Os Donos do Poder: a macro-estrutura
por Samuel Pinheiro Guimarães
[*]
"Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos"
Sophia de Mello Breyner
Retrato de uma Princesa Desconhecida,
Obra Poética III, Editorial Caminho
Disparidades, vulnerabilidades e subdesenvolvimento
Origens
A macro-estrutura hegemônica de poder e suas estratégias
Visões estratégicas na macro-estrutura
A visão economicista do mundo
A estratégia liberal
A estratégia desenvolvimentista
A visão política do mundo
A estratégia política liberal
A estratégia política reformista
A visão estratégica militar
A estratégia diplomática
A disputa entre as visões estratégicas
DISPARIDADES, VULNERABILIDADES E SUBDESENVOLVIMENTO
1. As questões que
atormentam o quotidiano de cada brasileiro ignorância, pobreza,
violência, poluição, racismo, corrupção,
arbítrio, mistificação, desemprego, miséria e
opulência são manifestações das
extraordinárias disparidades internas, das crônicas
vulnerabilidades externas e do processo de subdesenvolvimento que caracterizam
a sociedade brasileira. Tais disparidades, vulnerabilidades e
subdesenvolvimento se encontram profundamente entrelaçados, em
relações circulares de causa e efeito que são cumulativas,
isto é, que se agravam mutuamente com o tempo.
2. As disparidades e
vulnerabilidades econômicas, sociais, políticas e culturais
são reconhecidas por todos, todos as deploram, todos reconhecem a
urgência em superá-las como imprescindível ao
desenvolvimento econômico, à preservação da
democracia e à construção de uma sociedade mais justa e
menos desigual e, portanto, capaz de garantir a todos os brasileiros, ricos e
pobres, o desfrute de uma existência agradável.
3. As disparidades que resultam
de mecanismos formais e informais de concentração e de
conservação de poder em suas dimensões econômicas,
políticas, ideológicas e culturais, são reconhecidas pela
minoria que delas se beneficia e pela imensa maioria que delas é
vítima. Porém, de um lado, os que delas se beneficiam as condenam
apenas na retórica, pois defendem com vigor, na prática, os
mecanismos específicos que geram aquelas disparidades. Aceitam, em geral
com entusiasmo, a idéia de que se pode e se deve desenvolver
ações humanitárias, de natureza privada de
preferência, e de que cabe à sociedade, como um todo,
se tornar solidária
e assim atenuar as desigualdades e combater as injustiças.
4. No entanto, sempre que se
apresenta qualquer proposta, ou se inicia ação mais firme, de
parte do Estado ou de movimentos sociais, contra os mecanismos de
concentração de poder, é ela considerada como um atentado
aos direitos privados em geral e uma intervenção indevida e
absurda do Estado. A solução para as disparidades sociais, no
entender de seus beneficiários, somente poderia vir a longo prazo,
resultado da educação da massa desvalida, no fundo pobre,
miserável e oprimida por não ter sido capaz de se educar.
Implicitamente, as estruturas sociais, políticas e econômicas
são consideradas como justas e até naturais. Por essa
razão
devem
ser preservadas, assim como a legislação e o aparelho judicial e
policial que as garantem, e podem apenas sofrer ligeiras
adaptações, a serem feitas pelos representantes dos
próprios beneficiários da concentração de poder,
inclusive para garantir sua sobrevivência, e somente quando as
tensões causadas pela exclusão social se agravam muito
perigosamente.
5. Do outro lado, a maioria da
população, vítima dessas disparidades e dos mecanismos
de concentração de poder que as agravam e reproduzem, não
tem sido capaz de se mobilizar para promover a reversão desses
mecanismos e a conseqüente redução das disparidades. A
desmobilização permanente dessa massa se faz pela difusão
de visões da sociedade que as responsabilizam pelas suas
misérias; pela distração incessante, promovida pela
mídia, através do culto ao individualismo, à
violência anômica, às personalidades dos esportes e do
show business;
pela exploração do sexo; pelos hábitos sociais
introduzidos pela televisão; pela ação de seitas
religiosas que atribuem a culpa de suas desditas sociais ao indivíduo
pecador que cede ao demônio; e pelo incessante vilipendiar da
política e dos políticos, apresentados como corruptos, sem que se
indiquem alternativas, a não ser a implícita submissão
resignada da massa ao status quo e ao
destino.
6. Finalmente, a
intimidação difusa das populações pobres e
marginalizadas pela polícia dificulta sua organização
social e política enquanto o sistema político-eleitoral garante
que o controle do Estado, e portanto dos recursos sociais, da
elaboração das leis e da sua execução,
permaneça nas mãos dos beneficiários das disparidades.
Esse vínculo entre os beneficiários das desigualdades e o sistema
político-administrativo garante a conservação e até
o agravamento dos mecanismos de concentração de poder e riqueza
tais como, e apenas a título de exemplo, o sistema tributário
altamente regressivo (i.e. que tributa mais quem ganha menos) e a
extraordinária evasão, descontrolada e despudorada, de impostos
praticada pelas elites econômicas.
7. As desigualdades de renda
são proclamadas por todos os institutos e agências nacionais e
internacionais e o Brasil anualmente
conquista
as piores classificações em termos de concentração
de renda. Os índices frios que medem a concentração de
renda escondem a realidade das condições desumanas de vida da
enorme parcela da população que se encontra abaixo da linha de
pobreza, em péssimas condições de
alimentação, de saúde, de higiene, de
habitação, de transporte, de segurança e, na outra
extremidade, o consumo faustoso, perdulário e conspícuo dos
multimilionários, antigos e emergentes, que se descreve com tanto
encanto e graça nas colunas sociais e nas revistas especializadas: suas
jóias, festas, helicópteros e jatos, segurança privada e
mansões nababescas, palácios-fortalezas em oceano de
barbárie violenta e miserável. São duas realidades
terríveis que não existem uma sem a outra, monstruosas
irmãs siamesas que são. As desigualdades de riqueza são
menos comentadas que as de renda mas são muito mais
extraordinárias, como se verifica pelos índices de
concentração de propriedade rural e urbana, de posse de
títulos da dívida publica, da poupança bancária e
das ações de empresas, sendo mais fundamentais do que as de renda
para explicar as desigualdades de toda ordem.
8. As desigualdades
políticas se manifestam na influência do poder econômico no
processo eleitoral, nas atividades do Legislativo, no quotidiano do Poder
Executivo, nas decisões do Judiciário, na esfera penal, policial
e penitenciária. No processo eleitoral, a influência do poder
econômico das grandes empresas e do crime organizado se verifica no
financiamento de campanhas eleitorais, que se torna necessário devido em
grande parte ao custo da propaganda na televisão e à compra de
votos. Esse custo torna quase inacessível o exercício efetivo da
política ao cidadão que não for rico ou que não for
apoiado pelo poder econômico, enquanto a remuneração dos
legisladores, sempre considerada excessiva pela mídia, torna quase
impossível a cidadãos assalariados e honestos se candidatar e
exercer seu mandato devido às dificuldades de, ao final dele, voltar
à sua atividade profissional anterior, exceto quando vinculados a
entidades de classe. De outro lado, indivíduos que enriquecem em
atividades privilegiadas ou ilegais, privadas ou vinculadas de alguma forma ao
Estado, por contratos, isenções tributárias,
créditos, etc, se candidatam ou para conquistar a imunidade
parlamentar, que dificultará o exame de suas fontes de enriquecimento
ilícito, ou para proteger grupos corporativos (ruralistas, donos de
escolas e de hospitais, organizações religiosas etc) e assim
assegurar os privilégios legais e fiscais de que gozam e que garantem
seu enriquecimento pessoal e das entidades a que pertencem.
9. No processo legislativo,
historicamente de um lado os grandes interesses econômicos financiam as
eleições e organizam seus representantes em defesa de
legislação que garanta seus privilégios enquanto o
Governo, de seu lado, por meio do controle da liberação de verbas
e do preenchimento de cargos,
compra
sistematicamente o voto de parlamentares e obtém o seu apoio. A essa
troca recíproca de
favores,
parlamentares muitas vezes se sujeitam pela impossibilidade de fazer realizar
projetos de interesse das comunidades que os elegeram sem antes
conquistar
a boa vontade das autoridades do Governo que, só então, liberam
as verbas necessárias, apesar de estarem essas já aprovadas. Esse
é um processo de corrupção da vontade política do
povo mais grave do que a corrupção econômica que se
expressa nas percentagens, comissões, desvios de verbas,
licitações fraudulentas etc.
10. Na administração pública, o orçamento
autorizativo e
não determinativo confere ao Executivo ampla liberdade de
ação assim como tem sido o instrumento para
convencer
parlamentares. De outro lado, os grandes grupos econômicos exercem
enorme influência sobre os processos decisórios, de natureza
patrimonial, como no caso de privatizações, e de natureza
regulamentadora, com a finalidade de se subtrair à
fiscalização das agências do Estado, de evadir a
tributação, em especial a do imposto de renda, e de influir sobre
a elaboração das normas relativas a tarifas públicas, etc.
Os grandes grupos econômicos, especialmente os grupos estrangeiros,
há décadas recebem tratamento de favor junto à
administração fazendária e creditícia, tal como
isenções tributárias e acesso privilegiado ao
crédito público e a condições
extraordinárias para o pagamento de dívidas junto ao Tesouro e
aos bancos oficiais.
11. No Judiciário,
grandes empresas conseguem escapar da tributação ou protelar o
pagamento de impostos através de manobras legais. Na área
criminal, os crimes de colarinho branco, de corrupção, fraude e
sonegação são levemente punidos e seus autores muitas
vezes escapam à condenação por
falhas
da legislação, ou de processo ou por leniência dos juizes.
Enquanto isso ocorre, o fisco é implacável com a imensa maioria
assalariada e a criminalidade comum não só é reprimida de
forma bárbara, violenta e arbitrária como os criminosos, e
às vezes indivíduos que são apenas suspeitos, quando
escapam ao
julgamento
sumário dos esquadrões da morte, são lançados nas
garras medievais do sistema penitenciário, onde vegetam, são
barbarizados e muitas vezes permanecem até mesmo após cumpridas
suas penas.
12. O aparelho policial age com
extrema severidade com as populações pobres, negras e
mestiças e com extrema leniência com a população de
classe média branca e em especial com os ricos e poderosos. Assim, a
título de exemplo, pequenos intermediários do varejo do
narcotráfico são sistematicamente caçados e liquidados
enquanto seus organizadores, financiadores e consumidores são
simplesmente ignorados pelo aparelho policial, e tanto mais quanto mais ricos
forem.
13. As desigualdades
educacionais e culturais se revelam nos índices de analfabetismo, na
má qualidade da escola pública, no sistema universitário
gratuito, no crescente hábito das elites e classe média alta de
enviar seus jovens para estudar no exterior, na degradação
física e qualitativa das universidades, na expansão do ensino
privado pago e ineficiente, na escassez e deficiência de
formação dos professores. Contribuem para manter e agravar essas
desigualdades a liberdade desbragada da televisão comercial e o custo da
televisão paga, a promoção desenfreada de ídolos
dos esportes, da música popular e do sexo, feita pelos meios de
comunicação, e o alto preço relativo dos ingressos a
qualquer espetáculo cultural de qualidade.
