Hoje, 18 de Dezembro, na Bolívia
O povo tem a palavra
por Marcos Domich
[*]
em entrevista a Hugo Janeiro e Jorge Cabral
[**]
A primeira vez que esteve em Portugal, a força de Abril espalhava a
Reforma Agrária pelos campos alentejanos. O povo deitava as mãos
à terra e tomava partido, construindo formas de propriedade
igualitárias e caminhos fraternos nas relações sociais de
produção. A experiência marcou profundamente Marcos Domich
pela demonstração de capacidade transformadora, "sobretudo
na Europa Ocidental, onde os caminhos da revolução pareciam
fechados", confessou. Quase trinta anos passados, o agora primeiro
secretário do Partido Comunista da Bolívia regressou a Vale de
Vargo, no concelho de Serpa, desta feita para uma conferência organizada
pelo
resistir.info
.
A poucos dias das eleições no seu país, Domich explicou,
em entrevista ao
Avante!
, que o processo de transformação na
Bolívia não passa só pelo voto, mas pela
acção das massas populares em defesa dos seus direitos e
interesses.
Avante! - Como é que se enquadra o processo eleitoral nesta fase de luta
popular na Bolívia, e qual vai ser a posição dos
comunistas no próximo domingo?
Marcos Domich - Para nós a questão não se coloca
exactamente do ponto de vista do apoio ou do não apoio, do apelo ou da
recusa em votar por Evo Morales, o candidato que se apresenta como aglutinador
das forças de esquerda. Não é linear, é uma
discussão muito ampla entre os comunistas.
Alguns camaradas entendiam que devíamos apoiá-lo sem reservas.
Outros, em igual número, analisando as experiências anteriores com
o Movimento para o Socialismo (MAS) e o conjunto de relações,
muitas vezes conflituosas, que estabelecemos com Evo Morales, afirmavam que
não o podíamos apoiar, e portanto votaríamos em branco.
Neste contexto, decidimos partir de outro ângulo de análise da
situação, e dissemos que o fundamental é objectivar qual
é o principal inimigo da Bolívia e do seu povo. O inimigo
principal é o imperialismo norte-americano e a oligarquia nacional, pelo
que a nossa consigna aponta no sentido da derrota da direita.
No concreto, da parte do campo popular, só existe uma
opção eleitoral que pode contribuir para tal objectivo, que
é a candidatura de Evo Morales, pelo que deixamos à nossa
militância a possibilidade de, no momento, decidir conscientemente o seu
sentido de voto. Acreditamos que a maioria acabará por votar em Evo
Morales, facto que consideramos que levanta uma questão legítima:
então porque razão não o dissemos abertamente?
Parece uma abstracção, mas o que devemos ter em conta é
que conhecemos em detalhe a história do MAS e sabemos que neste momento
se encontra infiltrado por oportunistas, por gente que não tem
posições verdadeiramente progressistas e lamentavelmente
são a maioria no interior daquela força política.
Os que podemos indicar como gente com verdadeiros valores de esquerda têm
sido subalternizados pelos oportunistas, perderam influência, por isso
persiste o perigo do governo não ser verdadeiramente sério e
independente.
Então quando o MAS e Evo Morales falam no sector produtivo do Estado ou
na reforma da terra, são promessas que podem ficar esquecidas na
prática governativa?
Exactamente, de tal maneira que nos costumamos referir ao actual programa do
MAS como um "papel molhado", isto é, não tem nenhuma
consistência, faz concessões permanentes a fim de lucrar votos e
agradar às chamadas classes médias. Isto ajuda a perceber porque
é que não apoiamos directa e incondicionalmente Evo Morales.
RECURSOS ENERGÉTICOS NO CENTRO DA BATALHA
Mas realizou-se recentemente uma alteração legislativa sobre a
posse dos hidrocarbonetos, uma das grandes batalhas populares que Morales
subscreveu...
Depois da queda do governo de Sanchez de Losada, o executivo de Carlos Mesa -
que havia sido seu vice-presidente - aprovou uma lei de hidrocarbonetos que
aumentou os impostos directos sobre os produtos, mas tal é insuficiente
porque não restabelece algo que marca inclusivamente a actual
constituição política do Estado.
No artigo 139, diz-se que não há possibilidade nenhuma de
alienação da propriedade destes bens. A nossa luta foi
precisamente neste sentido, o de restituir o direito de propriedade ao Estado
boliviano sobre aqueles recursos, independentemente do estado em que se
encontrem. É esta a essência da luta.
O aumento do imposto específico traduz-se num pequeno avanço, mas
não corresponde a tudo pelo que o povo exigiu e lutou, tanto em Outubro
de 2003, como em Maio e Junho deste ano.
Acrescente-se que o actual governo não quis aplicar a
legislação aprovada - a qual não contempla mais que
mudanças muito tímidas - porque seria obrigado a substituir os
contratos com as várias companhias petrolíferas. Sobre isto a
direita moveu uma oposição tenaz contando inclusivamente com a
complacência deste governo.
Neste processo há, todavia, uma questão que tem que ser figura
central, o ataque ao regime democrático e constitucional.
