Profundidade da crise coloca desafios cruciais à classe trabalhadora
por Ricardo Antunes
[*]
entrevistado por Valéria Nader e Gabriel Brito
[**]
Chegamos quase à metade do ano e já inundam a grande imprensa
notícias dando conta de uma incipiente saída da crise, tendo em
vista a melhora da balança comercial, uma discreta retomada no
comércio retalhista e na produção industrial e, por que
não dizer, a retomada dos índices Bovespa e assemelhados. Ao
mesmo tempo, prognósticos de desemprego vêm se concretizando a
passos largos, e já podem ser vistas revoltas em diversos países,
não somente periféricos, mas também nos centrais, com
trabalhadores se manifestando e empresas fechando, sem que as sonhadas
respostas para a superação da crise apareçam.
Diante de tal conjuntura, o
Correio da Cidadania
entrevistou o sociólogo Ricardo Antunes, para quem o quadro que se
avizinha é devastador, uma vez que não há
discussões em torno de uma mudança profunda de nosso modo de
vida, somente medidas que mais interessam ao capital que ao trabalhador - o
que, em algum momento, chamará novamente pela intervenção
do Estado.
Quanto às estimativas de desemprego, Antunes diz que será
superada a expectativa de 50 milhões de postos de trabalho perdidos
feita pela OIT, até porque o órgão se baseia somente em
dados oficiais. Para ele, o debate central passa pela redução da
jornada de trabalho, sem perda de direitos, que resultaria na
inserção de um enorme contingente de excluídos, desde que
dispensados os imperativos do mundo do capital.
Correio da Cidadania: Pensando na economia primeiramente, perto de já
completarmos o primeiro semestre de um ano que se anunciou sombrio a
partir de uma queda de 3,6% do PIB no último trimestre de 2008
relativamente ao 3º, com queda de quase 10% dos investimentos e de 7,4 %
na indústria -, começam a ser ouvidas vozes de analistas e
estudiosos prevendo um início, ainda que incipiente, de saída da
crise, especialmente no Brasil. Nesse sentido, essa melhora muito discreta da
balança comercial, do comércio retalhista e da
produção industrial no primeiro trimestre tem algum significado
em sua visão?
Ricardo Antunes: Não vou fazer uma análise detalhada dos
movimentos da economia, pois não sou economista e, portanto, farei uma
consideração de âmbito mais geral. Penso que, dada a
amplitude da crise estrutural que vivemos e o fato de nossa economia ser muito
interligada, em função da mundialização do capital,
esses condicionantes anteriores não permitem uma análise muito
otimista do mercado brasileiro.
Claro que medidas como a redução do Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI) de vários setores, incentivo à
produção aqui e ali, à indústria
automobilística, à construção civil etc. têm
um impacto imediato no sentido de se contrapor a uma tendência de crise
mais acentuada. No entanto, a questão que se coloca é o alcance
de tais medidas, uma vez que vemos o quadro norte-americano, europeu e
asiático (Japão) em situação muito grave. Isso me
leva à seguinte consideração: o epicentro da crise pode se
alterar, mas estamos vivendo um longo período depressivo, de
decréscimo das taxas de lucro. As opiniões "otimistas"
me parecem expressão de uma expectativa não respaldada numa
análise global mais forte, visto que imaginam isolar alguns
países e crer que possam caminhar à margem da crise, que é
mais estrutural e global.
É natural que os países tenham resultados diferenciados, com
maior ou menor nível de desemprego. Os dados do trabalho mostram isso.
Mas, mesmo quando há uma diminuição no ritmo do
desemprego, na seqüência se reconfigura um quadro no mínimo
problemático. E a equação da crise, da forma como vem
sendo feita nos países centrais de
"socialização das perdas", uma expressão que
já nos marcou na 1ª. República , é a de
repassar os prejuízos das empresas e do mercado ao Estado e dele para o
conjunto da população, que deverá pagar uma conta pela
qual não foi responsável. Isso traz um endividamento
público de proporções colossais e alguém
terá de pagar essa conta em algum momento.
Sendo assim, não posso corroborar essas análises otimistas. Elas
se assemelham àquelas que, há pouco mais de seis meses
atrás, diziam que estaríamos imunes à crise, idéia
falaciosa e, no limite, equivocada.
CC: O Brasil realmente começou o ano com números alarmantes de
crescimento do desemprego. No entanto, nos últimos meses, houve uma
mudança de movimento e, apesar de a taxa de desemprego ser ainda
crescente, diminuiu o ritmo de perda de postos de trabalho. Pela sua
análise, podemos inferir que essa queda de ritmo não chega a ser
significativa de alguma virada?