14. De um lado do fosso cultural
se encontra a maioria esmagadora da população, descendente de
gerações e gerações de escassa ou nenhuma
instrução, que se revela nos índices históricos de
analfabetismo, hoje anestesiada pela mídia comercial e opiática,
com reduzida capacidade de se beneficiar do precário sistema educacional
público e mesmo de nele apenas permanecer devido à necessidade
que tem de gerar renda (o que resulta em elevados índices de
evasão), sujeita a um
aprendizado
ministrado por professores
leigos,
sem formação pedagógica adequada. Finalmente,
prejudicada em seu desenvolvimento intelectual pela deficiência alimentar
e sanitária e, ironia das ironias, acusada de ter baixo nível de
renda por não querer se educar.
15. Do outro lado do fosso, a
minúscula minoria da população, convivendo em ambientes
familiares e sociais de elevado nível cultural, com acesso a escolas
secundárias de alto nível e caríssimas, à
universidade gratuita ou privada de melhor qualidade e a
manifestações culturais sofisticadas, capaz de financiar seus
estudos no exterior, o que tem conseqüências graves para a
contínua evasão de cérebros, para a
distorção de imagem da sociedade brasileira e para a
criação de anseios e angústias de
modernização
americanizante do país e correspondente desprezo pela sua
própria história e por seu povo.
16. Naturalmente, há
indivíduos que conseguem superar os extraordinários
obstáculos gerados pelas disparidades de toda ordem e atingir
situações de destaque econômico, político e
cultural. Trata-se de ínfima minoria em relação à
sociedade brasileira como um todo e na realidade esses casos isolados apenas
confirmam a regra da permanência e do agravamento das disparidades
sociais, e resultam de circunstâncias aleatórias individuais.
17. As vulnerabilidades externas
da sociedade brasileira estão intimamente vinculadas às
disparidades internas e aos processos de concentração de poder
que as criam e agravam. Essas vulnerabilidades não são apenas
econômicas mas também políticas e militares,
ideológicas e culturais. Têm elas sua origem nos mecanismos
históricos que constituíam a estrutura e a trama das
relações entre o Brasil Colônia e a Metrópole
portuguesa, no seio da dinâmica de expansão do capitalismo, a
partir de seu centro de irradiação europeu, no impulso de
formação da economia mundial.
18. As vulnerabilidades externas
se associam a visões do mundo e da sociedade brasileira, de seu
funcionamento econômico e político, e afetam de forma diferenciada
de um lado os setores beneficiários, e de outro os setores
vítimas das disparidades internas. Essas vulnerabilidades decorrem da
forma de criação e de expansão da economia capitalista
brasileira e de sua inserção na economia mundial; do modo como se
estruturou através dos tempos o sistema político brasileiro; de
sua inserção no sistema mundial de poder; e do processo de
formação da cultura brasileira, e de seus vínculos com a
cultura mundial, em especial com os centros dinâmicos de
elaboração e difusão.
19. A crônica
vulnerabilidade externa econômica se manifesta no comércio pela
histórica importância das exportações no total da
atividade econômica; pela concentração ainda elevada da
pauta em poucos produtos primários ou semi-elaborados; pela
dependência de importação de energia e de bens de capital.
Na esfera financeira, o crônico endividamento externo cujo serviço
contribui, juntamente com outras remessas, para crises periódicas de
pagamentos, moratórias e finalmente submissão das
políticas econômicas internas aos ditames de Governos estrangeiros
e de agências internacionais.
20. A vulnerabilidade
política e militar decorre da inexistência ou insuficiência
de produção doméstica de material bélico e de
pesquisa tecnológica na área de armamentos; da
convicção ideológica em certas elites da
escassez de poder
e da conseqüente, ainda que inconfessada, necessidade de alinhamento
político; e, finalmente, do complexo de inferioridade
político-militar, de natureza e origem colonial, que inclui o medo do
pecado mortal
que é, para a Colônia, ter armas.
21. A vulnerabilidade cultural
decorre do atraso cultural e da valorização excessiva da cultura
dos centros europeus e hoje americanos em combinação com a
desvalorização e o desprezo sistemático das
manifestações culturais brasileiras pela mídia (e por
muitos intelectuais de qualquer tendência política) e da
ausência de política cultural que as promova, preserve e defenda,
em especial naquelas áreas em que a atividade cultural passou a ser
objeto da produção e consumo massificado de interesse das
mega-empresas internacionais de entretenimento.
22. O subdesenvolvimento
econômico brasileiro não é um estado mas sim um processo,
que se revela em toda a sua força e significado na crescente
diferença entre a renda per capita brasileira e a dos países
altamente desenvolvidos e pela extrema e persistente concentração
de renda e riqueza. Apesar dos estudos que afirmam ter sido o Brasil o
país que mais cresceu nos últimos cem anos, a realidade é
que se em termos absolutos o Brasil é a oitava nação do
mundo em produção (em paridade de poder de compra), em contraste,
em termos relativos, sua renda per capita é a 85ª
e o país não se distingue nem pela capacidade de gerar novas
tecnologias nem por descobertas científicas, nem por exportar bens de
alto valor agregado o que significaria ser competitivo nos setores de ponta da
economia capitalista. Por outro lado, a distância entre a renda per
capita dos países altamente desenvolvidos e a do Brasil cresceu de cerca
de US$ 1.500 (1950) para US$ 20.000 (1999) o que sugere claramente a
existência de um processo de subdesenvolvimento
relativo.
23. Essa diferença
crescente de renda e de capacidade científica e tecnológica entre
o Brasil e os países altamente desenvolvidos é particularmente
grave no atual momento da evolução do capitalismo. Caracteriza-se
esse momento pela aceleração do progresso científico e
tecnológico; pela transformação profunda dos processos de
produzir e de guerrear, em especial devido aos progressos da
informática, da biotecnologia, da nanotecnologia e da robótica;
pela concentração de poder político, militar,
tecnológico e econômico, e finalmente pela
consolidação das estruturas hegemônicas de poder,
através de uma crescente normatização internacional
restritiva da autonomia de ação dos Estados que integram a
periferia do sistema mundial, tais como o Brasil.
24. Esse processo de
subdesenvolvimento está estreitamente vinculado às desigualdades
sociais extremas e à crônica vulnerabilidade externa que
determinam, por sua vez, a precariedade da situação dos fatores
de produção no Brasil capital, recursos naturais, trabalho
e tecnologia e das principais instituições sociais, tais
como o sistema político-partidário, a administração
pública, as forças armadas, a imprensa e o sistema educacional.
Ademais, a flagrante ampliação do hiato que separa o Brasil dos
países altamente desenvolvidos tem causado de um lado uma
sensação de impotência, desânimo e pessimismo e, de
outro lado, uma espécie de
justificativa
para aqueles setores no centro do sistema nacional que abdicaram de sua
responsabilidade de defender e promover a autonomia da sociedade brasileira, de
enfrentar os desafios internacionais e de resistir a ação
subordinadora das estruturas hegemônicas de poder.
ORIGENS
25. As extraordinárias desigualdades sociais de natureza
econômica, cultural e política
estão intimamente relacionadas com a crônica vulnerabilidade
externa, de natureza comercial e financeira, mas também política
e militar, em um processo de causação circular, e estão
elas na origem das dificuldades em superar o subdesenvolvimento, tanto em seu
aspecto de insuficiente produção como de distorcida
distribuição. Importa assim lançar alguma luz sobre suas
origens e sobre seu impacto sobre a formação da macro-estrutura
de poder.
26. As origens remotas das
desigualdades econômicas de hoje se encontram no sistema de
exploração que a Metrópole portuguesa impôs à
Colônia brasileira, fundado na escravidão, no latifúndio,
no monopólio comercial parasitário de trânsito e na
proibição às atividades manufatureiras mesmo as mais
simples, todos mecanismos óbvios de concentração de
riqueza, tanto em favor da Metrópole como das classes
proprietárias, dos homens livres e dos comerciantes reinóis na
Colônia.
27. O esforço de manter
em perfeita ignorância sucessivas gerações de negros
escravos, proibindo-os de aprender a ler e de construir relações
de família, a proibição de imprensa e de cursos superiores
no Brasil, o controle da educação pelas ordens religiosas,
imbuídas do conservadorismo social e anti-científico da
Contra-Reforma, se encontram entre as causas mais profundas do atraso e das
desigualdades culturais extremas.
28. As atuais desigualdades
políticas se originaram no regime, por definição, desigual
da Colônia; no controle e na repressão do Estado português e
de seus representantes no Brasil sobre quaisquer veleidades de maior autonomia
de parte dos brasileiros; nos estatutos jurídicos de concessão de
terras; na escravidão e na vinculação entre propriedade,
profissão e direito de participação política.
29. A crônica
vulnerabilidade externa decorre do sistema de exploração
econômica que sempre teve como objetivo principal sustentar não
só a Corte, mas toda a sociedade portuguesa, caracterizada por
disseminado parasitismo, através do exercício predatório
de atividades produtivas na Colônia que gerassem tributos e oportunidades
de comércio de intermediação para Lisboa.
30. Essas desigualdades se
instalam e se enraízam desde os primórdios da
colonização, estando expressas de imediato na
situação subordinada do indígena, sujeito à
escravização, à incorporação cultural
forçada e ao extermínio, nos privilégios políticos
e econômicos dos donatários hereditários e dos
capitães-gerais, no sistema de concessão de terras, na reserva
das funções públicas a portugueses, no regime escravocrata
fundado na violência privada.
31. Apesar da sucessão de
ciclos econômicos e de regimes políticos, os mecanismos sociais
que consagravam as desigualdades e as acentuavam simplesmente permaneceram
intocados quando da passagem fortuita do Brasil de Colônia a Reino Unido,
da transição familiar de Reino a Império e mais tarde da
Monarquia à artificial proclamação da República.
32. Muitas foram as revoltas e
rebeliões dos oprimidos contra o sistema econômico e
político colonial mas sobreviveu ele a essas revoltas, as dominou pela
violência e as fez esquecer do povo. A proclamação da
Independência e o Império não significaram uma ruptura com
os mecanismos de geração de desigualdades na medida em que
mantiveram portugueses em posições de poder político por
algum tempo, e econômico por longo tempo, não promoveram a
educação geral da população mesmo a livre,
preservaram intacto o sistema de propriedade e exploração
econômica e, em conseqüência, a causa estrutural da
opressão, das desigualdades, das revoltas e do atraso econômico do
país.
33. Em situação
econômica interna sempre precária, e com o objetivo de garantir a
arrecadação de tributos e de ampliar os lucros do
monopólio comercial, Portugal impedia o surgimento de atividades
produtivas concorrentes da sua escassa produção doméstica
ou das manufaturas que intermediava entre os centros manufatureiros
avançados europeus e o Brasil. Assim sufocava o desenvolvimento das
forças produtivas na Colônia, já de si amortecidas pela
dispersão populacional, dificuldades de transporte e efeitos nocivos da
escravidão e do preconceito social em relação às
atividades manuais e mecânicas de artesanato e manufatura, consideradas
indignas de homens livres.