Na Bolívia vivemos perigos muito sérios, inclusivamente o de um
golpe de Estado, por isso vamos lutar contra qualquer tentativa do
género, mesmo que alguns militares se apresentem com "cara de
nacionalistas".
Dai também a disputa no seio da assembleia nacional pela
reconfiguração dos lugares de deputado atribuídos
às várias províncias?
Sim, este foi um dos motivos, mas o central é que a direita, que domina
o Oriente e o Sul do país, onde se encontram os recursos naturais mais
valiosos, são os que levantaram bandeiras autonomistas, federalistas,
com real pretensão de dividir o país.
Todavia, no actual processo eleitoral, todas as candidaturas incluindo a
da direita, de Jorge Quiroga se apresentam sob a causa da
nacionalização dos recursos.
Por exemplo, Quiroga fala da nacionalização dos recursos
provenientes da exploração dos hidrocarbonetos, o que não
passa de um jogo de palavras.
Doria Medina, outro candidato da direita, fala de uma
nacionalização gradual.
O MAS, que representa o sector popular, fala de uma
nacionalização "inteligente". Bom, eu não sei se
existe tal coisa como uma nacionalização "tonta", mas o
fundamental é que todos abordam a questão porque sabem que esta
batalha colhe muito no seio do povo, e este reclama a
nacionalização dos hidrocarbonetos, o que chamamos o direito
proprietário dos recursos.
NO CAMPO TAMBÉM SE PROTESTA
Outra questão prende-se com a luta dos camponeses pela terra. Qual o
peso da luta deste sector no rumo da política boliviana?
Para nós as duas lutas são centrais, até porque entendemos
que se enquadram no contexto geral da reconquista das empresas estatais, as
quais consideramos estratégicas e que foram privatizadas pelos governos
neoliberais.
A Bolívia ficou sem hidrocarbonetos, sem energia, sem transportes e sem
comunicações. Estes sectores foram alienados ruinosamente, por
isso a nossa luta é para os recuperarmos, mas também pela
capacidade de intervenção financeira, impossível de
realizar desde a liquidação do banco do Estado, uma
instituição muito importante que chegava a todo o país.
Então, estas lutas apresentam a possibilidade de unir as forças
populares e de esquerda, incluindo o MAS, com quem sabemos que temos de
trabalhar, contudo, impondo estas condições mínimas.
O perigo é que o MAS se está a dissolver numa tendência
social-democrata. O candidato a vice-presidente de Morales disse abertamente
à imprensa que não quer o socialismo para nada, prefere
desenvolver um "capitalismo andino". Isto é dizer que acarinha
o sistema. Nós não pensamos que o socialismo está
já ali ao virar da esquina e muito menos que se pode construir por
decreto, sabemos que é um processo. Mas por isso mesmo é que
exige que se vão tomando medidas que não invalidem, não
dificultem, essa possibilidade.
SOBERANIA EM PERIGO
Neste contexto complexo, a independência e unidade da Bolívia
estão sob ameaça?
A secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, foi muito clara. Os
norte-americanos querem jogar um papel na defesa do que chamam "a paz e a
democracia regional", o que no contexto boliviano quer dizer que pretendem
que se desencadeie um clima de caos, de conflitos permanentes, os quais
justificariam uma intervenção estrangeira. Preparam-se para fazer
o mesmo que fizeram no Haiti, reunindo forças regionais sob o seu
comando e vontade.
A base na fronteira do Paraguai é uma estrutura avançada capaz de
mobilizar em poucas horas milhares de soldados, artilharia pesada, tecnologia
de guerra, por isso é muito perigosa.
Quando falavas das contradições internas no MAS, não
referiste a questão do Tratado de Livre Comércio (TLC) com os EUA
e a força que o povo deve ter para derrotar a anexação
comercial...
Eu penso que o MAS vai ganhar as eleições, mas terá, muito
provavelmente, um parlamento hostil. Depois temos que ter em conta as
forças armadas contestatárias que não são
respeitadoras do poder civil.
Acreditamos mesmo que existem forças no interior do MAS que, na
ânsia de poder, podem fazer concessões gravíssimas a
sectores reaccionários. Nos últimos anos falaram da
integração e cooperação americana, mas segundo as
palavras do candidato a vice-presidente de Evo Morales, admitem estabelecer os
tais TLC's, ou falar inclusivamente do avanço da ALCA, factos que entram
em clara contradição com a simpatia que Morales recolhe da parte
de Chávez ou de Fidel Castro.
Mas as massas bolivianas têm a sua própria experiência, e eu
não julgo que aceitem tais cedências, por isso a possibilidade da
abertura de um conflito muito sério no país. É um panorama
simultaneamente delicado e complexo, mas esperamos que a
orientação geral da luta das massas obrigue Evo Morales a seguir
voz do povo e a cumprir o que vem afirmando desde há largos anos,
rejeitando a influência dos oportunistas infiltrados no seu partido.
O pior que se pode passar na Bolívia é a reprodução
da crise no Equador. Lúcio Gutiérrez chegou ao poder com o apoio
da esquerda, dos camponeses, das comunidades indígenas, e depois
revelou-se um conservador, um pró-imperialista traindo o povo.