RA: Não creio em virada, mas isso responde a alguns movimentos feitos. O
governo, por exemplo, reduziu significativamente o IPI para a indústria
automobilística, para a construção civil e outros setores,
o que tem incidência nos níveis de emprego, pois o Brasil possui
um mercado consumidor interno forte, que em geral sempre foi menosprezado, pelo
fato de o pólo central de nossa economia ser prioritariamente voltado ao
mercado externo.
À medida que esse mercado externo dá sinais de
retração e há incentivos ao mercado interno, pela
redução de alíquotas, há uma
aceleração da possibilidade de consumo por parte de parcelas da
população que costumam ficar à margem do mercado
consumidor, criando um bolsão de crescimento, mas que leva à
seguinte questão: até quando essa política de
isenção de impostos compensa o não-recolhimento do
conjunto necessário de impostos, imprescindíveis para o
custeamento de outras áreas, como saúde, previdência e
educação?
É evidente que, diminuindo o imposto e aumentando momentaneamente o
consumo, será possível dizer, por meio das contas, se vale a pena
ou não a redução dos impostos em relação ao
crescimento da produção. Mas, a médio e longo prazo, esta
não é uma alternativa duradoura e efetiva à crise,
até porque ela tem outros elementos estruturais mais significativos,
dados pelos seus condicionantes externos.
A meu ver, o problema ainda que o Brasil não esteja entre os
países mais atingidos é imaginar que já
saímos do pior sem observar o cenário internacional e como a
crise continua forte nos países que estão no
coração do sistema. Nós, em verdade, estamos no centro de
uma crise estrutural do sistema do capital, que inicialmente devastou o chamado
3º. Mundo, depois arrasou o Leste Europeu e agora está no
coração dos países capitalistas centrais. E essa crise,
além de estar operando o que venho chamando como uma nova era de
demolição do trabalho, é profundamente destrutiva em
relação à natureza, colocando em risco o próprio
futuro da humanidade. Neste sentido, ela é estrutural e devastadora.
CC: Nesse sentido, PAC, novo pacote habitacional, incentivo ao setor
automobilístico, as medidas mais importantes do governo para combater a
crise, tão ufanisticamente tratadas pelos seus interlocutores,
têm, efetivamente, um impacto limitado na economia e no mercado de
trabalho.
RA: Sim, um efeito conjuntural, na medida em que reduzem as taxas de
desemprego, que seriam ainda maiores. Mas as informações dos EUA,
da Europa e Japão, mostrando taxas mais altas de desemprego, empurram o
cenário para um quadro ainda mais crítico.
As medidas podem diminuir um pouco o nível de desocupação,
mas agora vimos, nos dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), uma alta taxa de desemprego nas principais
regiões metropolitanas, inclusive incidindo sobre jovens com relativa
qualificação. Isso parece mostrar o caráter
momentâneo e conjuntural das medidas do governo, até porque todo o
modelo brasileiro, inclusive no governo Lula, é voltado à
dependência do mercado externo, através das commodities e da
exportação.
Quando há uma retração forte no mercado externo, afeta
nossa produção. A redução de IPI incide, portanto,
positivamente no mercado interno, mas não nas commodities e no mercado
externo.
CC: E quanto às medidas voltadas ao mercado de trabalho mais
especificamente, qual é a sua opinião quanto à postura do
governo frente ao discurso recorrente do patronato na defesa da
flexibilização dos direitos trabalhistas para enfrentar a crise?
Não deveria e poderia este mesmo governo, em direção
oposta à flexibilização, exigir mais contrapartidas das
empresas beneficiadas com ajuda pública?
RA: Claro. No primeiro momento, a redução do IPI já
não foi sequer condicionada à não-demissão, tanto
que algumas empresas obtiveram o benefício e demitiram, o que mostra a
timidez das medidas, que atendem muito mais aos interesses do capital do que
aos do trabalho. A redução momentânea do IPI deveria, no
mínimo, ser rigorosamente condicionada à manutenção
do emprego e à contratação de novos setores. E há
outro ponto fundamental, que é a necessidade de tributar e
não desonerar os capitais.
Outra questão é que o governo não atendeu a nenhuma
bandeira dos trabalhadores e do sindicalismo de classe, como, por exemplo,
reduzir a jornada sem diminuir salários e direitos. O governo é
tímido com relação a tais medidas, pois sabe que elas
não interessam ao grande capital.
