empresas de capital estrangeiro estão sujeitas à influência política dos Estados a que pertencem seus controladores o que pode levar a eventuais interferências e atritos políticos.

    86. Os formuladores e defensores da versão nacional da estratégia desenvolvimentista se encontram na tecnocracia de empresas do Estado, em setores militares, e em certas empresas industriais de capital nacional, sem vínculos importantes com o exterior, quer comerciais quer de controle do capital, e em grupos de intelectuais de tendência nacionalista.

    87. Em conclusão, tanto a estratégia liberal, com sua ênfase no papel central do comércio, como a desenvolvimentista, que enfatiza o papel dinâmico da indústria, têm como foco a questão econômica à qual subordinam as demais, não atribuindo a devida importância às questões políticas nacionais e aos interesses internacionais do Brasil. A predominância nos últimos anos de economistas no núcleo decisório dos Governos e a crônica crise externa explicam o enfoque e a ênfase economicista que tem dominado, obscurecido e empobrecido a discussão política nacional nas últimas duas décadas.

    A VISÃO POLÍTICA DO MUNDO

    88. A visão política da realidade brasileira e mundial, em contraposição à visão economicista, argumenta que o interesse superior dos Estados é garantir a melhoria crescente de bem-estar de suas populações e a segurança de seus territórios e que, no caso de certos Estados, o interesse pela segurança ultrapassa o âmbito do território nacional e passa a ser regional e até mesmo global.

    89. A atividade econômica, todavia, não é menos importante do que a política: apenas a primeira é condicionada pelas regras que cabe à sociedade e ao Estado definir através de processos políticos domésticos de negociação de que participam os grupos sociais, e, em nível internacional, de processos de negociação com os demais Estados. A atividade política nacional e internacional de definição da moldura jurídica que delimita as atividades das empresas deve ter, portanto, a mais alta prioridade. Além das questões econômicas, a atividade política define também, em nível interno, toda a gama de relações entre indivíduos, empresas, grupos sociais e instituições, nas esferas política, religiosa, familiar e assim por diante, disciplinando atividades que têm importância essencial para a vida em sociedade. Em nível internacional, a atividade política de negociação entre os Estados define a própria estrutura jurídica do sistema internacional e os diversos aspectos das relações entre Estados, indivíduos e empresas tais como as normas relativas a comércio, a investimento, a capitais, aos movimentos do trabalho, ao meio ambiente, a temas militares e assim por diante, que formam a moldura dentro da qual atuam internacionalmente as empresas, os indivíduos e as agências do Estado.

    90. Segundo a visão política, as regras que organizam o mundo e que distribuem benefícios dentro dos Estados, e entre os Estados, e que determinam direitos e deveres são definidas pelos Estados e compõem a moldura indispensável para que as empresas possam desenvolver suas atividades, não importa a sua dimensão. Todavia, o fato de não existir um único conjunto de regras que distribua os benefícios e os custos de forma absolutamente justa e equilibrada entre os Estados faz com que as regras sejam definidas a partir de negociações entre Estados que incluem necessariamente exercícios de Poder, de que participam em grau menor as mega-empresas e as organizações não-governamentais, as ONGs. As negociações e as relações internacionais são regidas assim por exercícios de Poder e jamais por esquemas lógicos, cartesianos ou imparciais ou por gestos e atos de boa vontade. O Poder tem aspectos econômicos, políticos e militares, mas certamente a atividade política é vital para a economia, pública e privada.

    91. Cada Estado procura fazer com que as normas internacionais que venham a ser definidas nesses processos de negociação sejam tais que suas sociedades sejam potencialmente beneficiadas da melhor forma possível. Assim, quando um Estado aparece em âmbito internacional como defensor de determinadas regras ou conjuntos de regras em relação a qualquer tema é porque tem a expectativa de que essas virão a beneficiá-lo, e à sua sociedade, indivíduos, instituições e empresas, mais do que aos demais Estados e as sugestões que acaso apresente para beneficiar a terceiros Estados são apenas táticas de negociação para obter apoios para seus objetivos últimos.