34. A simplicidade
técnica e a eventual exaustão das atividades econômicas na
Colônia extrativas, agrícolas e mineradoras se
aliavam
às restrições artificiais e dificuldades naturais que se
antepunham ao desenvolvimento das manufaturas para abastecer o incipiente
mercado interno. Essa conjugação de circunstâncias faria
com que a economia brasileira dependesse fortemente do comércio exterior
e sofresse, desde a Colônia, com as variações de demanda
externa e com o surgimento de concorrentes à sua produção.
Assim, a política colonial portuguesa, ao estimular a monocultura
latifundiária e escravista de exportação e ao impedir a
diversificação de atividades na Colônia, levava à
exaustão cíclica das atividades primárias e a mantinha
cronicamente vulnerável do ângulo comercial.
35. A face financeira da
persistente vulnerabilidade externa decorre do processo de endividamento perene
do Estado português, perdulário e parasita, que dependia das casas
bancárias estrangeiras para financiar a atividade produtiva e comercial
nas Colônias e a armação das frotas indispensáveis
à defesa do sistema de arrecadação de tributos e de
comércio. Os métodos vexatórios e extorsivos de
arrecadação de tributos estiveram sempre vinculados à essa
crônica vulnerabilidade externa do Estado português e mais tarde do
Estado brasileiro e à necessidade de extrair recursos da
população para fazer face ao serviço e à
amortização de empréstimos. A variação de
fortuna de um sistema econômico vulnerável levava, na crise
comercial, a agravar o endividamento para manter os faustosos padrões de
consumo da Corte e de sobrevivência da própria sociedade
portuguesa, cuja economia interna não se havia desenvolvido por se ter
tornado parasita do sistema colonial selvagem de pirataria e
predação nas Índias e, posteriormente, da
exploração do braço escravo no Brasil e dos lucros
extraordinários do monopólio comercial, em especial do
tráfico de escravos.
36. Essa situação
de crônica vulnerabilidade externa comercial e financeira, típica
do império colonial português, transferiu-se para o Brasil no ato
de seu nascimento como nação livre. Para conseguir ter sua
independência reconhecida por Portugal e pelas Grandes Potências
européias da Santa Aliança, reacionária e restauradora,
teve o Brasil de assumir, por tratado solene, importante dívida de
Portugal para com a Grã-Bretanha, Potência aliada e protetora do
Estado português e interessada em se expandir, sem intermediário,
no Brasil.
37. Durante o Império,
foram assumidos pelo Estado brasileiro pesados empréstimos para
financiar campanhas militares, como a da Cisplatina, em especial junto
às casas bancárias inglesas que contavam sempre com o apoio
político da Coroa britânica. Com a Primeira República, a
política de valorização do café, fundada em
empréstimos externos, foi poderoso instrumento de
concentração de renda e a principal causa do endividamento
externo do Estado brasileiro. A Velha e
carcomida
República, por escassez de recursos mas em especial por motivos
ideológicos, pouco atuaria para promover a diversificação
da economia ainda que fosse apenas através da construção
de modesta infra-estrutura física e social.
38. Essa situação
não se modificou em seus traços básicos apesar dos surtos
de atividade manufatureira, como ocorreu na época da Tarifa Alves Branco
e da Primeira Guerra Mundial, e das políticas de
industrialização e de construção da infra-estrutura
física, como foram os Governos Vargas e Kubitschek. Pelo
contrário, as disparidades sociais foram se agravando e multiplicando
até atingir os extremos dos dias de hoje, pois a população
cresceu e se urbanizou e os mecanismos de concentração de renda e
poder se desenvolveram mais rapidamente do que as tentativas de
redistribuição e desconcentração. Quanto ao
ângulo externo, apesar da preocupação e dos esforços
periódicos de diversificação de exportações
e de mercados, a vulnerabilidade comercial permaneceu. Renovou-se a pauta de
exportações mas sua característica se mantém
até hoje: predominam os bens primários (onde a soja, suco de
laranja e minério de ferro substituíram em importância
produtos tradicionais, como o café), acrescidos hoje das
commodities
industriais como têxteis, aço e calçados. Aumentou, de
outro lado, com a industrialização, a necessidade de importar
para expandir a produção e manter níveis de consumo em
momentos de crise, fazendo com que a balança comercial, na
ausência de políticas ativas, apresente forte tendência ao
déficit, o que gera políticas de baixo crescimento. A
vulnerabilidade financeira se agravou na medida em que a tomada de
empréstimos públicos e privados foi incentivada acriticamente e
em que o estímulo ao ingresso desordenado de capitais especulativos e de
investimentos diretos foi de tal ordem que hoje sua influência e
participação na economia é maior do que em qualquer
época. O serviço dos compromissos brasileiros com juros,
amortizações e lucros passou a depender de um esforço
permanente, intenso e angustiado para captar novos recursos, o que vem a
contribuir em última instância, por seus efeitos sobre a
política de juros e de corte de investimentos públicos, para a
estagnação econômica, e para a subordinação
das políticas de toda ordem, e não apenas econômicas,
à orientação das agências
internacionais
e às
sugestões
dos governos das Grandes Potências, em especial dos Estados Unidos.
A MACRO-ESTRUTURA HEGEMÔNICA DE PODER E SUAS ESTRATÉGIAS
39. Assim, devido à forma
como se organizaram a propriedade da terra, o mercado de trabalho, com base na
escravidão, e o poder político e foram superados ciclos e crises,
foi-se formando no Brasil ao longo da sua história uma macro-estrutura
hegemônica de poder, constituída por grupos extraordinariamente
minoritários, que se beneficiam desse sistema de disparidades e
vulnerabilidades. Ademais, à medida em que se incorporaram novas etnias
à sociedade, se diversificou a atividade econômica, se construiu a
infra-estrutura, se ocupou o território, se integraram as desarticuladas
regiões em um mercado único e se urbanizou a sociedade, foram
surgindo novos grupos de interesse. Esses grupos se incorporam gradualmente
à macro-estrutura de poder, buscando espaço para influir e
executar políticas em seu próprio beneficio, em disputa e
cooperação com os grupos dela já integrantes.
40. De outro lado, e em
contraposição a essa macro-estrutura, os mesmos fatores geraram
uma enorme periferia de populações dispersas, desarticuladas,
oprimidas e miseráveis no campo e nas cidades. Entre a macro-estrutura e
sua periferia, foi-se formando uma camada de profissionais liberais,
intelectuais, pequenos comerciantes e industriais, funcionários
públicos, empregados no comércio, artesãos e
operários qualificados que almejam integrar aquela macro-estrutura, com
ela se identificam ideologicamente, desprezam a massa negra, mestiça e
branca pobre, operária, trabalhadora ou marginalizada, e se beneficiam
de pequenos privilégios.
41. A manutenção
de sistema tão, e cada vez mais, desigual socialmente e de tamanha
concentração de poder, em situação de recorrentes
crises externas com profundos reflexos internos, somente foi possível
graças a uma combinação de esquemas de força, de
desarticulação social e de persuasão ideológica.
Somente a convicção íntima da
maioria
da população de que aqueles sistemas de extorsiva
exploração econômica da Colônia pela
Metrópole, dos escravos pelos senhores, de opressão
política da população brasileira pelas autoridades do
Estado, portuguesas e depois nacionais, eram naturais e os melhores
possíveis, aliado ao uso implacável da força contra os que
se rebelavam, poderia ter assegurado a sobrevivência daqueles sistemas
durante a Colônia e o Império e seus sucessores no Século
XX. As ideologias fundamentais elaboradas na macro-estrutura para justificar as
extraordinárias desigualdades sociais, as visões do funcionamento
e do desenvolvimento
desejável
para a sociedade brasileira, as interpretações de
situações conjunturais e as políticas propostas para
enfrentá-las são essenciais para compreender como um sistema
tão desigual desde seus primórdios pode persistir no tempo e
sobreviver às crises que o atingiram ciclicamente e às
próprias tentativas de reformá-lo.
42. O poder da macro-estrutura
hegemônica da sociedade brasileira tem sua última instância
no sistema jurídico, policial e penitenciário que permitia a
repressão violenta e implacável daqueles que se rebelavam contra
a autoridade portuguesa e mais tarde contra suas herdeiras, as autoridades
imperiais e republicanas da República Velha e do Estado Novo; do regime
democrático da Constituição de 1946, da Ditadura e da Nova
República de 1985.
43. Os aspectos
jurídicos principais foram o estatuto da escravidão; o poder de
vida e morte reconhecido pelo Estado aos grandes proprietários rurais
sobre seus escravos, dependentes e familiares; a dificuldade de acesso à
propriedade agrária, consagrada na Lei de Terras de 1850; a
vinculação, após a Independência, do poder
político à propriedade e à renda e nos tempos atuais a
consagração da violência como forma
aceitável
de comportamento das autoridades do Estado em relação à
população pobre, negra e mestiça, considerada e tratada a
priori, em razão de sua aparência étnica e econômica,
como criminosa.
44. O tratamento
arbitrário, violento e desumano, porém legal, que foi dado
durante cerca de 350 anos aos escravos e à população
mestiça e branca pobre, os quais eram vítimas dos senhores e do
Estado quando fugiam ou se rebelavam, e mais tarde da polícia, com o
objetivo de mantê-los
disciplinados
e sujeitos à exploração de sua força de trabalho e
subordinados aos caprichos dos ex-senhores, simplesmente permaneceu após
a Abolição, tendo sido
herdado
pelas instituições descendentes daquelas.
45. Assim, a violência se
consagrou na prática como forma do Estado se relacionar com a enorme
maioria da população. As classes, grupos e categorias
privilegiadas que integram a macro-estrutura de poder e as classes
médias, que se sentem vítimas, de fato ou potenciais, da revolta
anômica e cada vez mais armada dos oprimidos, aceitam e aprovam
socialmente a violência do Estado, através da polícia, da
justiça e do sistema penitenciário, cujas prisões
apresentam condições semelhantes às das senzalas,
senão piores.
46. Todavia, a violência
exercida de forma onipresente e quotidiana teria custo altíssimo e seria
insuficiente para manter em
paz razoável
um sistema tão desigual e com tamanhos extremos de miséria e
riqueza ostentada. A persuasão e a convicção
ideológica se tornam assim essenciais para que todos os grupos
beneficiários, vítimas ou marginais se convençam da
inevitabilidade e até da benemerência do sistema e assim possam
uns gozar e outros suportar as injustiças, enquanto mantêm suas
consciências, tranqüilas umas, anestesiadas outras.
47. A persuasão
ideológica se verifica através da construção,
manipulação e difusão de quatro
teorias
que
justificam
as desigualdades sociais extraordinárias. Segundo a primeira dessas
teorias as desigualdades existem verdadeiramente mas são naturais e,
portanto, justas; a segunda afirma que as desigualdades existem de fato e
são lamentáveis mas que os culpados pelas desigualdades
são os próprios oprimidos; a terceira aceita a existência
das desigualdades, as lamenta e culpa, de forma vaga, a
sociedade
como um todo mas argumenta que somente podem ser superadas a longo prazo;
finalmente, a última teoria diz que as desigualdades existem, são
profundamente injustas, mas que são pouco importantes para o
cristão verdadeiro, que tem diante de si o desafio e a tarefa essencial
e árdua de conquistar a Vida Eterna.