Como se trata de um governo de conciliação, que garante os
interesses do grande capital, do capital financeiro, do grande capital
produtivo, os maiores beneficiários da política econômica
do governo Lula, uma medida como essa a redução efetiva da
jornada de trabalho sem perdas de direitos e de salário - poderia ter
efeitos positivos, pois aumentaria o ingresso da força de trabalho
sobrante no mercado de trabalho, dado nosso alto nível de desemprego. No
entanto, trata-se de uma providência que, em alguma medida, fere os
interesses do grande capital; por isso ela sequer é seriamente cogitada
pelo governo.
CC: O professor de Economia da Unicamp, e atual diretor do IPEA, Marcio
Pochmann defendeu uma jornada semanal de trabalho de 12 horas em um curso sobre
a crise mundial que está sendo promovido, entre outros, pelo jornal
Brasil de Fato apesar do reconhecimento de que não há hoje
força política para se alcançar esta bandeira. O que
você pensa disso?
RA: Acho que ele tem razão. Com a redução de jornada e as
pessoas trabalhando algumas horas, em alguns dias da semana, a
produção voltada ao consumo da humanidade estaria garantida. Mas
somos uma sociedade concebida desde seu nascedouro como uma sociedade do
trabalho, em que o papel da classe trabalhadora é criar mais valor
apropriado pelo mercado e grandes empresas capitalistas. Essas, se pudessem,
prolongariam a jornada e/ou aumentariam, como fazem, a intensidade e a
exploração do trabalho através do conhecimento
técnico-científico-informacional dentro da produção
de modo que, intensificando o tempo de trabalho e aumentando a
maquinaria técnico-científica, o capital se remuneraria muito
mais, obtendo muito mais lucro e mais-valia.
Mas Marx já nos alertava de que uma proposta significativa para
redução de jornada não é do interesse do grande
capital. Há cerca de uma década, na França, com muito mais
tradição de lutas operárias e conflito social, houve uma
proposta de uma redução muito moderada da jornada e, ao longo de
meia década depois, o capital francês impediu que esse processo
resultasse em algo positivo para a classe trabalhadora. Assim, revela-se um
pouco da prática do empresariado. Portanto, reduzir substantivamente a
jornada de trabalho é um embate profundo entre as forças sociais
do trabalho e os interesses dominantes do capital em escala global. Reduzir a
jornada de trabalho, tendo como base o tempo disponível da
população trabalhadora, de modo que se preservasse o consumo
necessário da humanidade, é fundamental, mas fere os interesses
do sistema de capital, fundados numa sociedade (da exploração) do
trabalho.
O que quero dizer é que reduzir a jornada sem reduzir direitos é
um embate político fundamental do trabalho contra o capital, desde os
primórdios da Revolução Industrial. Com o padrão
técnico-científico que temos, se os interesses dominantes
não fossem os do capital, se os imperativos não fossem os do
capital, poderíamos ter uma jornada de trabalho muito menor, com menos
tempo e dias de trabalho, e tendo a população trabalhadora
vivendo com mais dignidade e aumentando seu tempo de vida fora do trabalho. Mas
para tanto precisamos caminhar para outro modo de vida e de
produção, para além do capital. Por isso se trata, antes
de mais nada, de uma luta social e política de grande envergadura.
CC: Pensando em termos mundiais, acredita que vá se confirmar a
projeção da OIT de aumento de 50 milhões no número
de desempregados em 2009?
RA: Será muito mais do que isso. A OIT opera com dados oficiais.
É difícil fazer a captação de dados
não-oficiais. Por exemplo: se a China perdeu em poucos meses 26
milhões de trabalhadores urbanos que migraram do campo em busca de
trabalho nas cidades, só contabilizando o desemprego real da China, da
Índia, do resto da Ásia, África, América Latina, e
mesmos os países centrais, teremos taxas de desemprego maiores do que as
previstas pela OIT, que já são explosivas, pois 50 milhões
de seres humanos desempregados só em 2009 já configuram uma taxa
explosiva.
Mas, com os elementos que colhemos dos EUA, Europa e Japão, se
incluídos nesse cenário avassalador os demais continentes,
teremos um desemprego real ainda maior.
Sabemos que o desemprego oculto freqüentemente não é
apreendido pelos dados oficiais, aquele sujeito que trabalha só algumas
horas por semana não consta como desempregado, assim como o sujeito que
já não procura emprego há mais tempo também deixa
de ser contabilizado.
