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"Na antiguidade e continuação do domínio gasta-se a
memória"
Maquiavel
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Sob vários aspectos a consciência social do período
histórico que se abriu com o fim da segunda Guerra Mundial foi marcado
por um certo otimismo quanto a humanidade e seus destinos. Exemplos deste
otimismo podem ser vistos tanto na idílica visão de T. H. Marshal
sobre a evolução dos direitos até a
realização de uma cidadania plena, até a expansão
do socialismo com a Revolução Chinesa, a Cubana e o processo de
descolonização na Ásia e África.
A tragédia de duas guerras mundiais, a barbárie do nazifascismo,
teria marcado a consciência dos seres humanos criando uma espécie
de patamar abaixo do qual não mais recuaríamos. Infelizmente as
coisas não são assim. Wilhelm Reich afirmou, certa vez, que toda
vez em que a humanidade se vê diante da disjuntiva "socialismo ou
barbárie", costuma escolher primeiro a barbárie. A onda de
golpes seguidos pelo estabelecimento de ditaduras que assombraram a
América Latina comprovaria esta suspeita e esta cota de terror e sangue
foi paga em nome da defesa da ordem democrática e do mundo livre.
Hoje nos encontramos diante de um paradoxo semelhante. Pareceria à
consciência ingênua de nossa época que a América
Latina teria chegado atrasada à ordem democrática mundial, no
entanto, a própria experiência trágica do período
autoritário funcionaria como uma espécie de antídoto
contra retrocessos. Nossas sociedades passariam, então, para um
desenvolvimento lento em direção ao aperfeiçoamento
democrático e a diminuição das desigualdades que nos
marcam.
Duas constatações são para nós evidentes. Primeiro
que a suposta dicotomia de uma ordem mundial dividida entre um centro
democrático no qual se ensaiava formas de um Estado do Bem-estar Social,
próprias de um capitalismo avançado, e uma periferia que ainda
vivia distorções autoritárias por conta de seu
precário desenvolvimento econômico, não se sustenta.
Segundo que o próprio centro, ao contrário do mito do
auto-aperfeiçoamento institucional que levaria à plena cidadania,
dá sinais claros de retrocesso quanto a direitos e, até mesmo,
padrões minimamente democráticos, como provam as leis restritivas
em relação aos imigrantes na Comunidade Européia e o
Patriot Act
nos EUA depois dos atentados de setembro de 2001.
Tanto na conjuntura dos anos sessenta e setenta como hoje, a raiz da
ilusão reside na desconsideração da luta de classes.
Bobbio acreditava que as sociedades contemporâneas se apresentavam de
duas formas:
"Em uma sociedade fortemente dividida em classes contrárias,
é provável que o interesse da classe dominante seja assumido e
sustentado até mesmo coercitivamente enquanto interesse coletivo. Em uma
sociedade pluralista e democrática, na qual as decisões coletivas
são tomadas pela maioria (ou pelos próprios cidadãos, ou
por seus representantes), considera-se interesse coletivo aquilo que foi
aprovado pela maioria." (BOBBIO, Norberto.
Teoria geral da política
. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p. 220-221.)
Notem que segundo o juízo deste senhor pode parecer que uma sociedade
democrática e pluralista não é uma sociedade fortemente
dividida em classes, como se o antagonismo de classe fosse um fenômeno
político e não tivesse raízes econômicas fincadas
solidamente nas relações sociais de produção e
formas de propriedade. Nossas sociedades latino-americanas, nesta perspectiva,
foram sociedades fortemente divididas em classes e deveriam se empenhar para
transitar para sociedades "democráticas e pluralistas".
O que se confirmou na experiência histórica do século XX
é que os períodos "democráticos" cumprem a
função que Engels já descrevera de ser um
"termômetro da luta de classes", e acreditou prudente
acrescentar que nunca foi e nunca poderia ser algo mais que isso, ou seja,
não era uma forma que ocupava o lugar da luta de classes pela
possibilidade de formação de consenso, mas apenas uma forma da
luta de classes que sob ela continuava a existir e se aprofundar.
A experiência "democrática" não foi interrompida
pelo golpe. A experiência "democrática" levou ao golpe.
A ideia que hoje tenta-se apresentar é a de que aquela experiência
foi interrompida e junto como isso realimenta-se a ilusão que pode ser
retomada de onde parou. Pior, a interrupção é avaliada
como resultante de um certo radicalismo que não compreendia o horizonte
das reformas e a necessidade de seu gradualismo e acaba provocando as
forças reacionárias que acabam por impor a alternativa golpista.