    A ESTRATÉGIA POLÍTICA LIBERAL

    92. A estratégia política liberal considera inicialmente como fixa a distribuição de poder econômico e político na sociedade e que essa distribuição seria razoavelmente eqüitativa e justa, sendo que nenhum grupo social teria força para influir decisivamente sobre o processo de elaboração e execução de normas de forma a organizar em seu favor a sociedade. Dessa forma, mutatis mutandis, a estratégia política liberal se funda em premissas semelhantes às que se encontram no cerne da estratégia econômica liberal, que considera que o sistema econômico natural deve ser caracterizado pela livre concorrência, sem interferência do Estado, entre unidades de produção e consumo de tamanho semelhante e tão pequenas que não podem influenciar os preços e assim manipular o sistema em seu favor.

    93. Essa estratégia liberal se preocupa essencialmente com a construção e a defesa do sistema democrático formal, que se caracterizaria pela divisão de poderes do Estado (Executivo, Legislativo, Judiciário) independentes, harmônicos e cooperativos, com a realização de eleições, livres e periódicas, para a escolha de representantes do povo; por uma legislação efetiva de proteção dos direitos civis e políticos individuais, tais como a liberdade de imprensa, de reunião, de associação, etc; por uma legislação que garanta o livre jogo de forças de mercado, que considera como essencial à democracia.

    94. Na esfera internacional, a estratégia política liberal considera que o sistema internacional é formado por Estados iguais, de poder semelhante, que tendem a cooperar entre si para o bem estar da humanidade e a paz, desde que neles prevaleça a democracia. Ainda que admita e reconheça diferenças de poder entre os Estados, tão óbvias que são, os Estados poderosos não exerceriam seu poder em proveito próprio mas sim para o bem da humanidade, sem oprimir os mais fracos. Assim, para a estratégia liberal, o ideal de inserção política para o Brasil no mundo é cooperar com todos os Estados, se antecipar nos processos de paz e desarmamento, não desafiar inutilmente as Grandes Potências, pois são elas mais poderosas e beneficentes, não procurar exercer qualquer protagonismo devido à escassez de poder do Brasil e aceitar as regras do sistema internacional que, afinal, é imparcial e benéfico a todos os Estados que se comportem de forma civilizada.

    A ESTRATÉGIA POLÍTICA REFORMISTA

    95. A estratégia política reformista considera que o poder político e econômico no Brasil é em extremo concentrado e que o sistema político representa basicamente os interesses dos grandes grupos econômicos, que se beneficiam das disparidades econômicas e sociais que caracterizam a sociedade brasileira. Assim, a reforma eficiente da sociedade, para corrigir disparidades e vulnerabilidades e para promover o desenvolvimento e assim tornar possível uma sociedade mais justa e próspera, se torna tarefa extremamente complexa e difícil em um regime político liberal, formal e tradicional. A estratégia reformista se divide em duas vertentes: a democrática e a autoritária.

    96. A estratégia reformista democrática preconiza a organização social dos movimentos populares para pressionar vigorosamente o sistema político e o Estado e assim fazer aprovar a legislação e políticas públicas que permitam mitigar os efeitos e reverter a ação dos principais mecanismos de concentração de renda e de poder, sem todavia afetar radicalmente a distribuição de riqueza.

    97. A reforma do sistema tributário para torná-lo menos regressivo; do sistema educacional para torná-lo público, geral e laico; a defesa dos direitos humanos econômicos, em especial a defesa do direito ao desenvolvimento, ao trabalho e ao emprego; a luta contra a pobreza; a defesa de legislação para coibir a influência do poder econômico no processo político e administrativo são todas bandeiras da estratégia reformista democrática.

    98. A versão autoritária da estratégia política reformista parte da idéia de que a reforma da sociedade brasileira é de extrema urgência, caso se deseje evitar o caos social e político e preservar o regime capitalista. O sistema político liberal formal, por representar os interesses entrincheirados de oligarquias egoístas e arcaicas, não é capaz de promover as reformas necessárias, inclusive devido à ação das corporações sociais e dos lobbies econômicos. Assim, somente classes, setores da macro-estrutura especialmente habilitados pela sua formação e imparciais pela sua origem poderiam ser capazes de enfrentar com êxito essa tarefa. Dois seriam esses setores: os intelectuais e os militares já que ambos, pela natureza de suas funções sociais e suas preocupações, estariam acima dos interesses arcaicos que se beneficiam há séculos das injustiças do sistema econômico e político brasileiro.