48. A teoria da superioridade
natural das raças puras e a maldição dos mestiços,
que reuniriam os defeitos das raças de que descendem sem herdar-lhes as
qualidades, conduziria às conclusões
científicas
sobre a preguiça, a ociosidade, a incapacidade técnica e
empresarial, a luxúria e outros vícios que caracterizariam o povo
brasileiro e que explicariam sua privação, pobreza e
barbárie. Essa
teoria
, como as demais, desvia a atenção dos temas da propriedade, da
opressão política, da omissão do Estado, da
violência da escravidão e do trabalho assalariado sem
proteção, causas verdadeiras do estado deplorável da massa
da população. Alguns levariam ao extremo o argumento da
raça, a ponto de especular sobre qual teria sido o destino do Brasil se,
ao invés de ter sido colonizado por portugueses, raça
ibérica inferior e mestiça, o tivesse sido por holandeses ou
ingleses.
49. A ideologia da raça
pura esteve sempre ligada intimamente à ideologia de superioridade de
civilização. O exercício do domínio sobre
índios, negros, pobres e mestiços se justificaria mais pela
civilização do que pela raça e pela missão de
converter à
modernidade
tais seres de civilizações (ou situações)
inferiores e arcaicas. Assim, o sucesso dos
brancos
europeus e de seus descendentes em acumular capital e em deter o controle
político do sistema não se deveria à violência dos
regimes de escravidão, da propriedade e da Colônia mas sim
à sua superioridade étnica e também civilizacional.
50. A ideologia de
superioridade da raça branca, apesar da origem mestiça dos
portugueses, permaneceu durante toda a Colônia e o Império e foi
confirmada
pelas teorias do francês Gobineau, que privou da amizade do Imperador D.
Pedro II, o rei-filósofo, que serviram para justificar políticas
de imigração que tinham a finalidade explícita de promover
o
branqueamento
gradual da sociedade brasileira. Os imigrantes sofreram
restrições legais para ter acesso à propriedade rural,
pois se os ideólogos do branqueamento os apreciavam como brancos os
latifundiários e seus representantes no Parlamento os desejavam
principalmente como mão-de-obra barata. Esses imigrantes se
identificaram rapidamente com os grupos dominantes (enquanto os elementos
contestatários entre os imigrantes, em especial os anarquistas, foram em
devido tempo expulsos do país) em contraposição à
enorme maioria negra e mestiça, dela procurando manter distância.
51. De seu lado, a
religião católica exercia profunda influência no sentido de
neutralizar os sentimentos e anseios de rebelião das
populações oprimidas, negras, brancas ou mestiças,
através da negação da importância dos bens materiais
e da afirmação da superioridade absoluta do objetivo de
alcançar a Vida Eterna. Naquela Vida, no Paraíso, os humildes e
oprimidos viriam a ser até superiores aos cruéis senhores brancos
devido a seus sofrimentos nesta terra, os quais deveriam ser aceitos com grata
resignação, pois a eles eram submetidos pela vontade divina, para
provar a sua fé. Essa influência neutralizadora da revolta social
contra a opressão foi exercida com exclusividade pela Igreja
Católica enquanto teve ela o monopólio de religião
oficial, mas hoje sua ala conservadora tem concorrentes e colaboradores na
pregação de certas seitas protestantes em acelerada
expansão. O oprimido, diante da promessa de Vida Eterna e de
valorização
de sua condição de oprimido neste mundo, se refugia no
individualismo da fé e aceita as injustiças sociais como
inarredáveis e alheias a seu interesse principal, que é a
salvação individual. É difícil exagerar a
importância da religião conservadora como instrumento para manter,
durante séculos, o regime opressor da estrutura hegemônica de
poder e mais fácil, conhecendo essa função, compreender a
atual omissão do Estado diante da proliferação de seitas e
das práticas mercantis e empresariais ilegais e escandalosas praticadas
por alguns dirigentes dessas seitas.
52. As organizações religiosas conservadoras aliam
tradicionalmente
à pregação da salvação individual a
necessidade da prática de
boas obras
as quais aliviam, em nível individual, as dores de consciência e
os sentimentos de culpa e, em nível político, contribuem para
reduzir as tensões e para a sobrevivência da estrutura
hegemônica de poder. Essas
boas obras
se organizam pela ação altruísta de indivíduos
generosos, porém ingênuos, e pela ação
maquiavélica de indivíduos privilegiados. Os sistemas de
assistência laica ou religiosa às populações mais
carentes evoluíram desde as coloniais Santas Casas de
Misericórdia, até às obras de beneficência e
campanhas de caridade privada, aos esquemas oficiais do Estado do Bem Estar
Social, e às práticas
modernas
de comunidade solidária, de parcerias entre Estado e iniciativa privada.
53. A despolitização da massa dos excluídos (e mesmo das
classes
médias) é estratégia importante para a sobrevivência
e expansão da estrutura hegemônica de poder. O argumento diz que a
política e o Estado são as causas da opressão que sofre o
povo e que essas atividades políticas e de governo são exercidas
sempre por corruptos e corruptores. O
homem de bem
delas não deve participar pois de um lado
não adianta,
pois os
mesmos
são sempre eleitos, e por outro lado corre o risco de se corromper.
Deve ele entregar-se de corpo e alma ao esforço individual de progredir
material e espiritualmente e deixar a política (e o exercício do
poder) para
os outros.
54. Hoje em dia a mídia,
em especial a televisão, compartilha com as religiões
conservadoras o exercício dessa função quotidiana de
despolitização, através do estímulo incessante ao
individualismo e ao consumo; da exaltação dos bem sucedidos
economicamente em atividades
pop,
tais como desportistas e artistas, em especial se forem oriundos da massa
oprimida; da promoção do antagonismo e rejeição
à política; da denúncia estridente mas descontínua
dos escândalos de corrupção. Essa seria a causa de todos os
males da sociedade, e não os mecanismos de concentração de
poder e renda, e assim seriam suficientes para resolvê-los reformas
superficiais moralizadoras das instituições e do processo
político. A mídia, enquanto promove o antagonismo à
política e exalta o individualismo e o consumismo, paradoxalmente culpa
o povo pela fragilidade da democracia e das instituições no
Brasil devido a sua pequena participação nas atividades
políticas.
55. As ideologias fundamentais não só
justificam
o sistema político, econômico e social, absolvem seus
beneficiários e as instituições que geram e reproduzem
benefícios e privilégios, como podem até exaltar
características
especiais
da sociedade brasileira que viriam, quiçá, a ser sua original
contribuição para a humanidade tais como a
cordialidade,
a
igualdade racial,
o
jeitinho
etc. Finalmente, oferecem uma esperança a todos na miragem da
educação que redimiria aqueles que, por sua própria culpa,
não podem ainda participar dos privilégios da sociedade
brasileira e que, se e quando
educados
(ou seus descendentes), poderiam deles se beneficiar como indivíduos.
Outra esperança sem esforço e sem lógica que o Estado
organiza para tributar mais é a miragem impossível da loteria, de
que participam dezenas de milhões por semana.
56. As ideologias fundamentais
para explicar as desigualdades, superioridade civilizacional, de
raça,
de mérito e a promessa do Céu justificariam o
domínio
econômico e político dos portugueses sobre índios, negros e
brasileiros, e mais tarde, a partir da Independência, dos grandes
latifundiários e comerciantes sobre a massa de escravos, mestiços
e pobres. A República Velha não transformou esse estado
ideológico de coisas pois não afetou a base dessas ideologias que
justificavam de diversos modos a superioridade e domínio dos
latifundiários e seu direito de controlar, de forma oligárquica e
plutocrática, a república e a democracia. A crise de 1929 e a
Revolução de 30 vêm pela primeira vez colocar em cheque o
esquema de poder político dos latifundiários e das oligarquias
políticas rurais. Todavia, a Revolução de 30 não
chegou a tocar na questão da propriedade agrária e das
relações de trabalho no campo ainda que tenha procurado criar as
bases para mitigar a longo prazo a vulnerabilidade externa e para reduzir as
disparidades e os instrumentos de opressão mais gritantes e arcaicos na
esfera econômica, ao promulgar a legislação de
proteção ao trabalho urbano, e na esfera política, ao
instituir o voto secreto e o sufrágio feminino.
57. Essas ideologias
fundamentais, que justificavam a concentração de poder,
permaneceram latentes e permearam toda a evolução da sociedade
brasileira. Até hoje, apesar de parecerem tão arcaicas,
constituem a origem de preconceitos e estereótipos sobre o sistema
econômico e político brasileiro e podem ser vislumbradas a todo
momento, sob disfarces vários, no pano de fundo do debate
político e social. Em relação a elas se elaboram as
visões estratégicas para
desenvolver o país,
propostas pelos diversos grupos que compõem a estrutura
hegemônica de poder e, finalmente, as interpretações da
conjuntura que grupos específicos articulam em sua disputa pelo centro
de poder da estrutura. Em todas essas visões e
interpretações conjunturais é possível identificar
elementos e fragmentos daquelas teorias.
VISÕES ESTRATÉGICAS NA MACRO-ESTRUTURA
58. No âmago da estrutura
hegemônica de poder, formada pelo complexo arcabouço da
legislação, dos organismos e da alta burocracia do Estado e dos
múltiplos vínculos entre grandes proprietários, partidos
conservadores, associações civis e de classe e
organizações religiosas conservadoras, e que se articula em
configurações oligárquicas e corporativas regionais,
setoriais e nacionais, surgem diversas visões sobre as
estratégias de desenvolvimento da sociedade brasileira e de sua
inserção no mundo.
59. As estratégias que
aparecem, predominam e eventualmente vão se substituindo na tarefa de
orientar a estrutura hegemônica em seus esforços de manter seu
domínio e controle sobre o sistema social e de expandir seu poder,
inclusive em nível mundial, necessitam conquistar adeptos no seio dos
diversos grupos da estrutura e da sociedade em geral. Por essa razão,
elas não se apresentam sob os rótulos de estratégia
agrária
ou
industrial
ou
militar
e assim por diante, mas sob denominações desvinculadas da
natureza íntima dos grupos de interesse onde surgem, onde predominam
(apesar de neles não serem as únicas) e a cujos interesses servem
e assim se chamam de liberal; desenvolvimentista; nacionalista; cosmopolita
etc. Essas estratégias podem ser descritas e agrupadas sob dois tipos
básicos de visão do mundo, quais sejam a visão
economicista e a visão política, assim denominadas devido ao
enfoque que privilegiam em sua análise.
A VISÃO ECONOMICISTA DO MUNDO
60. Em sua interpretação da realidade brasileira e do mundo a
visão
economicista atribui a mais alta prioridade à organização
e à dinâmica econômica da sociedade nacional e do sistema
internacional.