Esta visão absolutamente distorcida se apresenta na
avaliação de Emir Sader em
texto recente neste blog
. Ao avaliar os acontecimentos que levaram ao golpe e enfatizar o erro
estratégico do PCB e sua tese de uma Revolução
Democrática Nacional, o sociólogo afirma que "o
próprio PCB teve muita dificuldade para entender o nacionalismo no
Brasil", ora se aproximando de Getúlio Vargas e ora abrindo suas
baterias contra ele. Da mesma forma agiu com Goulart, ora apoiando suas
reformas, ora tencionando-as e contribuindo para a radicalização
que acabou por derrubá-lo.
Não se trata de um mero acerto de contas com o passado, mesmo neste
aspecto insuficiente e precário, pois o autor precisa se decidir se
critica o PCB pelo erro de supor o papel progressista de uma inexistente
"burguesia nacional", crítica com que concordamos, ou por
não apoiar decididamente as forças nacionalistas e suas reformas.
Não se trata disso, mas da tentativa ideológica de identificar o
atual governo Dilma como continuador das reformas e conclamar, apesar das
evidências antipopulares e mesmo antidemocráticas do atual governo
(vide a portaria do Ministério da Defesa que estabelece as
Operações de Garantia da Lei e da Ordem), a que todos se empenham
em apoiá-lo contra as forças reacionárias.
É por isso que ao fim de uma análise pobre e tergiversada Sader
conclui, logo após afirmar que parte do PCB vai para a aventura do PPS e
cai no campo da direita, que:
"desde então o nome PCB foi resgatado pelos que resistiram a essa
operação, mas sem maior representatividade e peso
político, defendendo posições de ultra-esquerda, sem tirar
lições dos erros que cometem em relação ao Getulio,
para reproduzi-los em relação ao Lula."
Quais lições teríamos que tirar de nossa
experiência? O erro do PCB foi não ter apoiado mais decididamente
o nacionalismo de Getulio ou o reformismo limitado de Goulart? Sader
desconsidera um nexo essencial, qual seja, a estratégia
Democrática Nacional supunha uma aliança com a burguesia nacional
e daí uma relação tática com governos burgueses de
caráter "nacionalista", como forma de acumular para uma
revolução socialista, daí o apoio a Getulio em uma
determinada fase, assim como a Goulart, no entanto, tal apoio não se
dava sem lutas e pressões para avançar as reformas ou na defesa
de posturas antiimperialistas.
A postura do PCB deveria ser apoiar mais e pressionar menos, é isso?
O paralelo com os atuais governos petistas não cabe. São governos
fundados em um pacto social de natureza profundamente distinta, não com
uma suposta burguesia nacional, mas com a grande burguesia monopolista em suas
mais diversas expressões (industrial, financeira, agrária e
comercial) que aceitando como limite intransponível a economia de
mercado capitalista, buscam uma forma de produzir um tipo de desenvolvimento
que combine crescimento dos lucros privados e políticas distributivistas
focalizadas, inserção via crédito e consumo, certa
garantia de emprego com precarização de condições e
flexibilização de direitos. Os governos petistas abandonaram
qualquer perspectiva reformista, assumiram a tese da contrarreforma do Estado e
de seu saneamento e equilíbrio financeiro que combina a política
de superávits primários com o estrangulamento de políticas
públicas, assim como intensificou as formas diretas e indiretas de
privatização, tais como as Fundações
Públicas de Direito Privado, as OS e OCIPS e outras formas. Paralisam e
obstaculizam a reforma agrária, destruíram a previdência
pública e condena o setor público ao descaso.
Fazer oposição a este tipo de governo é
"ultra-esquerdismo"? Tal caracterização é
útil ao ideólogo, pois ainda lhe resta a dignidade de uma
posição de "esquerda". Tal construção
argumentativa só pode se manter transformando a
caracterização de esquerda como algo relativo, isto é,
"define-se por quem está à sua direita". Há
forças políticas à direita do PT (como governo e
certamente como partido, pois são duas coisas distintas). Há
setores políticos da grande burguesia que se apresentam como alternativa
de governo dentro do bloco conservador, como o PSDB, PPS e seus aliados, assim
como há a extrema direita e os saudosistas do regime militar, mas isso
não faz nem do governo, nem do partido que lhe dá
sustentação política, uma força de esquerda.