    99. A estratégia reformista considera que o atual sistema internacional, que define as regras de distribuição do poder político, econômico e militar, deriva diretamente do sistema de impérios coloniais que organizou a expansão geográfica do capitalismo desde seu centro dinâmico europeu, no longo período que se inicia com as Grandes Descobertas, sistema que sobreviveu até os anos 60 e 70 do século XX.

    100. Esse sistema internacional é formado, de um lado, por um centro constituído pelas Grandes Potências e Estados desenvolvidos, ex-metrópoles coloniais, ricos e fortes militarmente, e que organizaram o mundo após a II Guerra Mundial sob o comando da Grande Superpotência, e hoje Hiperpotência, os Estados Unidos e, de outro lado, por uma periferia de novos Estados, ex-colônias, pobres e fracos militarmente.

    101. Assim, devido às heranças do sistema colonial e às regras adotadas pelo sistema internacional sob o comando das Grandes Potências, os processos de concentração de poder político e econômico se têm reforçado assim como vêm sendo criados novos mecanismos legais que preservam e consolidam a hegemonia da macro-estrutura de poder em nível internacional.

    102. Ao Brasil caberia assim procurar, em nível internacional, lutar pela reforma desse sistema e buscar nele um lugar mais condizente com a sua situação e interesses, atuais e potenciais, e evitar que ele se cristalize em normas que impeçam ou dificultem o desenvolvimento econômico e coloquem o país em situação de inferioridade e vulnerabilidade, política e militar, permanentes.

    103. Como estratégias políticas específicas que se relacionam de uma forma ou de outra com as estratégias liberal e reformista podem ser descritas a visão militar e a visão diplomática do desenvolvimento e da inserção do Brasil no mundo.

    A VISÃO ESTRATÉGICA MILITAR

    104. A visão militar do desenvolvimento brasileiro e da inserção mundial do Brasil argumenta inicialmente que o único local no mundo onde uma nação pode viver de acordo com suas tradições, suas normas e seus anseios, é o seu território e que o território de um Estado, locus privilegiado de uma sociedade onde pode ela desfrutar de seu ordenamento jurídico, de sua cultura e de suas tradições e alcançar seus objetivos, está sempre sujeito a ameaças externas de toda ordem que perturbam a tranqüilidade desse gozo.

    105. Ora, a defesa desse território contra as ações de estrangeiros que perturbem a sua tranqüilidade depende em última instância da capacidade de uso eficaz da força, de forma dissuasiva ou efetiva, o qual depende, por sua vez, de certa autonomia no suprimento de materiais bélicos, incluindo energia, equipamento e munições. Esse suprimento, quando dependente do exterior, não pode ser assegurado de forma permanente e reduz a autonomia de decisão e de execução de políticas nacionais que privilegiem os interesses do povo brasileiro.

    106. Os suprimentos bélicos de forma geral têm natureza industrial, o que faz com que o desenvolvimento industrial seja essencial para a possibilidade de exercer atividade militar eficaz de defesa do território. As características do território brasileiro são de tal natureza que esse equipamento deve incluir quantidade razoável de veículos de todo tipo, o que implica a existência de indústria bélica, naval, aeronáutica e de veículos e das indústrias de suprimento básico, como a energética e a siderúrgica. As origens históricas da preocupação militar brasileira com o desenvolvimento da indústria bélica, e em conseqüência das chamadas indústrias de base, se encontram nas dificuldades encontradas pelo Exército brasileiro na Guerra do Paraguai e na convicção que se formou gradualmente quanto à importância de ter um parque industrial próprio desde o início do século, e que se renovou à época da II Guerra Mundial quando se tornou patente o despreparo militar brasileiro.

    107. Finalmente, o Brasil não tinha populações ou investimentos significativos no exterior, o que tornava os seus interesses praticamente restritos a seu território. Todavia, agora que começa a ter populações e interesses econômicos significativos no exterior, e considerando o número de vizinhos e seu litoral extenso, a natureza dos interesses brasileiros se expandirá para além do território e a função das Forças Armadas se transformará, hipótese que exige prever e planejar desde já pois a capacidade de ação militar, que inclui necessariamente esquemas seguros de abastecimento, depende de um longo prazo de maturação e não pode ser improvisada.

    108. As duas versões principais da visão militar da realidade brasileira e de sua inserção mundial são o anti-comunismo e o nacionalismo.

