Comissão Nacional da Verdade
Só com pressão sobre o governo e o parlamento conheceremos a
verdade!
A ninguém interessa mais a criação de uma
Comissão Nacional da Verdade
, para apurar os crimes até hoje impunes da ditadura militar, do que ao
PCB
, às demais organizações e militantes que na
clandestinidade lutaram contra o arbítrio, aos familiares, amigos e
camaradas das vítimas.
No caso dos revolucionários, que ainda não arriamos a bandeira do
socialismo, a apuração interessa mais ainda, pois a
revelação da verdade e a punição dos criminosos
são fundamentais para que não voltem a acontecer prisões
ilegais, torturas e desaparecimentos. Nesse sentido, mesmo as
organizações populares mais recentes no Brasil, que não
têm vítimas a prantear, e os jovens que não viveram a
ditadura, devem participar desta batalha.
É bom lembrar que a ditadura escolheu suas vítimas entre os
comunistas, independente da forma de luta que adotavam. Sabiam os ditadores
agentes do imperialismo e das oligarquias que os comunistas
não lutavam apenas pelo restabelecimento das liberdades
democráticas, mas para que o advento destas criasse melhores
condições de luta para a superação do capitalismo.
No caso do
PCB
, a ditadura tentou destruí-lo como se fosse possível
ou pelo menos fragilizá-lo, antes de iniciar a
"transição democrática, lenta, segura e
gradual", por cima, através de um pacto de elites, para que mudasse
apenas a
forma
da ditadura de classe da burguesia e não o seu
conteúdo
. Entre 1974 e 1975, foram assassinados dezenas de militantes do
PCB
, pelos quais até hoje choramos. Seus corpos continuam desaparecidos,
inclusive de quase todos os membros do Comitê Central que não
haviam ido para o exílio, ficando aqui para dirigir o Partido na
clandestinidade.
[1]
É claro que estes assassinatos, somados a outros fatores
endógenos e exógenos, contribuíram para o enfraquecimento
político e a degeneração ideológica do PCB nos anos
1980, resultando na ascensão de uma direção nacional
majoritariamente reformista, em geral dos que vieram do exílio, onde
todos
perderam os vínculos com as massas e
muitos
aderiram às idéias "eurocomunistas" e
"liquidacionistas".
Mas uma
Comissão Nacional da Verdade
interessa, em primeiro lugar, ao conjunto do povo brasileiro. É um
pré-requisito para a consolidação das liberdades
democráticas em nosso país.
Por estas imensas razões, o
PCB
lamenta profundamente que o Presidente Lula reincida em suas constantes
conciliações com a direita, exatamente nesta matéria.
Bastaram alguns dias de pressão da mídia hegemônica e de
alguns comandos militares para ele, em 13 de janeiro de 2010, reeditar o
Decreto que assinara em 21 de dezembro de 2009, com base nas conclusões
da Conferência Nacional de Direitos Humanos, com as quais se comprometera
publicamente.
Um dos riscos é que o Presidente tente "empurrar com a
barriga", se possível para depois de seu mandato, como
poderá fazer com Cesare Battisti, que continua preso no Brasil. Outro
risco é a descaracterização da apuração dos
fatos pela futura Comissão da Verdade, caso ela seja criada. No texto
original, declarava-se que a Comissão seria encarregada de examinar as
violações de direitos humanos
no contexto da repressão política
do período da ditadura. A retirada da expressão sublinhada, na
reedição do decreto, certamente gerará pressões
para se tratar a questão como se tivesse havido no Brasil uma guerra
simétrica, entre duas "forças armadas" e como se ambas
tivessem torturado e desaparecido com adversários.
O recuo de Lula não é apenas de natureza semântica, como
sustentam seus defensores no campo da esquerda. Há até alguns
destes inclusive vítimas da ditadura que, com o objetivo de
fazer Lula parecer de esquerda, manipulam o recuo do Presidente, disseminando a
fantástica versão de que a direita tentou no fim do ano dar um
golpe militar para derrubar Lula, como se isso fosse possível prosperar
no Brasil de hoje e como se o imperialismo e as oligarquias (que são as
únicas forças capazes de perpretar golpes da espécie)
estivessem insatisfeitos com os rumos do governo. Logo Lula, que acaba de ser
agraciado, no Fórum Econômico Mundial, com o inédito
título de
"Estadista Global"
, conferido pelo "comitê central" do imperialismo, que quer
mostrar ao mundo a "esquerda" de que gosta e necessita para manter a
ordem capitalista.
Só não explicaram quais os poderosos setores insatisfeitos que
animavam o golpe para derrubar Lula, se os banqueiros, os barões do
agronegócio, os empreiteiros, os heróis usineiros, a FIESP!