61. Segundo esta visão, o
indivíduo, como produtor e consumidor, tem maior importância do
que o indivíduo como cidadão ou do que o indivíduo como
ser cultural. O interesse fundamental da sociedade deve ser o aumento
incessante da produção e do consumo de bens materiais, o qual
é identificado com o bem estar dos indivíduos que, por sua vez,
seriam tanto mais felizes quanto mais bens pudessem consumir. A felicidade e a
prosperidade econômica dos indivíduos necessariamente leva
à paz e ao convívio harmônico no seio de cada sociedade,
cujo bem-estar é a soma do bem estar dos indivíduos que a
compõem. Sociedades prósperas são sociedades felizes e a
harmonia universal decorreria dessa prosperidade das sociedades nacionais.
62. De acordo com essa
lógica, os fenômenos econômicos têm maior
importância do que os políticos, culturais, sociais e
éticos e o funcionamento da economia nacional e internacional aparece
como a causa determinante das questões políticas e sociais. Os
eventos internacionais e nacionais podem ser explicados pelas suas causas
econômicas e suas conseqüências principais são
também de natureza econômica, ficando relegadas a um segundo plano
as causas e as conseqüências sociais e políticas. Assim, a
análise econômica da situação nacional e
internacional deve e pode fornecer a base suficiente para a
definição das políticas de Estado para enfrentar
não só as questões econômicas como as de natureza
política e social específicas.
63. A visão economicista
da sociedade brasileira aceita a premissa da teoria econômica
clássica que isola, para fins de análise, por serem
exógenos, os fatores não-econômicos, já que os
considera implicitamente como estáveis ou irrelevantes, na medida em que
a estrutura política e social que existe seria, por
definição,
natural, adequada e justa
em seus fundamentos e funcionamento, cabendo eventualmente apenas pequenos
ajustes para corrigir os efeitos daninhos de eventuais
intervenções humanas equivocadas.
A ESTRATÉGIA LIBERAL
64. A estratégia liberal
para o desenvolvimento brasileiro é essencialmente cosmopolita e
mercantil. Considera o mundo, a humanidade como um todo, como o ângulo
privilegiado e correto de análise das questões pois as
preocupações nacionais, os nacionalismos, o enfoque nacional para
analisar e resolver problemas econômicos e políticos estaria na
origem dos conflitos, das guerras e das desigualdades e, portanto, do
sofrimento da humanidade.
65. Essa visão teria sua
origem em Cobden, economista inglês da escola de Manchester, que defendia
ardorosamente por volta de 1850 a tese de que o aumento do comércio e
dos vínculos econômicos entre países, além de serem
essenciais para a eficiência do sistema econômico de cada
país e do mundo, contribuiriam para a paz entre os povos. Assim, os
obstáculos ao comércio não somente reduziriam a
eficiência do sistema econômico mundial mas, ao causar
fricções e competição desleal entre os Estados, em
última análise provocariam as guerras.
66. A estratégia liberal
no Brasil tem duas versões principais. A versão tradicional tem
sua origem mais remota na luta contra o monopólio colonial de
comércio, que estrangulou o desenvolvimento econômico e era a
peça chave de exploração da sociedade colonial durante
trezentos anos, até 1808, quando o Príncipe Regente ao chegar
à Bahia, com a Corte portuguesa transferida para o Brasil, decreta a
Abertura dos Portos às Nações Amigas, medida que enfrentou
a oposição da Grã-Bretanha, que já gozava de
tratamento comercial privilegiado, situação que aliás
recuperou com os Tratados de 1810.
67. A estratégia liberal
tradicional considera que o Brasil deve se concentrar na
exploração estrita de suas vantagens comparativas e aí ser
eficiente e competitivo. Os reiterados esforços de
industrialização através de políticas de
substituição de importações foram sempre, no
mínimo, um equívoco pois a atividade industrial não teria
hoje, não teve no passado e não poderia vir a ter bases
sólidas no Brasil, pois não será capaz de competir, com
eficiência e sem proteção do Estado, com a indústria
em acelerada expansão nos países mais avançados.
68. Assim, devem a sociedade e o
Estado brasileiros dedicar toda sua atenção e o melhor de seus
esforços a procurar aproveitar as vantagens comparativas óbvias
de solo, extensão territorial e clima para produzir bens
agrícolas e, quando possível e no limite, manufaturas deles
derivados, exportá-los competitivamente e importar os bens que
não pode produzir com eficiência.
69. Qualquer
restrição ao comércio, importador ou exportador, qualquer
controle cambial, é visto como distorsivo e artificial, assim como
qualquer intervenção do Estado, de forma direta ou indireta, na
esfera econômica, em especial qualquer iniciativa de política
industrial, que seria injusta porque privilegiaria alguns setores e
empresários privados, e equivocada, pois distorceria o sistema de
preços e a estrutura econômica, prejudicando os consumidores em
geral.
70. A estratégia liberal
em sua versão
tradicional
advoga toda a prioridade ao comércio exterior, à liberdade de
câmbio, à ausência de ação do Estado, pois
quando ocorre ela distorce o comércio, e defende tarifas baixas e
não-discriminatórias. Os setores sociais onde ela se origina e
onde tem maior influência e trânsito são os setores
conservadores da classe média, as entidades de profissionais liberais,
os latifundiários e as associações comerciais de
importadores e exportadores, os rentistas e, de uma forma geral, tem ampla
aceitação entre o que a mídia chama de
consumidores.
71. A versão
moderna
da estratégia liberal, chamada de neo-liberal, argumenta que a economia
brasileira talvez seja hoje competitiva em algumas linhas de atividade
industrial, a que chama de
nichos.
A melhor política para identificar esses
nichos,
eventualmente eficientes e competitivos, seria um programa vigoroso de
liberalização comercial. Essa liberalização,
além de abrir a economia e torná-la mais atraente e
confiável ao capital estrangeiro, financeiro ou de investimento,
submeterá as empresas brasileiras à competição,
controlará a inflação e terá um
efeito-demonstração positivo, forçando a indústria
e o consumidor a se
modernizarem.
72. Essa versão
moderna
é levada a admitir (pois o parque industrial brasileiro ainda que para
ela
indesejável
é uma realidade inamovível e não algo a ser criado) que,
além de
commodities
agrícolas, o Brasil pode e deve produzir apenas
commodities
industriais, isto é, bens industriais de tecnologia simples e que sejam
em essência fabricados a partir de matérias-primas abundantes no
país, tal como ocorre nos casos da agroindústria e da siderurgia.
Por isso, assim como no passado não deveria o Brasil ter se
aventurado
na indústria, hoje, devido a seu nível inferior de capacidade e
eficiência industrial, não pode e não deve procurar
investir nos setores industriais de tecnologia de ponta. Tais tentativas
levariam a desperdícios lamentáveis pois nesses setores seria o
Brasil de um lado intrinsecamente não-competitivo, e de outro poderia
com vantagem e sem dificuldade importar tais produtos de alta tecnologia dos
países
líderes
da economia mundial.
73. Essa estratégia
neo-liberal para o desenvolvimento brasileiro advogou com firmeza o fim da
política nacional de informática, e não atribui maior
atenção à biotecnologia nem aos programas de pesquisa
científica e tecnológica. Ora, esses setores constituem hoje os
aspectos que caracterizam a nova revolução não apenas
industrial, mas de toda a economia e esses programas se encontram no centro da
estratégia econômica dos Governos dos países altamente
desenvolvidos. O argumento que apresentam os neo-liberais é que, se
houver real interesse e possibilidade, as inversões nos setores
industriais de ponta serão feitas naturalmente pelo capital estrangeiro,
que trará a tecnologia mais avançada ou, caso isto não
venha a ocorrer, mesmo a tecnologia mais avançada poderia ser adquirida
no mercado pelas empresas brasileiras que dela necessitassem.
74. De acordo com a
estratégia liberal, tradicional ou moderna, o desenvolvimento industrial
deve ocorrer, se ocorrer, de forma natural, não se devendo, como se
tentou equivocadamente no passado, estimular investimentos em geral, procurar
induzir investimentos em determinados setores ou disciplinar sua
ação, e assim a própria existência de uma
política industrial é anátema para a estratégia
neo-liberal.
A ESTRATÉGIA DESENVOLVIMENTISTA
75. A estratégia
desenvolvimentista reconhece a importância do setor externo para a
economia brasileira mas considera que o cerne da estratégia de
desenvolvimento deve ser a expansão estimulada do mercado interno e a
diversificação do parque produtivo no Brasil.
76. A estratégia
desenvolvimentista inicia sua argumentação afirmando que a
demanda e o consumo de produtos primários nos centros mais desenvolvidos
não acompanha proporcionalmente o crescimento da renda enquanto que
aqueles bens estão sujeitos a flutuações de preços
súbitas e amplas, o que afeta a capacidade nacional de importar e
portanto de investir, inclusive na infra-estrutura, com graves
repercussões sobre o nível interno de emprego e renda e a
estabilidade social do país.
77. Assim, a dependência
excessiva da produção e exportação de produtos
primários torna a capacidade de gerar divisas para importar a gama de
bens que a sociedade brasileira crescentemente demanda permanente ou pelo menos
periodicamente insuficiente, com graves conseqüências.
78. Por outro lado, diz a
estratégia desenvolvimentista, o processamento industrial agrega valor,
qualifica a mão-de-obra, educa a cidadania e beneficia a sociedade,
enquanto que o crescimento demográfico e a urbanização
rápida fazem com que a geração de empregos para ocupar de
forma produtiva a população tenha de ser urbana e em grande parte
no setor industrial ou no setor de serviços o qual, aliás, se
vincula estreitamente às atividades industriais.
79. Todavia, por razões
óbvias, a indústria nascente é menos competitiva e sujeita
à concorrência leal ou desleal dos produtores (e exportadores)
tradicionais que desejam manter e expandir o mercado brasileiro para seus
produtos. Assim, o que se verifica é que os tradicionais supridores do
Brasil, aberta ou veladamente, têm resistido de forma sistemática
às tentativas de industrialização, desde os tempos da
Colônia. É forçoso concluir que somente a
ação do Estado pode permitir o desenvolvimento industrial
integrado e sustentado, em especial à medida que se oligopolizam e se
cartelizam os mercados em nível mundial, com o surgimento de
mega-empresas multinacionais.
80. Ademais, quanto mais nova e
menos conhecida uma tecnologia menor a competição no mercado do
produto a que corresponde e maiores os lucros da empresa que a controla;
portanto, os detentores de tecnologias mais avançadas, não de
conhecimento geral, não a vendem, nem a transferem nem a alugam e
daí mais um argumento para justificar a ação do Estado.
81. A versão da
estratégia desenvolvimentista que considera indispensável a
cooperação do
capital estrangeiro
considera que o crescimento acelerado da economia brasileira depende de uma
massa tal de investimentos, e portanto de poupança, que não
são disponíveis no Brasil. O capital estrangeiro permitiria
aumentar o total da poupança disponível no país para
investimento, sem que fosse necessário alterar as taxas de
poupança e de tributação e, portanto, sem aumentar a
influência e a participação do Estado na economia, o que
seria a seu ver indesejável. O investimento estrangeiro ademais traria
consigo a tecnologia mais avançada de produção que, de
outra forma, não seria possível ao Brasil utilizar. Finalmente,
as empresas multinacionais adotariam práticas modernas de
organização empresarial e remuneram melhor seus
funcionários, o que teria efeitos sociais importantes ao influenciar o
comportamento das empresas brasileiras.