    109. A versão anticomunista mais estrita considerava que a questão nacional mais importante, estratégica, do ponto de vista de política interna e externa, era a defesa dos valores do Ocidente. Essa defesa do Ocidente deveria prevalecer sobre qualquer outro objetivo nacional ainda que viesse a acarretar limitações para a soberania brasileira o que, inclusive, talvez fosse necessário já que, tendo em vista que essa soberania deixaria de existir no caso de vitória comunista, em nível interno ou em nível mundial, seria melhor limitá-la antes, caso isso fosse essencial à sua própria preservação. O extraordinário poderio militar soviético faria com que a defesa dos valores ocidentais, caros ao Brasil, somente pudesse ser considerada eficaz, em última análise, caso feita sob a liderança dos Estados Unidos, e assim o alinhamento com os Estados Unidos em matéria de política internacional se tornaria inevitável e até mesmo desejável.

    110. Os Estados Unidos garantiriam às Forças Armadas brasileiras o suprimento de material bélico de modo que a preocupação militar com o desenvolvimento industrial brasileiro seria menos importante enquanto que, no campo econômico, a adoção de uma estratégia liberal seria possível e, até mais do que possível, seria um gesto de amizade e de cooperação para com os Estados Unidos, o que traria dividendos políticos significativos.

    111. A versão nacionalista da visão estratégica militar argumenta que, apesar do interesse básico do Brasil em manter sua tradicional amizade com os Estados Unidos, não pode haver certeza de que estes estariam, sempre e em qualquer circunstância, dispostos a garantir o suprimento de material bélico para o Brasil, de acordo com os requisitos tecnológicos e as quantidades que as Forças Armadas brasileiras julgassem necessários e adequados. Assim, o desenvolvimento industrial, em especial em certas áreas, com seus efeitos sobre a capacitação militar, seria indispensável e para esse desenvolvimento deveria ser sempre bem-vinda a cooperação americana, o que seria possível obter.

    112. A partir de certo momento a avaliação nos meios militares passou a ser de que o perigo do comunismo internacional e de rebelião interna tinham sido superestimados. Assim, tanto no caso brasileiro como no de países vizinhos, a superestimação do perigo comunista tinha levado a atividades repressivas que se revelariam prejudiciais no longo prazo ao criar ressentimentos e desconfianças na sociedade civil em relação aos militares, com sério dano à imagem das Forças Armadas, o que poderia levar, pela preocupação excessiva de controle e contenção de despesas, a prejudicar a capacidade de desempenhar a longo prazo seu papel essencial de defesa do território.

    A ESTRATÉGIA DIPLOMÁTICA

    113. A estratégia diplomática tradicional para a inserção do Brasil no mundo argumenta que há um desequilíbrio entre a situação atual do país na esfera internacional e seu potencial político e econômico e que, portanto, há um interesse essencial do Brasil em evitar o congelamento das estruturas mundiais de Poder e uma necessidade vital de não assumir compromissos desiguais, em especial se tiverem natureza permanente.

    114. Segundo essa visão, o princípio da igualdade soberana dos Estados permite ao Brasil a melhor defesa de seus interesses nas negociações e nas relações internacionais; o princípio da não-intervenção em assuntos internos de terceiros países é essencial, pois a intervenção cria precedentes que beneficiam os Estados mais poderosos e prejudicam o Brasil; e o princípio da autodeterminação é crucial, devido à necessidade de preservar a liberdade de ação externa e interna em defesa dos interesses nacionais. As modificações de política e de regime podem ocorrer em qualquer país e assim devem ser aceitas com naturalidade pelo Brasil para preservar seus interesses por mais que se tenha preferência teórica por certas políticas ou pelo regime democrático.

    115. No quadro internacional, e de acordo com esses princípios basilares, têm importância fundamental e específica a situação geográfica do Brasil, o grande número de vizinhos que o cercam, a extensão de seu litoral, os interesses estratégicos da política exterior americana na América do Sul e a importância histórica das relações do Brasil com os Estados Unidos, tanto políticas como econômicas.

    116. O conhecimento das distorções e das influências de toda ordem a que se encontra sujeita a opinião pública brasileira quanto à interpretação da ação internacional dos demais Estados, e com relação às ações da política exterior do Brasil, recomendam adotar uma atitude de serenidade e discrição diante de movimentos de opinião pública, inclusive por vezes estimulados por terceiros Governos, e evitar oscilações bruscas na execução da política exterior, já que essas poderiam prejudicar a credibilidade do Brasil junto a seus interlocutores na esfera internacional.