Como fazem com a política econômica herdada de FHC - culpando
Henrique Meirelles de mantê-la, para preservar Lula -, esses setores
tentam passar a impressão de que o único responsável pelo
recuo é o Ministro da Defesa. Alguns chegam a pedir a cabeça do
arrogante Nelson Jobim (ex-ministro da Justiça de FHC), como se ele
não fosse funcional a Lula, que o nomeou não para garantir a
"tranquilidade da caserna" contra golpes fora de moda, mas para unir
as Forças Armadas em torno do grande consenso hegemônico da
burguesia brasileira, ou seja, para respaldar militarmente a
inserção competitiva do Brasil no sistema capitalista mundial,
como parte do imperialismo.
Lula é um pragmático. Não pensa duas vezes se tiver que
escolher entre apurar o passado e garantir seu futuro. O seu governo
internamente não está "em disputa". É uma
sofisticada engenharia política da ordem. Como todo político
burguês, ele nomeia conservadores para a defesa e a área
econômica e progressistas para as áreas sociais e de direitos
humanos, administrando eventuais conflitos com a experiência de
sindicalista de resultados, ainda que a contradição seja
complicada, como esta em que a mão direita do Presidente tranca os
arquivos da ditadura e a mão esquerda acena com uma Comissão de
Verdade.
O patético Jobim, metido a valentão, que adora se fantasiar de
"general da banda" (como diz o jornalista Laerte Braga), está
cada vez mais firme e forte no governo Lula. Numa cena ridícula,
apareceu fardado no Haiti, onde ficou apenas os minutos necessários para
tirar umas fotos, sem sair do aeroporto, para fingir que o Brasil não
havia levado uma "bola nas costas" dos EUA, sócios
majoritários do imperialismo, que lá haviam botado mais do que o
dobro de tropas que o Brasil absurdamente dirige no Haiti, a pedido de Bush a
Lula, em 2004, logo depois que um comando militar americano seqüestrou o
presidente eleito do país. Na ocasião, Lula primeiro mandou a
seleção brasileira de futebol e depois as tropas, de olho grande
numa cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, parte da
estratégia do Brasil como potência capitalista.
O "general" Jobim é o grande articulador da corrida
armamentista brasileira, suporte indispensável tanto para o Brasil ser
aceito no seleto clubes das nações imperialistas como para
hegemonizar países mais fracos, sobretudo na América Latina,
ajudando a abrir mercado para suas grandes empresas exportadoras, empreiteiras
e mineradoras, generosamente alavancadas pelo BNDES.
A política do Ministério da Defesa, obviamente aprovada pelo
Presidente da República, é uma boa pista para decifrarmos alguns
objetivos estratégicos do Estado burguês brasileiro. É uma
política militar muito mais ofensiva do que defensiva, o que revela a
intenção de se projetar no campo imperialista e não de
resistir a ele.
O "general" acaba de chegar de Israel, onde esteve em missão
oficial de cinco dias, um pouco mais do que ficou no Haiti! Foi às
compras, com o talão de cheques assinado pelo Presidente, exatamente num
país cuja tecnologia militar é voltada para a agressão a
povos vizinhos e a defesa contra a insurgência popular, sobretudo
palestina. Israel é a cabeça de ponte do imperialismo
norte-americano no Oriente Médio. No cardápio, aviões
não tripulados, "caveirões", armas
anti-distúrbio e anti "terrorismo", tudo a pretexto de
segurança nas Olimpíadas e na Copa do Mundo.
É significativo que o secretário de Relações
Internacionais do PT que lidera um campo considerado à esquerda
no seu Partido tenha vindo a público criticar Jobim, e não
a Lula, pela compra de material bélico israelense, ou seja, mais um caso
de crítica correta dirigida à pessoa errada, numa velha
tática diversionista, para preservar o "chefe". É como
as manifestações contra a política econômica que
fazem na frente do Banco Central e não do Palácio do Planalto!
Há dois meses, começaram a chegar, por Porto Alegre, 240 tanques
alemães "Leopardo I", comprados por Lula e Jobim, a 900 mil
reais [335 mil] a unidade. Os tanques não foram para a
Amazônia nos defender da "ameaça imperialista".
Estão todos sendo localizados no oeste do Rio Grande do Sul, Santa
Catarina e Paraná, exatamente nas fronteiras do Brasil com países
irmãos. Aliás, ex-irmãos, porque o decreto nº 6.592,
de 2 de outubro de 2008 (assinado exatamente pela dupla Lula e Jobim), feito
sob medida diante da ofensiva popular na América do Sul, estabelece
parâmetros subjetivos para definir o que é "agressão
estrangeira", incluindo "ameaças a nossos interesses
nacionais" em países fronteiriços. Este decreto já
foi usado em uma delas, no ano passado, quando tropas brasileiras ocuparam toda
a nossa fronteira com o Paraguai, numa operação simbolicamente
denominada
"Operação Fronteira Sul Presença e
Dissuasão"
, exatamente no momento em que trabalhadores sem-terra paraguaios vinham
ocupando latifúndios transnacionais produtores de soja de propriedade de
brasileiros (os chamados "brasiguaios"). E ainda não havia os
novos 240 tanques alemães!