82. Em resposta aos que
argumentam ou previnem contra os riscos do excesso de influência do
capital estrangeiro na sociedade brasileira, essa versão afirma que o
capital estrangeiro moderno, em sua forma multinacional, não tem
pátria e portanto ele se comporta exatamente como o capitalista nacional
e que, nos casos em que sua atividade pudesse vir a trazer risco para a
segurança econômica nacional, o Estado brasileiro sempre poderia
fazer uso de seu direito legítimo de desapropriação.
83. A origem dessa versão
da estratégia desenvolvimentista pode ser encontrada nas
associações de empresários de setores tradicionais, nas
empresas vinculadas, na qualidade de fornecedoras, compradoras, ou licenciadas,
a empresas estrangeiras, e em setores da classe média tais como
profissionais liberais vinculados de uma forma ou de outra ao capital
estrangeiro e intelectuais imbuídos de preconceitos em
relação à capacidade do empresário brasileiro.
84. A versão da estratégia desenvolvimentista que advoga que o
capital nacional
deve ter papel central na construção da indústria
brasileira considera que, para alcançar níveis cada vez mais
elevados e integrados de desenvolvimento, o capital estrangeiro não
seria suficiente. O capital estrangeiro somente estaria, a seu juízo,
interessado nos setores mais lucrativos da economia, de menor risco e de
retorno mais rápido e assim, apesar de seus efeitos iniciais
benéficos, tenderia a promover a acumulação de capital no
exterior e não no Brasil, o que tornaria a taxa de expansão da
capacidade instalada inferior à que seria possível. Por outro
lado, a certos tipos de tecnologia em certos setores industriais o Brasil
somente poderia ter acesso se realizasse um esforço de pesquisa e de
investimento próprio, o que tornaria necessária a
ação do Estado para permitir o desenvolvimento industrial nas
áreas de ponta e, portanto, uma política industrial e comercial
que privilegiasse o capital nacional. Nos casos estratégicos, seria
indispensável a realização de investimentos diretos do
Estado, em associação, sempre que possível, com o capital
nacional.
85. Finalmente, as empresas
estrangeiras não teriam interesse em exportar a partir do Brasil para
certos destinos devido a sua estratégia global de divisão de
mercados, o que limita a possibilidade de diversificação da pauta
e de mercados do comércio brasileiro e sua capacidade de gerar divisas
enquanto que, no âmbito da disputa global de mercados, as empresas de
capital estrangeiro estão sujeitas à influência
política dos Estados a que pertencem seus controladores o que pode levar
a eventuais interferências e atritos políticos.
86. Os formuladores e defensores
da versão nacional da estratégia desenvolvimentista se encontram
na tecnocracia de empresas do Estado, em setores militares, e em certas
empresas industriais de capital nacional, sem vínculos importantes com o
exterior, quer comerciais quer de controle do capital, e em grupos de
intelectuais de tendência nacionalista.
87. Em conclusão, tanto a
estratégia liberal, com sua ênfase no papel central do
comércio, como a desenvolvimentista, que enfatiza o papel dinâmico
da indústria, têm como foco a questão econômica
à qual subordinam as demais, não atribuindo a devida
importância às questões políticas nacionais e aos
interesses internacionais do Brasil. A predominância nos últimos
anos de economistas no núcleo decisório dos Governos e a
crônica crise externa explicam o enfoque e a ênfase economicista
que tem dominado, obscurecido e empobrecido a discussão política
nacional nas últimas duas décadas.
A VISÃO POLÍTICA DO MUNDO
88. A visão
política da realidade brasileira e mundial, em
contraposição à visão economicista, argumenta que o
interesse superior dos Estados é garantir a melhoria crescente de
bem-estar de suas populações e a segurança de seus
territórios e que, no caso de certos Estados, o interesse pela
segurança ultrapassa o âmbito do território nacional e
passa a ser regional e até mesmo global.
89. A atividade econômica,
todavia, não é menos importante do que a política: apenas
a primeira é condicionada pelas regras que cabe à sociedade e ao
Estado definir através de processos políticos domésticos
de negociação de que participam os grupos sociais, e, em
nível internacional, de processos de negociação com os
demais Estados. A atividade política nacional e internacional de
definição da moldura jurídica que delimita as atividades
das empresas deve ter, portanto, a mais alta prioridade. Além das
questões econômicas, a atividade política define
também, em nível interno, toda a gama de relações
entre indivíduos, empresas, grupos sociais e instituições,
nas esferas política, religiosa, familiar e assim por diante,
disciplinando atividades que têm importância essencial para a vida
em sociedade. Em nível internacional, a atividade política de
negociação entre os Estados define a própria estrutura
jurídica do sistema internacional e os diversos aspectos das
relações entre Estados, indivíduos e empresas tais como as
normas relativas a comércio, a investimento, a capitais, aos movimentos
do trabalho, ao meio ambiente, a temas militares e assim por diante, que formam
a moldura dentro da qual atuam internacionalmente as empresas, os
indivíduos e as agências do Estado.
90. Segundo a visão
política, as regras que organizam o mundo e que distribuem
benefícios dentro dos Estados, e entre os Estados, e que determinam
direitos e deveres são definidas pelos Estados e compõem a
moldura indispensável
para que as empresas possam desenvolver suas atividades, não importa a
sua dimensão. Todavia, o fato de não existir um único
conjunto de regras que distribua os benefícios e os custos de forma
absolutamente justa e equilibrada entre os Estados faz com que as regras sejam
definidas a partir de negociações entre Estados que incluem
necessariamente exercícios de Poder, de que participam em grau menor as
mega-empresas e as organizações não-governamentais, as
ONGs. As negociações e as relações internacionais
são regidas assim por exercícios de Poder e jamais por esquemas
lógicos, cartesianos ou imparciais ou por gestos e atos de boa vontade.
O Poder tem aspectos econômicos, políticos e militares, mas
certamente a atividade política é vital para a economia,
pública e privada.
91. Cada Estado procura fazer
com que as normas internacionais que venham a ser definidas nesses processos de
negociação sejam tais que suas sociedades sejam potencialmente
beneficiadas da melhor forma possível. Assim, quando um Estado aparece
em âmbito internacional como defensor de determinadas regras ou conjuntos
de regras em relação a qualquer tema é porque tem a
expectativa de que essas virão a beneficiá-lo, e à sua
sociedade, indivíduos, instituições e empresas, mais do
que aos demais Estados e as sugestões que acaso apresente para
beneficiar a terceiros Estados são apenas táticas de
negociação para obter apoios para seus objetivos últimos.
A ESTRATÉGIA POLÍTICA LIBERAL
92. A estratégia política liberal considera inicialmente como
fixa a
distribuição de poder econômico e político na
sociedade e que essa distribuição seria razoavelmente
eqüitativa e justa, sendo que nenhum grupo social teria força para
influir decisivamente sobre o processo de elaboração e
execução de normas de forma a
organizar
em seu favor a sociedade. Dessa forma,
mutatis mutandis,
a estratégia política liberal se funda em premissas semelhantes
às que se encontram no cerne da estratégia econômica
liberal, que considera que o sistema econômico natural deve ser
caracterizado pela livre concorrência, sem interferência do Estado,
entre unidades de produção e consumo de tamanho semelhante e
tão pequenas que não podem influenciar os preços e assim
manipular o sistema em seu favor.
93. Essa estratégia
liberal se preocupa essencialmente com a construção e a defesa do
sistema democrático formal, que se caracterizaria pela divisão de
poderes do Estado (Executivo, Legislativo, Judiciário) independentes,
harmônicos e cooperativos, com a realização de
eleições, livres e periódicas, para a escolha de
representantes do povo; por uma legislação efetiva de
proteção dos direitos civis e políticos individuais, tais
como a liberdade de imprensa, de reunião, de associação,
etc; por uma legislação que garanta o livre jogo de
forças de mercado, que considera como essencial à democracia.
94. Na esfera internacional, a
estratégia política liberal considera que o sistema internacional
é formado por Estados iguais, de poder semelhante, que tendem a cooperar
entre si para o bem estar da humanidade e a paz, desde que neles
prevaleça a democracia. Ainda que admita e reconheça
diferenças de poder entre os Estados, tão óbvias que
são, os Estados poderosos não exerceriam seu poder em proveito
próprio mas sim para o bem da humanidade, sem oprimir os mais fracos.
Assim, para a estratégia liberal, o ideal de inserção
política para o Brasil no mundo é cooperar com todos os Estados,
se antecipar nos processos de paz e desarmamento, não desafiar
inutilmente as Grandes Potências, pois são elas mais poderosas e
beneficentes, não procurar exercer qualquer protagonismo devido à
escassez de poder
do Brasil e aceitar as regras do sistema internacional que, afinal, é
imparcial e benéfico a todos os Estados que se comportem de
forma civilizada.
A ESTRATÉGIA POLÍTICA REFORMISTA
95. A estratégia
política reformista considera que o poder político e
econômico no Brasil é em extremo concentrado e que o sistema
político representa basicamente os interesses dos grandes grupos
econômicos, que se beneficiam das disparidades econômicas e sociais
que caracterizam a sociedade brasileira. Assim, a reforma eficiente da
sociedade, para corrigir disparidades e vulnerabilidades e para promover o
desenvolvimento e assim tornar possível uma sociedade mais justa e
próspera, se torna tarefa extremamente complexa e difícil em um
regime político liberal, formal e tradicional. A estratégia
reformista se divide em duas vertentes: a democrática e a
autoritária.
96. A estratégia
reformista democrática preconiza a organização social dos
movimentos populares para pressionar vigorosamente o sistema político e
o Estado e assim fazer aprovar a legislação e políticas
públicas que permitam mitigar os efeitos e reverter a ação
dos principais mecanismos de concentração de renda e de poder,
sem todavia afetar radicalmente a distribuição de riqueza.
97. A reforma do sistema
tributário para torná-lo menos regressivo; do sistema educacional
para torná-lo público, geral e laico; a defesa dos direitos
humanos econômicos, em especial a defesa do direito ao desenvolvimento,
ao trabalho e ao emprego; a luta contra a pobreza; a defesa de
legislação para coibir a influência do poder
econômico no processo político e administrativo são todas
bandeiras da estratégia reformista democrática.
98. A versão
autoritária da estratégia política reformista parte da
idéia de que a reforma da sociedade brasileira é de extrema
urgência, caso se deseje evitar o caos social e político e
preservar o regime capitalista. O sistema político liberal formal, por
representar os interesses entrincheirados de oligarquias egoístas e
arcaicas, não é capaz de promover as reformas necessárias,
inclusive devido à ação das corporações
sociais e dos
lobbies
econômicos. Assim, somente classes, setores da macro-estrutura
especialmente
habilitados
pela sua formação e
imparciais
pela sua origem poderiam ser capazes de enfrentar com êxito essa tarefa.