    117. A visão estratégica da chamada diplomacia moderna argumenta que o fenômeno essencial na esfera internacional, após o fim da Guerra Fria, é a expansão inevitável do processo econômico de globalização, o fim dos conflitos políticos e militares (exceto em algumas regiões marginais), a hegemonia unipolar e incontestável dos Estados Unidos como característica dessa fase histórica, e o gradual desaparecimento dos Estados nacionais e das fronteiras o que levaria a irrelevância da defesa e afirmação da soberania nacional. Os novos temas de importância para a agenda diplomática moderna seriam os direitos humanos, o narcotráfico, o terrorismo e a consolidação de uma ordem jurídica internacional que removesse os obstáculos aos fluxos de bens e de capitais de forma a garantir o funcionamento e a expansão da nova economia global, benéfica, próspera e imparcial.

    118. A igualdade soberana dos Estados, a não-intervenção e a autodeterminação passam a ser para a diplomacia moderna conceitos relativos e flexíveis na nova ordem mundial. Assim, para o Brasil, a estratégia fundamental deveria ser procurar se apresentar sempre como um país normal, cumpridor, voluntário e exemplar, das normas internacionais, o que o qualificaria como ator responsável e interlocutor privilegiado junto às Grandes Potências e à Hiperpotência e o credenciaria a receber benefícios (econômicos) de parte das mega-empresas multinacionais e do sistema financeiro internacional.

    119. A estratégia diplomática tem, tradicionalmente, duas vertentes principais, de acordo com a prioridade que confere aos temas. A primeira enfatiza os temas políticos e se subdivide em diplomacia mundial, ou multilateral, e regional, subdividida essa por sua vez em hemisférica e sul-americana. A segunda vertente da diplomacia considera que a influência política de um Estado depende essencialmente de seu poder econômico. Assim, o esforço de construção da capacidade econômica brasileira é absolutamente prioritário, inclusive para a diplomacia, e portanto esta deve enfatizar os temas econômicos nas relações externas do país.

    120. A estratégia diplomática justamente articula em um misto de cooperação/ confrontação/ competição/ conciliação a macro-estrutura interna de poder com as estruturas hegemônicas de poder em nível mundial. Nessa tarefa, as estratégias diplomáticas específicas a cada período histórico se articulam sucessivamente com uma ou outra das diversas estratégias que, ao se propor interpretar e orientar o processo de desenvolvimento econômico e político do Brasil e a ação de preservação de poder da macro-estrutura, prevalecem.

    A DISPUTA ENTRE AS VISÕES ESTRATÉGICAS

    121. Dentro da macroestrutura hegemônica de poder no Brasil, que vem se gerando desde a Colônia, constituída pelas inter-ligações entre grupos econômicos, sociais, políticos, militares e da alta burocracia, co-existem, como visto acima, distintas visões da realidade brasileira e do mundo e diversas estratégias sobre a condução da sociedade e do Estado.

    122. Essas visões, ainda que se originem em determinados grupos, são compartilhadas por segmentos de outros grupos. Articulações políticas entre esses subgrupos detêm em distintas ocasiões, por mais ou menos tempo, o controle do centro da estrutura hegemônica de poder, em parte porque nessas ocasiões a conjuntura nacional e internacional justificam, por assim dizer, sua visão do mundo e do Brasil e a estratégia que preconizam.

    123. Quando ocorre uma crise, gerada por um grave descompasso naquele momento entre a estratégia dominante e a conjuntura real, em geral a partir de causas externas, devido à dependência e à vulnerabilidade crônica do Brasil em relação à economia e à política internacional, um outro grupo, que não se encontra no centro da estrutura, desenvolve e divulga uma nova interpretação da realidade, que por ser mais convincente passa a ser aceita gradualmente por setores importantes da macro-estrutura. Essa aceitação permite ao novo grupo predominante articular politicamente uma constelação de sub-grupos nos diversos segmentos sociais e profissionais e assim assumir o controle do centro da estrutura hegemônica de poder, por via legal ou pela força, em aliança ativa ou com a tolerância de setores da periferia que consegue co-optar para sua interpretação e as políticas decorrentes. Essa nova interpretação da realidade, com a finalidade de obter apoios políticos pode reunir, nem sempre de forma coerente, elementos das diversas estratégias básicas.