Pessoalmente tenho dúvidas que Evo Morales seja uma cópia de
Gutiérrez, mas a chave vai estar na acção popular e no
apoio aos sectores que preconizam mudanças.
NO BALANÇO DAS EXPERIÊNCIAS
Este é um problema que se tem repetido em muitos movimentos e frentes
eleitorais progressistas na América Latina. Qual a medida para a
avaliação da justeza de um candidato ou de um programa?
Eu penso que os partidos comunistas vão ver as coisas mais claramente,
com maior realismo, num curto espaço de tempo. Se há uma boa
direcção e um correcto posicionamento nas práticas e
prioridades políticas, tanto melhor, caso contrário, vamos
continuar a assistir a processos de esperanças perdidas, de
traições.
É uma situação muito difícil para a esquerda. No
nosso caso, temos que admitir que nos encontramos organicamente
diminuídos na medida em que não somos o mesmo partido que tinha
grande influência sobre os mineiros, que constituíam o
núcleo clássico que determinava o curso das lutas dos restantes
trabalhadores. O grande desafio prende-se com um redobrado trabalho de
esclarecimento e consciencialização de massas.
REFORÇAR O PARTIDO, RECONDUZIR A LUTA
Quando falas em reforçar os laços com o povo, falas da
reconquista da influência dos comunistas no seio sindical?
Ainda que diminuído, o movimento sindical conserva grande força
no país, o problema é que muitas vezes a direcção
oscila entre a desorientação e o aventureirismo,
situações que pensamos necessitarem de rápida
correcção.
O que traçamos como objectivo é a restruturação do
movimento sindical através da convocação urgente de um
congresso nacional que restabeleça o papel da Central dos Trabalhadores
Bolivianos (COB, na sigla em castelhano) na mobilização e
esclarecimento dos trabalhadores.
Sabemos que o que mais interessa à direita é que a COB mantenha
um radicalismo supostamente mais avançado, com elementos e
acções próprias de provocadores.
Neste momento, uma das linhas da COB é denunciar o MAS anunciando a
intenção de mobilizar as populações para impor a
nacionalização dos hidrocarbonetos. O que não percebem
é que, em plena campanha eleitoral, tal torna-se um elemento de
confusão, não de esclarecimento. Ou seja, não traduzem na
realidade o facto de, em primeiro lugar, termos que derrotar a direita,
acumular forças, estabelecer uma direcção do movimento
popular única e com um programa mínimo.
E esse trabalho vai estender-se às organizações de
camponeses?
Podemos dizer que a nossa fragilidade sempre foi o trabalho com os camponeses,
com as massas rurais, contrariamente ao excelente trabalho que sempre fizemos
junto dos operários e dos restantes trabalhadores.
A nossa tese é que, recuperando influência no seio dos
trabalhadores e das suas estruturas representativas, possamos desempenhar um
papel mais forte no movimento camponês.
Os movimentos e organizações rurais que surgiram nos
últimos anos foram animados ou conduzidos pela COB. Então, o que
nos importa é usar essa força já existente para mobilizar
e sobretudo unir as lutas do campo com as dos restantes trabalhadores. Para
nós, o tema étnico-nacional é subsidiário ao da
divisão da sociedade em classes. É o enfoque de classe que deve
guiar a acção das forças populares.
Já ficou demonstrado que os movimentos sociais, por muito amplos e
fortes que se apresentem, se não tiverem uma direcção
política de um partido, ou de um conjunto de partidos comunistas ou de
esquerda bem unidos, pouco consegue transformar.
APRENDER COM A HISTÓRIA
"Minas ao Estado e terras aos índios", é a palavra de
ordem que, desde a década de 20, tem mobilizado gerações
de bolivianos.
Apesar da resistência da direita, da imposição de ditaduras
e democracias musculadas, o século XX na Bolívia foi, como em
toda a América Latina e no mundo, o período em que o povo mais
conseguiu impor a sua força e capacidade transformadora.
A propriedade do solo, dos recursos e dos meios de produção dos
hidrocarbonetos principal riqueza material do país -
mantém-se na ordem do dia para milhares de pessoas.
Quais as raízes e as experiências de tal
reivindicação?
Marcos Domich - Na Bolívia, a luta é pela
renacionalização de todo um património que se perdeu para
as mãos das multinacionais durante os governos neoliberais que sucederam
ao executivo da Unidade Democrática e Popular, liderado por Siles Zuazo.
Estas são tarefas que se mantêm actuais, tanto mais que uma das
coisas que o Partido Comunista está a colocar na agenda com muita
força é que, tendo em conta as experiências
revolucionárias passadas, as mudanças na Bolívia nunca se
realizam por via eleitoral.
Por exemplo, a nacionalização do petróleo em 1937 a
primeira experiência do género na América Latina a
nacionalização das minas, em 1952, e a
nacionalização da Gulf Oil.
[*]
Primeiro secretário do Partido Comunista da Bolívia
[**] Da redacção do semanário Avante!
O original encontra-se em
http://www.avante.pt/noticia.asp?id=12204&area=19
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info/
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