Estive duas vezes em Portugal recentemente, em novembro e fevereiro. A
situação que se pode constatar é de que os jornais
não ficavam um dia sem estampar em suas manchetes notícias de
inúmeras empresas que fechavam. De todas as áreas,
farmacêutica, turística, bancária etc.
CC: Avaliando as saídas para a atual crise, que além de
econômica tem uma forte e reconhecida vertente ambiental, é fato
que o planeta terra não vai conseguir atender a toda a humanidade a se
prosseguir a lógica atual do capital. Estamos, assim, metidos em um
buraco de proporções razoáveis. Ainda que não
esteja no horizonte próximo o fim do capitalismo, configura-se uma crise
do modo de produção capitalista?
RA: Claro. Se a economia continua em retração e crise, ela
desemprega. Ao manter o desemprego, aumentam as mazelas e a barbárie, em
amplitude global. Vivemos uma situação desesperadora para muitos
milhões de trabalhadores e trabalhadoras, com bolsões cada vez
maiores de "supérfluos", "descartáveis", para
os quais não há qualquer programa efetivamente alternativo de
saúde, previdência, remuneração social etc.
São os bolsões que vivenciam as mais brutais precariedades.
Como disse acima, estamos numa longa crise, cujo epicentro se altera. Por
exemplo: os EUA estavam em crise profunda nos anos 70, recuperaram-se no final
dos anos 80 e nos 90, depois entraram em novo desabamento; ou o Japão,
no auge nos anos 70, época do milagre japonês, até os anos
80, e que num dado momento entrou num quadro crítico que se
mantém até agora. Portanto, o epicentro da crise se alterna, mas
suas conseqüências são profundas para a classe trabalhadora.
A China, por exemplo, apresentou níveis altíssimos de
crescimento, chegando a 12% ao ano, mas hoje vive uma retração
também fortíssima. E imagine o que é uma
retração num país como a China, de quase 1,5 mil
milhões de habitantes e quase mil milhões de
População Economicamente Ativa. Imagine cada ponto percentual a
menos de crescimento, em quantos milhões de desempregados isso resulta.
E o trabalhador chinês que foi para a cidade, nesse salto capitalista da
década de 90, não tem como retornar ao campo, pois lá
não há alternativas de trabalho. E ele já viveu uma
socialização no mundo urbano que faz a volta ao campo deixar de
se colocar como possibilidade.
Se a economia se mantém em depressão, então, o desemprego
aumenta; se, em contrapartida, dá sinais de crescimento, teremos a
destruição da natureza, aumento da poluição
ambiental, degelo acentuado, uma confluência de destruições
trazendo riscos profundos à humanidade.
Assim, veja a tragédia em que nos encontramos: se aumentar o desemprego,
a barbárie social se torna ainda mais brutal; se retomarmos o ritmo de
crescimento, teríamos aumento de doenças,
contaminações e demais conseqüências, como já
vemos em grandes cidades do mundo, com o agravamento da poluição
cada vez mais insuportável. "Se correr o bicho pega, se parar o
bicho come". É a tragédia que vivemos.
CC: Qual a alternativa que se apresenta? Há como começar a
buscá-la pela perspectiva neokeynesiana tão em voga nessa crise,
a partir de reformas do Estado dentro do capitalismo, com maior
regulamentação do mercado?
RA: Se olharmos o século XX veremos que o keynesianismo e o
neokeynesianismo foram fagocitados pelo sistema do capital. De 1945 a 1968,
apogeu do sistema keynesiano, do
welfare state,
quando parecia no final dos anos 60 que o Estado havia controlado o capital,
vimos o inverso: o capital engoliu e desestruturou o Estado a tal ponto que
criou o Estado neoliberal, que nada mais é que um Estado forte para os
capitais e completamente destroçado no que diz respeito às suas
atividades públicas, coletivas e sociais. O que é público
foi destroçado e um poderoso Estado todo privatizado foi fortalecido.
Foi o que vigorou desde a eleição da Margareth Thatcher, que
tragicamente, poucos dias atrás, completou 30 anos da vitória
desta verdadeira hecatombe social, com a subseqüente expansão do
neoliberalismo para praticamente a totalidade dos países do continente,
salvo poucas exceções.
E há outra experiência que deve ser lembrada, a soviética.
Fruto de uma revolução socialista e popular em 1917, ela
também, em sua processualidade complexa e contraditória que aqui
não podemos explicar, fortaleceu e hipertrofiou o Estado ao limite.