    124. Nos círculos mais afastados do sistema social, na camada intermediária e na periferia da macro-estrutura hegemônica de poder, existem grupos e segmentos sociais onde igualmente se elaboram distintas visões da realidade, interpretações conjunturais e correspondentes estratégias de ação política. Essas visões podem ir do extremo da apologia da subordinação incondicional à estrutura hegemônica de poder, em uma posição de fatalismo diante da força, passando pela opção de trabalhar dentro da estrutura para impulsionar políticas parciais, o que se denomina em geral de pragmatismo, até a proposição de estratégias de confrontação com a macro-estrutura hegemônica de poder.

    125. A visão fatalista sugere que a melhor estratégia para a camada intermediária e os grupos oprimidos da periferia é aceitar as enormes desigualdades sociais pois a luta contra elas é inútil devido ao controle sobre toda a sociedade que exerce a macro-estrutura hegemônica de poder e à sua capacidade de retaliação. Assim, a ameaça a essa hegemonia pode simplesmente agravar a repressão aos que a ela se opõem e não se submetem.

    126. A visão pragmática considera que as disparidades sociais são, na realidade, abominadas pela estrutura hegemônica de poder. Sua sobrevivência nos tempos atuais decorreria tão somente da ignorância sobre seus males para a sociedade com um todo, sobre os riscos que trazem para o próprio bem-estar dos grupos que integram aquelas estruturas, e de preconceitos psicológicos que cabe remover pelo esclarecimento e persuasão. Por outro lado, a situação dos segmentos mais desfavorecidos da periferia é de tal ordem que a atenuação da pobreza e a defesa dos direitos humanos é tarefa urgente e humanitária que precede qualquer luta pela reforma dos mecanismos que causam a concentração de poder de toda ordem. Essa parece ser a visão que inspira muitas das ONGs integradas por elementos das camadas intermediárias da sociedade em sua estratégia de trabalhar e cooperar com o Governo para atenuar as desigualdades e violência sociais mas sem enfrentar a questão central da origem e raiz das disparidades e da violência.

    127. As estratégias de confrontação partem da premissa de que a macro-estrutura hegemônica de poder se articula de tal forma em sistemas econômicos, políticos, militares e ideológicos e se beneficia de tal forma dos mecanismos de concentração de poder que somente a luta direta pela tomada do poder pode fazer com que tais mecanismos possam vir a ser eventualmente desmontados e revertidos, passando a desconcentrar poder. Essas estratégias de confrontação podem vir a se articular em organizações com objetivos gerais ou setoriais. Entre aquelas que tinham objetivos gerais podem-se classificar os movimentos de guerrilha da década de 70 que visavam a tomada do poder pela força e de forma geral. As organizações com objetivos setoriais visam confrontar o poder pela ação política vigorosa e alcançar objetivos parciais. Essa parece ser a natureza do MST em sua luta pela reforma agrária, cuja estratégia se, por um lado, visa invadir fazendas para forçar a desapropriação de terras improdutivas e, portanto, atinge a questão, essencial para a estrutura hegemônica de poder, da propriedade privada, por outro lado leva à constituição de unidades de produção privadas, integradas ao mercado capitalista de produção e distribuição de produtos agrícolas.

    128. Há pontos de contato, de coincidência genérica, em momentos especiais do processo, entre as visões geradas nos grupos da macro-estrutura hegemônica e aquelas geradas nos grupos da camada intermediária e da periferia, na medida em que os primeiros aceitam certas propostas para atender a reclamos urgentes e críticos das camadas intermediárias e periféricas e assim dissolver crises, ou absorvem certas propostas para melhor articular a estratégia de manutenção de poder ou para obter apoio para políticas específicas.

    129. No centro da macro-estrutura hegemônica de poder se encontram os instrumentos de coerção legal e de persuasão do Estado, tais como a distribuição de recursos oriundos da tributação e do crédito oficial e a distribuição de cargos e honrarias, com as parcelas de poder que permitem a seus ocupantes exercerem.