Dois seriam esses setores: os intelectuais e os militares já que ambos,
pela natureza de suas funções sociais e suas
preocupações, estariam acima dos interesses arcaicos que se
beneficiam há séculos das injustiças do sistema
econômico e político brasileiro.
99. A estratégia
reformista considera que o atual sistema internacional, que define as regras de
distribuição do poder político, econômico e militar,
deriva diretamente do sistema de impérios coloniais que organizou a
expansão geográfica do capitalismo desde seu centro
dinâmico europeu, no longo período que se inicia com as Grandes
Descobertas, sistema que sobreviveu até os anos 60 e 70 do século
XX.
100. Esse sistema
internacional é formado, de um lado, por um centro constituído
pelas Grandes Potências e Estados desenvolvidos, ex-metrópoles
coloniais, ricos e fortes militarmente, e que organizaram o mundo após a
II Guerra Mundial sob o comando da Grande Superpotência, e hoje
Hiperpotência, os Estados Unidos e, de outro lado, por uma periferia de
novos Estados, ex-colônias, pobres e fracos militarmente.
101. Assim, devido às
heranças do sistema colonial e às regras adotadas pelo sistema
internacional sob o comando das Grandes Potências, os processos de
concentração de poder político e econômico se
têm reforçado assim como vêm sendo criados novos mecanismos
legais que preservam e consolidam a hegemonia da macro-estrutura de poder em
nível internacional.
102. Ao Brasil caberia assim
procurar, em nível internacional, lutar pela reforma desse sistema e
buscar nele um lugar mais condizente com a sua situação e
interesses, atuais e potenciais, e evitar que ele se cristalize em normas que
impeçam ou dificultem o desenvolvimento econômico e coloquem o
país em situação de inferioridade e vulnerabilidade,
política e militar, permanentes.
103. Como estratégias
políticas específicas que se relacionam de uma forma ou de outra
com as estratégias liberal e reformista podem ser descritas a
visão militar e a visão diplomática do desenvolvimento e
da inserção do Brasil no mundo.
A VISÃO ESTRATÉGICA MILITAR
104. A visão militar do
desenvolvimento brasileiro e da inserção mundial do Brasil
argumenta inicialmente que o único local no mundo onde uma
nação pode viver de acordo com suas tradições, suas
normas e seus anseios, é o seu território e que o
território de um Estado, locus privilegiado de uma sociedade onde pode
ela desfrutar de seu ordenamento jurídico, de sua cultura e de suas
tradições e alcançar seus objetivos, está sempre
sujeito a ameaças externas de toda ordem que perturbam a
tranqüilidade desse gozo.
105. Ora, a defesa desse
território contra as ações de estrangeiros que perturbem a
sua tranqüilidade depende em última instância da capacidade
de uso eficaz da força, de forma dissuasiva ou efetiva, o qual depende,
por sua vez, de certa autonomia no suprimento de materiais bélicos,
incluindo energia, equipamento e munições. Esse suprimento,
quando dependente do exterior, não pode ser assegurado de forma
permanente e reduz a autonomia de decisão e de execução de
políticas nacionais que privilegiem os interesses do povo brasileiro.
106. Os suprimentos
bélicos de forma geral têm natureza industrial, o que faz com que
o desenvolvimento industrial seja essencial para a possibilidade de exercer
atividade militar eficaz de defesa do território. As
características do território brasileiro são de tal
natureza que esse equipamento deve incluir quantidade razoável de
veículos de todo tipo, o que implica a existência de
indústria bélica, naval, aeronáutica e de veículos
e das indústrias de suprimento básico, como a energética e
a siderúrgica. As origens históricas da preocupação
militar brasileira com o desenvolvimento da indústria bélica, e
em conseqüência das chamadas indústrias de base, se encontram
nas dificuldades encontradas pelo Exército brasileiro na Guerra do
Paraguai e na convicção que se formou gradualmente quanto
à importância de ter um parque industrial próprio desde o
início do século, e que se renovou à época da II
Guerra Mundial quando se tornou patente o despreparo militar brasileiro.
107. Finalmente, o Brasil
não tinha populações ou investimentos significativos no
exterior, o que tornava os seus interesses praticamente restritos a seu
território. Todavia, agora que começa a ter
populações e interesses econômicos significativos no
exterior, e considerando o número de vizinhos e seu litoral extenso, a
natureza dos interesses brasileiros se expandirá para além do
território e a função das Forças Armadas se
transformará, hipótese que exige prever e planejar desde
já pois a capacidade de ação militar, que inclui
necessariamente esquemas seguros de abastecimento, depende de um longo prazo de
maturação e não pode ser improvisada.
108. As duas versões
principais da visão militar da realidade brasileira e de sua
inserção mundial são o anti-comunismo e o nacionalismo.
109. A
versão anticomunista
mais estrita considerava que a questão nacional mais importante,
estratégica, do ponto de vista de política interna e externa, era
a defesa dos valores do Ocidente. Essa defesa do Ocidente deveria prevalecer
sobre qualquer outro objetivo nacional ainda que viesse a acarretar
limitações para a soberania brasileira o que, inclusive, talvez
fosse necessário já que, tendo em vista que essa soberania
deixaria de existir no caso de vitória comunista, em nível
interno ou em nível mundial, seria melhor limitá-la antes, caso
isso fosse essencial à sua própria preservação. O
extraordinário poderio militar soviético faria com que a defesa
dos valores ocidentais, caros ao Brasil, somente pudesse ser considerada
eficaz, em última análise, caso feita sob a liderança dos
Estados Unidos, e assim o alinhamento com os Estados Unidos em matéria
de política internacional se tornaria inevitável e até
mesmo desejável.
110. Os Estados Unidos
garantiriam às Forças Armadas brasileiras o suprimento de
material bélico de modo que a preocupação militar com o
desenvolvimento industrial brasileiro seria menos importante enquanto que, no
campo econômico, a adoção de uma estratégia liberal
seria possível e, até mais do que possível, seria um gesto
de amizade e de cooperação para com os Estados Unidos, o que
traria dividendos políticos significativos.
111. A
versão nacionalista
da visão estratégica militar argumenta que, apesar do interesse
básico do Brasil em manter sua tradicional amizade com os Estados
Unidos, não pode haver certeza de que estes estariam, sempre e em
qualquer circunstância, dispostos a garantir o suprimento de material
bélico para o Brasil, de acordo com os requisitos tecnológicos e
as quantidades que as Forças Armadas brasileiras julgassem
necessários e adequados. Assim, o desenvolvimento industrial, em
especial em certas áreas, com seus efeitos sobre a
capacitação militar, seria indispensável e para esse
desenvolvimento deveria ser sempre bem-vinda a cooperação
americana, o que seria possível obter.
112. A partir de certo momento a
avaliação nos meios militares passou a ser de que o perigo do
comunismo internacional e de rebelião interna tinham sido
superestimados. Assim, tanto no caso brasileiro como no de países
vizinhos, a superestimação do perigo comunista tinha levado a
atividades repressivas que se revelariam prejudiciais no longo prazo ao criar
ressentimentos e desconfianças na sociedade civil em
relação aos militares, com sério dano à imagem das
Forças Armadas, o que poderia levar, pela preocupação
excessiva de controle e contenção de despesas, a prejudicar a
capacidade de desempenhar a longo prazo seu papel essencial de defesa do
território.
A ESTRATÉGIA DIPLOMÁTICA
113. A estratégia
diplomática tradicional para a inserção do Brasil no mundo
argumenta que há um desequilíbrio entre a situação
atual do país na esfera internacional e seu potencial político e
econômico e que, portanto, há um interesse essencial do Brasil em
evitar o congelamento das estruturas mundiais de Poder e uma necessidade vital
de não assumir compromissos desiguais, em especial se tiverem natureza
permanente.
114. Segundo essa visão,
o princípio da igualdade soberana dos Estados permite ao Brasil a melhor
defesa de seus interesses nas negociações e nas
relações internacionais; o princípio da
não-intervenção em assuntos internos de terceiros
países é essencial, pois a intervenção cria
precedentes que beneficiam os Estados mais poderosos e prejudicam o Brasil; e o
princípio da autodeterminação é crucial, devido
à necessidade de preservar a liberdade de ação externa e
interna em defesa dos interesses nacionais. As modificações de
política e de regime podem ocorrer em qualquer país e assim devem
ser aceitas com naturalidade pelo Brasil para preservar seus interesses por
mais que se tenha preferência teórica por certas políticas
ou pelo regime democrático.
115. No quadro internacional, e
de acordo com esses princípios basilares, têm importância
fundamental e específica a situação geográfica do
Brasil, o grande número de vizinhos que o cercam, a extensão de
seu litoral, os interesses estratégicos da política exterior
americana na América do Sul e a importância histórica das
relações do Brasil com os Estados Unidos, tanto políticas
como econômicas.
116. O conhecimento das
distorções e das influências de toda ordem a que se
encontra sujeita a opinião pública brasileira quanto à
interpretação da ação internacional dos demais
Estados, e com relação às ações da
política exterior do Brasil, recomendam adotar uma atitude de serenidade
e discrição diante de movimentos de opinião
pública, inclusive por vezes estimulados por terceiros Governos, e
evitar oscilações bruscas na execução da
política exterior, já que essas poderiam prejudicar a
credibilidade do Brasil junto a seus interlocutores na esfera internacional.
117. A visão estratégica da chamada
diplomacia moderna
argumenta que o fenômeno essencial na esfera internacional, após
o fim da Guerra Fria, é a expansão inevitável do processo
econômico de globalização, o fim dos conflitos
políticos e militares (exceto em algumas regiões marginais), a
hegemonia unipolar e incontestável dos Estados Unidos como
característica dessa fase histórica, e o gradual desaparecimento
dos Estados nacionais e das fronteiras o que levaria a irrelevância da
defesa e afirmação da soberania nacional. Os novos temas de
importância para a agenda diplomática
moderna
seriam os direitos humanos, o narcotráfico, o terrorismo e a
consolidação de uma ordem jurídica internacional que
removesse os obstáculos aos fluxos de bens e de capitais de forma a
garantir o funcionamento e a expansão da nova economia global,
benéfica, próspera e imparcial.
118. A igualdade soberana dos Estados, a não-intervenção
e a
autodeterminação passam a ser para a
diplomacia moderna
conceitos relativos e flexíveis na nova ordem mundial. Assim, para o
Brasil, a estratégia fundamental deveria ser procurar se apresentar
sempre como um país
normal,
cumpridor, voluntário e exemplar, das normas internacionais, o que o
qualificaria como ator responsável e interlocutor privilegiado junto
às Grandes Potências e à Hiperpotência e o
credenciaria a receber benefícios (econômicos) de parte das
mega-empresas multinacionais e do sistema financeiro internacional.
119. A estratégia
diplomática tem, tradicionalmente, duas vertentes principais, de acordo
com a prioridade que confere aos temas. A primeira enfatiza os temas
políticos e se subdivide em diplomacia mundial, ou multilateral, e
regional, subdividida essa por sua vez em hemisférica e sul-americana. A
segunda vertente da diplomacia considera que a influência política
de um Estado depende essencialmente de seu poder econômico. Assim, o
esforço de construção da capacidade econômica
brasileira é absolutamente prioritário, inclusive para a
diplomacia, e portanto esta deve enfatizar os temas econômicos nas
relações externas do país.