Podemos dizer que lá não houve a constituição do
sistema socialista, mas um fortíssimo processo de
estatização da economia e regulação, e mesmo
eliminação, em vários aspectos, do capitalismo. E o que
aconteceu? Em 1989, o sistema de capital, que se manteve inalterado (conforme a
indicação de Mészáros), acabou destruindo esse
Estado todo poderoso soviético, o chamado "bloco socialista".
Esse histórico nos faz crer que a idéia de fortalecer o Estado
para superar a crise é um misto de farsa e também de
tragédia.
O desafio de hoje é de outra amplitude. A crise é sistêmica
e estrutural porque coloca em xeque, primeiro, a sobrevivência da
humanidade, já que sua força de trabalho é
destruída em quantidades inimagináveis nunca houve tanta
conversão de milhões de homens e mulheres, que dependem do
trabalho para sobreviver, ao desemprego. Não que adorem trabalhar, mas
sem isso eles não vivem, não se reproduzem em sociedade. Atingida
a casa das centenas de milhões por essa parcela que não encontra
trabalho, a destruição sócio-humana é brutal.
O processo de destruição da natureza também chega a
proporções inimagináveis. Não podemos mais dizer
que a destruição ambiental é um risco para o futuro da
humanidade, pois o é para o presente. Se a humanidade vem sendo
destroçada diuturnamente, é um desafio seu repor a questão
da construção de um novo modo de produção e de vida
que, em primeiro lugar, resgate o sentido estruturante e fundamental do
trabalho como criador de bens materiais, culturais e simbólicos
totalmente úteis e necessários para a humanidade. Em segundo
lugar, é preciso um sistema de metabolismo, para usar expressão
de Marx, entre a humanidade, que expresse a recriação de ambos,
trabalho e natureza, não a destruição de ambos. Isso o
sistema de capital, com seus imperativos e constrangimentos, impede que se
realize.
Portanto, o desafio central do início do século XXI é a
superação do sistema do capital e a retomada do projeto
socialista. O que coloca outra questão vital: as saídas da crise,
para um lado ou outro, dependerão da temperatura das lutas sociais em
escala global, dependerão do patamar da luta entre as forças
sociais do trabalho, de um lado, e as forças destrutivas do capital, de
outro. No passado se dizia: esse é o busilis da questão!
CC: De que tipo de socialismo estamos falando para o século XXI, a seu
ver?
RA: Claro que não pode ser a repetição do socialismo
experimentado no século XX. Assim como fracassou o sistema keynesiano,
como falamos anteriormente, é evidente que a experiência russa, a
chinesa, para ficar nas mais importantes, também fracassaram.
Sobre a russa não paira mais nenhuma dúvida, uma vez que a
ex-URSS já se reconverteu ao império do capitalismo à
força; e a tragédia da China é de tal amplitude que hoje
há milhões de desempregados, com milhares de levantes ocorrendo a
cada fechamento de fábrica. Tanto é assim que a China vem sendo
um laboratório de lutas sociais, enfrentamentos e tensões
fundamentais, o que não pode ser atribuído à
Revolução de 49, pelo contrário. Parece evidente que a
China atual não tem mais nenhum vínculo forte com a sua
Revolução original. Basta dizer que há três anos o
PC reconheceu em seu estatuto o direito de a burguesia se filiar ao partido,
uma completa heresia para qualquer variante do marxismo! E mais: a camada de
novos milionários nascida na China da última década criou
uma burguesia milionária que não permite falar seriamente em
nenhum tipo de socialismo chinês.
Resolver a situação dizendo que lá há
"socialismo de mercado" é desconhecer a
formulação decisiva de Marx, que poderia ser sintetizada assim:
"onde há mercado capitalista, não sobrevive o socialismo. E
onde há socialismo efetivamente construído, não pode haver
mercado capitalista". Sendo assim, a equação do
"socialismo de mercado" se mostrou falaciosa. Pode ter hoje uma
justificativa ideológica do governo chinês, mas as
condições de exploração do trabalho na China
inspiram muitos dos próprios países capitalistas...
CC: Nesse sentido, como se coloca a perspectiva socialista, qual seja, como
avançar rumo ao socialismo? Um projeto socialista não poderia, ou
deveria, começar por pequenas reformas, como, por exemplo, a luta por
uma jornada menor?
RA: É claro que esse é um processo mais complicado. Nós
sabemos como o socialismo no século XX não deu certo. Assim como
o sistema keynesiano fracassou em regular o capital, o sistema soviético
fracassou em destruí-lo, tendo ocorrido o contrário. Essas
são, portanto, experiências que devem passar por um profundo crivo
analítico.