Programaticamente e politicamente o PT e seu governo assumiram um perfil de
centro (pela natureza do programa econômico, pela opção de
forma política e pelo horizonte societário para qual apontam e
que abandonou qualquer perspectiva socialista). Na situação real
de governo, com as alianças incontornáveis que lhe confere
governabilidade, assume a forma de uma aliança de centro-direita.
É evidente que forças de esquerda podem e, em certas
situações devem, apoiar governos de centro. Mas será esse
o caso no Brasil? Os entusiastas do voto útil apregoam que diante de um
evidente ataque de direita e ameaças de extrema direita, a esquerda
deveria garantir a continuidade do governo de pacto social de centro-direita
para evitar o retrocesso.
Tal argumentação é, acima de tudo, falaciosa. A direita
não se define, pelo menos para quem não abandonou o marxismo,
pela sigla partidária registrada no TSE, mas por seu caráter de
classe. A grande burguesia monopolista não está na
oposição, está no governo. Ou será que precisamos
evitar a vitória das siglas partidárias da direita
explícita para evitar que o rei do agronegócio, o senhor Maggi,
tenha alguma influência no governo, ou a bancada ruralista da senhora
Kátia Abreu tenha mais acesso do que já tem, ou ainda o grupo
Votorantin, ou os grandes bancos e as empreiteiras?
Diante deste fato a extrema direita, que existe e está se movimentando,
está isolada. A classe dominante brasileira acredita que pode garantir
seus interesses nos limites da ordem institucional estabelecida, o que
não implica que ela, no jogo eleitoral, não tenha suas
preferências, assim como não se utilize de vários
expedientes para enfraquecer o atual governo e colocá-lo mais docilmente
sob seu controle.
A esquerda tem, neste cenário, outro papel do que salvar o atual governo
de sua instável e eficiente política de alianças. A
desastrosa experiência política do PT desarma os trabalhadores
naquilo que seria o mais fundamental neste contexto conjuntural: sua autonomia
e independência de classe.
Depois de nos desarmar diante de nossos inimigos, os atuais governistas e
conciliadores, reclamam que não estamos dispostos a defendê-los
quando estes ameaçam atacá-los. Aconselho que procurem o PMBD. Se
fosse real esta inflexão, a busca de apoio da esquerda, o atual governo
deveria, no mínimo, anunciar uma mudança de curso e apontar para
demandas populares que emergiram claramente nas ruas em junho de 2013. No lugar
disso a presidente anuncia a fé na lei de responsabilidade fiscal e
ameaça os manifestantes com a reedição de instrumentos
autoritários e repressivos. Desejamos sorte, eles vão precisar.
Por fim, nunca é demais lembrar os bons e velhos Karl Marx e Friedrich
Engels, quando defendiam que os trabalhadores deveriam participar das
eleições e apoiar seus candidatos próprios "mesmo que
não exista esperança alguma de triunfo", pois o fundamental
é "conservar sua independência" defendendo claramente
suas propostas revolucionárias. E diante da alegação que
isto pode levar a uma vitória dos conservadores, respondem:
"Os operários não devem deixar-se enganar pelas
alegações dos democratas (pequeno-burgueses) de que, por exemplo,
tal atitude cinde o partido democrático e facilita o triunfo da
reação. Todas estas alegações não perseguem
senão o fim de iludir o proletariado. Os êxitos que o partido
proletário alcançar com semelhante atitude independente pesam
muito mais que a presença de uns quantos reacionários na
assembléia representativa. Se os (democratas pequeno-burgueses) agissem
resolutamente, desde o princípio, com medidas terroristas contra a
reação, a influência desta nas eleições
ficará de antemão eliminada" (Marx e Engels.
Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas [1850]
).
O interessante é que, por este raciocínio obtuso, o PT não
existiria, pois teria apoiado o MDB e não apostado na
independência de classe por receio de divisão da frente
democrática e retrocesso da ditadura. Posição,
aliás, que o PCB defendeu e estava equivocado ao fazê-lo. É
verdade, é necessário aprender com nossos erros ou estamos
condenados a repetir o equívoco dos outros. Nós comunistas
aprendemos e os petistas
aprenderão?
[*]
Sociólogo, brasileiro, membro do CC do
PCB
, co-autor de
Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil
, candidato à Presidência da República.
O original encontra-se em
blogdaboitempo.com.br/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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