Ainda em 2008, Lula e Jobim assinaram acordos militares com a Colômbia de
Uribe, inclusive, textualmente, para a localização de
"grupos armados" (leiam-se FARCs), utilizando-se do aparato
tecnológico do SIVAM (Sistema de Vigilância da Amazônia). O
Brasil é um fornecedor de armas para o governo colombiano, além
dos super-tucanos, aviões militares de fabricação
brasileira usados no criminoso ataque ao acampamento de Raul Reyes, no Equador.
Este "mercado" explica a cumplicidade e o silêncio do governo
brasileiro frente à instalação de sete bases militares dos
EUA na Colômbia. Não é à toa que, há
três meses, Uribe e Lula se encontraram na FIESP, em São Paulo,
numa agenda reservada, com a presença de empresários dos dois
países, exatamente após o Presidente Chávez ter suspendido
o comércio bilateral com a Colômbia, em função das
bases imperialistas, que Fidel Castro bem definiu como
"sete punhais no coração da América Latina".
Diante destas evidências, fica claro que Lula não vai mudar
novamente a redação do decreto que cria a Comissão da
Verdade. Se mudar de novo, corre o risco de piorar. Fica claro também
que não criará por decreto a Comissão da Verdade, o que a
Constituição lhe asseguraria. Lula criou uma comissão para
apresentar o projeto de uma comissão a um Congresso Nacional
majoritariamente conservador, diante do qual lavou as mãos; se a
Comissão não sair, a culpa não terá sido dele!
Por sinal, nesta semana o Presidente fez um segundo recuo no Programa Nacional
de Direitos Humanos, desta vez com a questão do aborto. Qual será
o próximo? Ainda mais em ano eleitoral, em que ele buscará votos
para sua candidata no centro e na direita, no pressuposto de que já os
tem na esquerda.
Neste quadro, na avaliação da direção nacional do
PCB
, não tem sentido para os setores democráticos efetivamente
interessados na apuração da verdade lutar pela
rejeição do decreto, mesmo na forma como está hoje
redigido, e muito menos ter a ilusão de que se pode melhorá-lo. A
redação atual do decreto é reflexo da
correlação de forças determinada pela opção
de Lula pela governabilidade institucional burguesa. E, cá entre
nós, o fato de ter saído o decreto foi uma vitória dos
movimentos de defesa dos direitos humanos, o que mostra que a disputa se
dá na sociedade e não dentro do governo.
Assim sendo, não temos outra opção a não ser apoiar
o decreto, mesmo com a redação mitigada que assumiu.
Fizemos aqui um breve histórico da política externa brasileira e
do comportamento do governo e de sua base de apoio dita de esquerda, para
alertar a todos os que seguiremos na luta pela apuração da
verdade, para que não sejamos manipulados como massa de manobra pelo
diversionismo, o oportunismo e o eleitoralismo.
A única maneira de se tentar ainda viabilizar a criação no
Brasil de uma
Comissão da Verdade
, que mereça este nome nos moldes das que já foram criadas
na Argentina, no Chile, no Uruguai e em outros países que viveram
ditaduras , é promover uma grande mobilização
democrática para pressionar o governo e o parlamento no sentido de
implantá-la com celeridade. Fora disso, é jogar para a
platéia, é campanha eleitoral, é tergiversar, fingindo que
os Jobins, os Lobões, os Meireles, os Stefhanes não foram
nomeados, mantidos e prestigiados por Lula.
Na opinião do PCB, urge a articulação, por iniciativa
legítima da OAB e das organizações voltadas para os
direitos humanos, de uma ampla petição coletiva assinada
por um expressivo conjunto de organizações e personalidades,
nacionais e estrangeiras - dirigida ao Presidente da República e ao
Congresso Nacional, exigindo a criação da
Comissão Nacional da Verdade
e a urgente abertura dos arquivos da ditadura.
Rio de Janeiro, 29 de janeiro de 2010
[*]
Secretário Geral do PCB (Partido Comunista Brasileiro)
(1) Exigimos a verdade sobre todos os desaparecidos, além dos camaradas
que aqui homenageamos:
Célio Guedes
David Capistrano
Elson Costa
Hiram Pereira de Lima
Itair José Veloso
Jayme Miranda de Amorim
João Massena de Melo
José Montenegro de Lima
Luiz Maranhão Filho
Nestor Veras
Orlando Bonfim
Walter Ribeiro
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