    130. O grupo, dentro da estrutura hegemônica, que reúne consenso suficiente em torno de sua interpretação do Brasil e do mundo, ao assumir o centro do poder, procura imediatamente articular-se com outros grupos da estrutura hegemônica e cooptá-los ou desarticulá-los através da co-optação de seus ideólogos e dirigentes. Essa articulação é essencial em primeiro lugar para assumir o controle inicial sobre os diversos instrumentos de coerção e persuasão do Executivo, do Legislativo e do Judiciário (e nos Estados da Federação) onde se encontram representantes e partidários do grupo que controlava anteriormente o Poder. Em segundo lugar, para garantir o apoio ativo ou a tolerância de segmentos sociais que compõem a macro-estrutura hegemônica de poder, tais como os grandes proprietários rurais; os grandes industriais; os grandes comerciantes; os proprietários dos grandes meios de comunicação; os altos funcionários civis e militares; e em especial dos ideólogos e dirigentes políticos desses segmentos.

    131. O grupo central procura igualmente obter apoio, ou a tolerância, ou co-optar grupos intermediários e da periferia, e quando necessário até estimula o surgimento de grupos periféricos compreensivos para com suas políticas. Se essas articulações na macro-estrutura e na sociedade em geral têm sucesso este lhe permite assumir o papel de único representante efetivo e legítimo da sociedade como um todo e argüir a inexistência de alternativas viáveis à sua interpretação da realidade e às suas políticas.

    132. Os setores da estrutura hegemônica que não aderem ao novo grupo central são excluídos do sistema de recompensas materiais e morais e passam a ser hostilizados ou ridicularizados aos olhos da sociedade como um todo, através do discurso oficial, do discurso acadêmico e do discurso da mídia, podendo eventualmente se tornar indivíduos ou grupos desclassificados enquanto que os grupos intermediários e da periferia que não se submetem são ativamente reprimidos.

    133. A interpretação do grupo que está no centro da estrutura hegemônica se torna tanto mais preponderante e incontrastável quanto mais consegue controlar os meios de comunicação, obtém apoio ou tolerância na periferia do sistema, e mantém o aval das estruturas hegemônicas de poder em nível mundial, ainda que suas políticas venham apresentando resultados medíocres e até negativos.

    134. A articulação entre a estrutura hegemônica de poder em nível nacional e as estruturas hegemônicas em nível mundial é um fator central para a análise da evolução da situação interna da sociedade. Em primeiro lugar, devido à profunda inserção do Brasil na economia mundial desde sua descoberta e, em segundo lugar, porque aquelas estruturas internacionais dão apoio ideológico, político e econômico ao grupo que está no centro da estrutura hegemônica nacional, com maior ou menor intensidade, dependendo da utilidade das políticas desse grupo para os objetivos de longo prazo daquelas estruturas internacionais. Na medida em que o grupo no centro da estrutura hegemônica nacional não desafie, não perturbe a correlação de forças internacionais e seus objetivos próprios e a elas se submeta, tanto mais entusiástico o aplauso e maior o apoio daquelas estruturas, enquanto isto parecer a elas conveniente. Quando isto cessa de ocorrer, as estruturas hegemônicas internacionais passam a agir, de formas mais ou menos ostensivas dependendo do grau de vulnerabilidade do país, para articular a substituição do grupo no centro do poder nacional.

    135. A novidade histórica extraordinária do momento atual que vive a sociedade brasileira consiste em que, pela via institucional, um grupo político com origem na periferia e na camada intermediária do sistema assumiu o controle de parte importante do centro legal-estatal da macro-estrutura hegemônica de poder, em especial do Executivo, e se articulou com certos setores da macro-estrutura. A disputa (surda) pelo controle do processo se desenvolve entre os que defendem os objetivos políticos históricos desse grupo da periferia de, fundamentalmente, promover a desconcentração de poder, e os representantes dos grupos tradicionais, que se originam na macro-estrutura hegemônica, e que procuram preservar os mecanismos de concentração de poder político e econômico, para tal utilizando os mecanismos de cooptação ideológica de integrantes do grupo da periferia e o controle efetivo que ainda exercem sobre partes da estrutura estatal. Nessa disputa, cuja essência é ideológica, se confrontam estratégias que foram descritas acima e tem papel predominante a articulação de estruturas tecnocráticas, sem vinculação com o processo político, na formulação de políticas públicas.



    [*] Embaixador. Versão preliminar, sujeita a revisão. 28 de agosto de 2004.

    Este ensaio encontra-se em http://resistir.info/ .
  • 14/Fev/05