120. A estratégia diplomática justamente articula em um misto de
cooperação/ confrontação/ competição/
conciliação
a macro-estrutura interna de poder com as estruturas hegemônicas de poder
em nível mundial. Nessa tarefa, as estratégias
diplomáticas específicas a cada período histórico
se articulam sucessivamente com uma ou outra das diversas estratégias
que, ao se propor interpretar e orientar o processo de desenvolvimento
econômico e político do Brasil e a ação de
preservação de poder da macro-estrutura, prevalecem.
A DISPUTA ENTRE AS VISÕES ESTRATÉGICAS
121. Dentro da macroestrutura
hegemônica de poder no Brasil, que vem se gerando desde a Colônia,
constituída pelas inter-ligações entre grupos
econômicos, sociais, políticos, militares e da alta burocracia,
co-existem, como visto acima, distintas visões da realidade brasileira e
do mundo e diversas estratégias sobre a condução da
sociedade e do Estado.
122. Essas visões, ainda que se originem em determinados grupos,
são compartilhadas por segmentos de outros grupos.
Articulações políticas entre esses
subgrupos detêm em distintas ocasiões, por mais ou menos tempo, o
controle do centro da estrutura hegemônica de poder, em parte porque
nessas ocasiões a conjuntura nacional e internacional
justificam,
por assim dizer, sua visão do mundo e do Brasil e a estratégia
que preconizam.
123. Quando ocorre uma crise,
gerada por um grave descompasso naquele momento entre a estratégia
dominante e a conjuntura real, em geral a partir de causas externas, devido
à dependência e à vulnerabilidade crônica do Brasil
em relação à economia e à política
internacional, um outro grupo, que não se encontra no centro da
estrutura, desenvolve e divulga uma nova interpretação da
realidade, que por ser mais
convincente
passa a ser aceita gradualmente por setores importantes da macro-estrutura.
Essa aceitação permite ao novo grupo predominante articular
politicamente uma constelação de sub-grupos nos diversos
segmentos sociais e profissionais e assim assumir o controle do centro da
estrutura hegemônica de poder, por via legal ou pela força, em
aliança ativa ou com a tolerância de setores da periferia que
consegue co-optar para sua interpretação e as políticas
decorrentes. Essa nova interpretação da realidade, com a
finalidade de obter apoios políticos pode reunir, nem sempre de forma
coerente, elementos das diversas estratégias básicas.
124. Nos círculos mais
afastados do sistema social, na camada intermediária e na periferia da
macro-estrutura hegemônica de poder, existem grupos e segmentos sociais
onde igualmente se elaboram distintas visões da realidade,
interpretações conjunturais e correspondentes estratégias
de ação política. Essas visões podem ir do extremo
da apologia da subordinação incondicional à estrutura
hegemônica de poder, em uma posição de fatalismo diante da
força, passando pela opção de trabalhar
dentro
da estrutura para impulsionar políticas parciais, o que se denomina em
geral de pragmatismo, até a proposição de
estratégias de confrontação com a macro-estrutura
hegemônica de poder.
125. A visão fatalista
sugere que a melhor estratégia para a camada intermediária e os
grupos oprimidos da periferia é aceitar as enormes desigualdades sociais
pois a luta contra elas é inútil devido ao controle sobre toda a
sociedade que exerce a macro-estrutura hegemônica de poder e à sua
capacidade de retaliação. Assim, a ameaça a essa hegemonia
pode simplesmente agravar a repressão aos que a ela se opõem e
não se submetem.
126. A visão
pragmática considera que as disparidades sociais são, na
realidade, abominadas pela estrutura hegemônica de poder. Sua
sobrevivência nos tempos atuais decorreria tão somente da
ignorância sobre seus males para a sociedade com um todo, sobre os riscos
que trazem para o próprio bem-estar dos grupos que integram aquelas
estruturas, e de preconceitos psicológicos que cabe remover pelo
esclarecimento e persuasão. Por outro lado, a situação dos
segmentos mais desfavorecidos da periferia é de tal ordem que a
atenuação da pobreza e a defesa dos direitos humanos é
tarefa urgente e humanitária que precede qualquer luta pela reforma dos
mecanismos que causam a concentração de poder de toda ordem. Essa
parece ser a visão que inspira muitas das ONGs integradas por elementos
das camadas intermediárias da sociedade em sua estratégia de
trabalhar e cooperar com o Governo para atenuar as desigualdades e
violência sociais mas sem enfrentar a questão central da origem e
raiz das disparidades e da violência.
127. As estratégias de
confrontação partem da premissa de que a macro-estrutura
hegemônica de poder se articula de tal forma em sistemas
econômicos, políticos, militares e ideológicos e se
beneficia de tal forma dos mecanismos de concentração de poder
que somente a luta direta pela tomada do poder pode fazer com que tais
mecanismos possam vir a ser eventualmente desmontados e revertidos, passando a
desconcentrar poder. Essas estratégias de confrontação
podem vir a se articular em organizações com objetivos gerais ou
setoriais. Entre aquelas que tinham objetivos gerais podem-se classificar os
movimentos de guerrilha da década de 70 que visavam a tomada do poder
pela força e de forma geral. As organizações com objetivos
setoriais visam confrontar o poder pela ação política
vigorosa e alcançar objetivos parciais. Essa parece ser a natureza do
MST em sua luta pela reforma agrária, cuja estratégia se, por um
lado, visa invadir fazendas para forçar a desapropriação
de terras improdutivas e, portanto, atinge a questão, essencial para a
estrutura hegemônica de poder, da propriedade privada, por outro lado
leva à constituição de unidades de produção
privadas, integradas ao mercado capitalista de produção e
distribuição de produtos agrícolas.
128. Há pontos de
contato, de coincidência genérica, em momentos especiais do
processo, entre as visões geradas nos grupos da macro-estrutura
hegemônica e aquelas geradas nos grupos da camada intermediária e
da periferia, na medida em que os primeiros aceitam certas propostas para
atender a reclamos urgentes e críticos das camadas intermediárias
e periféricas e assim dissolver crises, ou
absorvem
certas propostas para melhor articular a estratégia de
manutenção de poder ou para obter apoio para políticas
específicas.
129. No centro da
macro-estrutura hegemônica de poder se encontram os instrumentos de
coerção legal e de persuasão do Estado, tais como a
distribuição de recursos oriundos da tributação e
do crédito oficial e a distribuição de cargos e honrarias,
com as parcelas de poder que permitem a seus ocupantes exercerem.
130. O grupo, dentro da estrutura hegemônica, que reúne
consenso
suficiente em torno de sua interpretação do Brasil e do mundo,
ao assumir o centro do poder, procura imediatamente articular-se com outros
grupos da estrutura hegemônica e cooptá-los ou
desarticulá-los através da co-optação de seus
ideólogos e dirigentes. Essa articulação é
essencial em primeiro lugar para assumir o controle inicial sobre os diversos
instrumentos de coerção e persuasão do Executivo, do
Legislativo e do Judiciário (e nos Estados da Federação)
onde se encontram representantes e partidários do grupo que controlava
anteriormente
o Poder. Em segundo lugar, para garantir o apoio ativo ou a tolerância
de segmentos sociais que compõem a macro-estrutura hegemônica de
poder, tais como os grandes proprietários rurais; os grandes
industriais; os grandes comerciantes; os proprietários dos grandes meios
de comunicação; os altos funcionários civis e militares; e
em especial dos ideólogos e dirigentes políticos desses segmentos.
131. O grupo central procura igualmente obter apoio, ou a tolerância, ou
co-optar grupos intermediários e da periferia, e quando
necessário até estimula o surgimento de grupos periféricos
compreensivos
para com suas políticas. Se essas articulações na
macro-estrutura e na sociedade em geral têm sucesso este lhe permite
assumir o papel de único representante efetivo e legítimo da
sociedade como um todo e argüir a inexistência de alternativas
viáveis à sua interpretação da realidade e
às suas políticas.
132. Os setores da estrutura hegemônica que não aderem ao
novo
grupo central são excluídos do sistema de recompensas materiais
e morais e passam a ser hostilizados ou ridicularizados aos olhos da sociedade
como um todo, através do discurso oficial, do discurso acadêmico e
do discurso da mídia, podendo eventualmente se tornar indivíduos
ou grupos
desclassificados
enquanto que os grupos intermediários e da periferia que não se
submetem são ativamente reprimidos.
133. A interpretação do grupo que está no centro da
estrutura
hegemônica se torna tanto mais preponderante e incontrastável
quanto mais consegue controlar os meios de comunicação,
obtém apoio ou tolerância na periferia do sistema, e mantém
o aval das estruturas hegemônicas de poder em nível mundial, ainda
que suas políticas venham apresentando resultados medíocres e
até negativos.
134. A articulação
entre a estrutura hegemônica de poder em nível nacional e as
estruturas hegemônicas em nível mundial é um fator central
para a análise da evolução da situação
interna da sociedade. Em primeiro lugar, devido à profunda
inserção do Brasil na economia mundial desde sua descoberta e, em
segundo lugar, porque aquelas estruturas internacionais dão apoio
ideológico, político e econômico ao grupo que está
no centro da estrutura hegemônica nacional, com maior ou menor
intensidade, dependendo da
utilidade
das políticas desse grupo para os objetivos de longo prazo daquelas
estruturas internacionais. Na medida em que o grupo no centro da estrutura
hegemônica nacional não desafie, não perturbe a
correlação de forças internacionais e seus objetivos
próprios e a elas se submeta, tanto mais entusiástico o aplauso e
maior o apoio daquelas estruturas, enquanto isto parecer a elas conveniente.
Quando isto cessa de ocorrer, as estruturas hegemônicas internacionais
passam a agir, de formas mais ou menos ostensivas dependendo do grau de
vulnerabilidade do país, para articular a substituição do
grupo no centro do poder nacional.
135. A novidade histórica extraordinária do momento atual que
vive a sociedade
brasileira consiste em que, pela via institucional, um grupo político
com origem na periferia e na camada intermediária do sistema assumiu o
controle de parte importante do centro legal-estatal da macro-estrutura
hegemônica de poder, em especial do Executivo, e se articulou com certos
setores da macro-estrutura. A disputa (surda) pelo controle do processo se
desenvolve entre os que defendem os objetivos políticos
históricos desse grupo da periferia de, fundamentalmente, promover a
desconcentração de poder, e os representantes dos grupos
tradicionais, que se originam na macro-estrutura hegemônica, e que
procuram preservar os mecanismos de concentração de poder
político e econômico, para tal utilizando os mecanismos de
cooptação ideológica de integrantes do grupo da periferia
e o controle efetivo que ainda exercem sobre partes da estrutura estatal. Nessa
disputa, cuja essência é ideológica, se confrontam
estratégias que foram descritas acima e tem papel predominante a
articulação de estruturas tecnocráticas, sem
vinculação com o processo político, na
formulação de políticas públicas.
[*]
Embaixador.
Versão preliminar, sujeita a revisão. 28 de agosto de 2004.
Este ensaio encontra-se em
http://resistir.info/
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