A redução da jornada de trabalho não é uma bandeira
pequena, pois mudá-la é tocar no ponto fundamental de Marx: o
tempo. O capital converte o tempo no tempo do capital. Deixar o controle do
tempo nas mãos da humanidade ou do capital não é uma
questão pequena, não é uma medida reformista singela.
Mas o interessante na crise é que ela fez virar pó a idéia
de que o capitalismo é eterno, na qual tanto se havia acreditado. Eis o
primeiro ponto importante a ser mostrado a todos. Usando uma frase genial do
Marx, tudo que é sólido se liquefaz. Ou seja, o capitalismo vive
um processo de derretimento. Quantos milhões de milhões de
dólares viraram pó? Citybank e todos os seus afiliados tiveram
desvalorização monumental nas transações nos EUA; a
GM e a Chrysler estão à beira da falência. Ou seja, o
capitalismo conseguiu, com suas próprias contradições,
estabelecer uma crise muito profunda.
CC: A classe trabalhadora tem como costurar um projeto nesse sentido hoje?
RA: Outro ponto nesse sentido, de tudo que é sólido se
liquefazer, é que as lutas dependem do nível de
confrontação social, do patamar das lutas sociais entre as
classes. É isso que definirá para qual caminho vai uma reforma.
Ninguém disse que o capitalismo vai acabar. Podem-se prolongar por
decênios crises que vão sendo empurradas com a barriga, aumentando
a socialização das perdas, de modo que o mundo do trabalho pague
pelas perdas do capital. Essa é a alternativa do capital. Depois, ele
faz do Estado um pêndulo. Ora um Estado mais intervencionista, ora um
Estado não intervencionista.
Que sistema e modo de vida queremos? Isso nos obriga a discutir o
princípio do trabalho, se ele se estrutura no capital ou na humanidade.
Se for na humanidade, deve desestruturar o capital. Também devemos
discutir que relação metabólica queremos. É um
completo equívoco no meu entender imaginar que podemos ter uma vida
transformada sob o comando da propriedade privada. Assim, coloquemos novamente
em discussão o sentido da propriedade privada. Ela tem como
conseqüência o enriquecimento de menos de 1% da
população, enquanto mais de 90% fica despossuída. A
embaralhada em que estamos é de grande envergadura.
Diria, de forma conclusiva, que vivemos algo parecido ao início do
século XX. Nessa época, fazendo um paralelo geofísico, as
placas tectônicas se movimentaram. Tivemos revoluções, a
vitória dos países aliados, o nascimento e morte do chamado bloco
soviético, enfim, uma reorganização muito grande do mundo.
Agora, começamos o século XXI com as placas também
nervosas, se mexendo. Temos um nível de temperatura social que coloca,
em nível mundial, as forças do trabalho em oposição
às do capital.
Não desconsidero o fato de que os últimos 30 anos marcaram a
contra-revolução burguesa no sentido global, mas essa
vitória do capital sobre o trabalho começa a dar sinais de
esgotamento, com a crise do neoliberalismo, a crise estrutural do capital e o
nascimento de uma nova morfologia do trabalho, cujo traço particular
são as novas formas de lutas sociais. Por exemplo, a América
Latina tem mostrado avanços em várias partes, através de
descontentamentos sociais. Na Ásia China, Coréia,
Indonésia, Japão , existem contradições muito
profundas, também com lutas sociais. O mesmo ocorre muitas vezes na
África, na América do Norte e até na Europa.
As placas tectônicas estão se mexendo, há uma nova
morfologia do trabalho e essas lutas, apesar de tudo, são as lutas
históricas que conhecemos greves e manifestações.
Por outro lado, existem também novas lutas, como aquelas contra a
privatização da água, dos minérios e riquezas
energéticas, que colocam a temperatura social em ebulição.
Não estamos dizendo que está acabando o capitalismo, mas temos
razoável convicção de que ele tampouco é eterno. A
equação dessa crise passa pela temperatura das lutas sociais e
sua conflagração entre as classes. Isso pode significar
retrocesso, com uma extrema-direita no poder imaginem um retrocesso num
mundo que já tem Berlusconi e Sarkozy , ou uma retomada no
século XXI das potencialidades das lutas sociais.
15/Maio/2009
[*]
Professor da Universidade Estadual de Campinas.
[**] Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista,
é editora do
Correio da Cidadania.
O original encontra-se em
http://www.correiocidadania.com.br/content/view/3291/9/
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info/
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